De acordo com um relatório, divulgado na segunda-feira pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), que prevê que as deslocações continuarão a aumentar nas próximas semanas se não houver um acordo final entre os beligerantes: o Exército das Forças Armadas (SAF, na sigla em inglês) e o grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês).

Apesar das tentativas da comunidade internacional em mediar o conflito, a guerra está, aos poucos, a alastrar-se para fora da capital do Sudão. “Está a aumentar e a piorar de dia para dia”, afirma ao SAPO24, o cônsul honorário de Portugal no país, Suliman Abdelmagid.

“A comunidade internacional, os Estados Unidos e a Arábia Saudita tentaram fazer com que as duas partes se sentassem e concordassem com um cessar-fogo", afirma. As SAF e as RSF acusam-se mutuamente de violar alegados progressos no sentido de um cessar-fogo, resultando em tensões contínuas num país que tenta avançar para uma transição civil, desde o golpe de 2019 contra o então Presidente Omar al-Bashir e uma revolta subsequente em outubro de 2021.

“É preciso chegar a um novo acordo, porque o anterior (29/05) foi revogado e não funcionou entre as duas partes”, lamenta o cônsul honorário.

“Mas o cessar-fogo não é o fim da batalha”, lembra, “serviu apenas para abrir um caminho seguro para evacuação das pessoas e apoio humanitário daqueles que tentam sair da capital. Não foi um acordo para restabelecer a paz”, disse Abdelmagid.

"Neste momento, enquanto falo consigo, decorre um bombardeamento. Ouvem-se os tiros de armas pesadas na capital"Suliman Abdelmagid

“O cessar-fogo não está funcionar. Neste momento, enquanto falo consigo, decorre um bombardeamento. Ouvem-se os tiros de armas pesadas na capital”, descreve o cônsul honorário de Portugal que teve de abandonar Cartum para um local seguro com a sua família.

"Estou num local seguro. As circunstâncias na capital fizeram-nos sair, mas estou seguro, com minha família, fora de Cartum", assegura quando questionado se estava em segurança.

A capital do país é a "Red Zone" do mais recente conflito que dura há quase dois meses. "Cartum é o coração do Sudão, onde cerca de 12 milhões de pessoas vivem na capital. A população do Sudão é de cerca de 43 milhões", descreve.

"É onde estão todas as instalações do governo, as grandes fábricas, grandes hospitais e comunidades estrangeiras de cerca de quatro milhões de pessoas. Todas as grandes fábricas de farinha de trigo, ao redor da capital, foram atacadas. A logística de fornecimento de alimentos foi atingida. As fábricas da indústria alimentícia foram atingidas. O Banco Central de Cartum também foi atacado", relata Suliman Abdelmagid, acrescentado que cerca de “34 agências bancárias” na baixa da cidade “foram assaltadas”, como demonstram as imagens que têm chegado ao cônsul e que partilhou com o SAPO24.

“Dá para imaginar, neste momento, o que 12 milhões de habitantes significam", no meio de um conflito, antecipa o diplomata e empresário sudanês.

Morte e pilhagens acontece todos os dias em Cartum

A situação na capital sudanesa está a agravar-se, desde que começou o conflito há mais de 45 dias.

“Há uma guerra, como o mundo tem conhecimento. A maioria das pessoas interessadas no Sudão sabe que houve uma luta e uma batalha massiva entre a Forças do Exército sudanês (SAF), que é hoje o exército das forças oficiais e as Forças de Apoio Rápido (RSF), que era suposto ser uma força integrante do Exército, e era, no passado”.

As RSF eram utilizadas para “proteger as fronteiras”. Uma força de reação rápida que controlava as “quatro regiões do país onde costumava haver conflitos, existentes desde há 15 anos”, afirma Abdelmagid.

Desde então, tem havido “cortes de energia” em Cartum. Cerca de “85% da cidade” está sem energia, não há fornecimento de combustível. “Nenhum posto de gasolina está em funcionamento”.

Segundo Abdelmagid, “o abastecimento de água está sob um enorme déficit e uma enorme escassez”. Para além da falta de eletricidade e de água potável, também não há segurança, ou seja, “não há forças policiais na capital”, relata o cônsul honorário. “Não há polícia. Não há tribunal. Não há advogados. Não há lei, a capital está sem-lei”, avisa.

“Ninguém está seguro”Suliman Abdelmagid

A agravar o caos, que se vive atualmente em Cartum, está a fuga de prisioneiros das prisões da região. “Há cerca de um mês, houve uma fuga de prisioneiros de quatro grandes prisões do Sudão. Todos os criminosos estão cá fora”, relata o cônsul honorário.

“Nem todos são criminosos, mas na generalidade, esses prisioneiros estão soltos. Muitos gangsters estão de volta às ruas. Gangsters ávidos por vingança”, teme o empresário.

De acordo com a BBC, as RSF tomaram de assalto várias prisões, permitindo a fuga de prisioneiros, incluindo, o ex-governador Ahmed Haroun que estava entre os detidos que escaparam da prisão de Kober, na capital Cartum, onde também estava preso o ex-ditador Omar al-Bashir, que governou o Sudão durante 30 anos. Ambos enfrentam acusações do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra.

“Ninguém está seguro”, teme Suliman Abdelmagid. “A minha casa foi atacada e roubada. Até agora, as nossas empresas foram assaltadas três vezes. Um dos armazéns foi assaltado várias vezes, e ainda pode ser alvo de roubo novamente porque não há lei. Sem polícia na rua.

“Conseguimos tirar todos os portugueses atempadamente”

As movimentações das pessoas na cidade de Cartum “tornaram-se muito restritas”. É perigoso andar na rua, e por essa razão o cônsul sente-se muito aliviado por todos os portugueses terem saído da capital mais cedo. “Conseguimos tirá-los do país atempadamente. Seria uma missão impossível se o fizéssemos agora. Ninguém poderia tirá-los agora”, estima o cônsul honorário.

As forças militares de ambas as partes impedem a entrada e saída de Cartum, “ninguém pode sair ou entrar na capital sem que sejam revistados e, digamos, correndo grande risco de serem mortos pelas Forças de Apoio Rápido (RSF), especificamente, porque agora os soldados estão a invadir as casas, saqueando tudo o que puderem. Os carros e as poupanças das pessoas foram levados”, relata.

“De tempos em tempos, temos ataques aéreos do exército sudanês atacando as posições da RSF. É um pesadelo completo. Caos e desastre por toda Cartum”, lamenta.

Sem meios de transporte e sem bens, as pessoas não conseguem sair da capital e ir para outras regiões do Sudão onde a situação está aparentemente mais calma.
“Não têm meios para escapar. Por exemplo, não têm gasóleo. Não têm carros. Não têm dinheiro para sair. Eles não têm ninguém para os ajudar a sair de Cartum”.

As Nações Unidas alertaram para o facto de a situação continuar a ser particularmente complexa em zonas como a capital, Cartum, e na região de Darfur, com problemas até para a ajuda humanitária chegar a Cartum.

De acordo com o cônsul honorário de Portugal, o resto do território sudanês está mais calmo. “A vida não está completamente normal no campo, no interior e em outros estados e regiões, mas ainda é melhor do que na capital”. Outras cidades, como Porto Sudão, a situação estará a rondar os “60% a 70%” da normalidade.

A crise humanitária está a alastrar aos países vizinhos, onde continuam a chegar refugiados quase diariamente, bem como repatriados e cidadãos de países terceiros.

“O Sudão está no centro de sete países. Estamos a falar de questões de segurança nacional no Egito”, onde já entraram 170.000 pessoas, segundo a ONU. “Questões de segurança nacional na Etiópia, questões de segurança nacional na Eritreia, o mesmo no Sudão do Sul e na África Central”, refere Suliman. “Também no Chade”, onde o número já ultrapassa as 100.000 pessoas. Segundo o ACNUR, cerca de 6.000 pessoas atravessaram a fronteira etíope e cerca de 14.000 chegaram à República Centro Africana.

Crise no Sudão - refugiados
IOM créditos: OCHA/UN
"Toda ajuda é necessária”Suliman Abdelmagid

Todos esses países partilham as fronteiras com o Sudão, “e se esses corredores se soltarem haverá um desastre” humanitário, prevê o cônsul honorário. “Será uma crise de passagem de refugiados".

"Portanto, toda ajuda é necessária”, apela Suliman Abdelgimad. De acordo com o cônsul, a ajuda internacional está a apelar a vários países para apoiar o povo sudanês. “Há voos a chegar da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Egito, Omã, Índia e China sobretudo com alimentos. Penso que o mais necessário é a ajuda médica”.

“Medicamentos, abrigos e tendas são necessários para apoiar as pessoas que conseguiram sair da capital sem absolutamente nada. Algumas pessoas simplesmente saem com as roupas que têm, pelo que não têm nenhum meio de apoio”.

Sem acordo à vista

Ao longo de oito semanas de conflito, várias tentativas de cessar-fogo fracassaram.
O último de cinco dias de tréguas, intermediada pelos EUA e pela Arábia Saudita expirou formalmente no sábado, sem sinais de que o conflito estivesse diminuindo.

No domingo, os Estados Unidos e a Arábia Saudita retomaram as negociações entre os representantes das duas forças em conflito no Sudão. Entretanto, Washington impôs sanções aos dois generais que comandam as partes em conflito, na semana passada, culpando ambos os lados pelo "terrível" derramamento de sangue.

Os mediadores dos EUA e da Arábia Saudita pediram "que as partes concordem e implementem efetivamente um novo cessar-fogo, com o objetivo de construir uma cessação permanente das hostilidades", disse fonte oficial de Riad.

“As duas forças estão a destruir-se umas às outras e ao Sudão no final do dia”, acredita Suliman Abdelmigad.
“A comunidade internacional deve juntar-se à Arábia Saudita e ao apelo dos EUA para fazer com que as duas partes se sentem e cheguem a um acordo num futuro muito rápido”, pede.

“Em termos de Portugal, como um país o qual também me considero pertencer", afirma, "deve juntar-se aos esforços feitos pela Arábia Saudita e pelos Estados Unidos em termos de pressionar as duas partes a sentarem-se e chegarem a um acordo”.

O cônsul honorário de Portugal no Sudão acredita que o nosso país pode contribuir sobretudo com ajuda médica, “mesmo com o envio de pessoal” voluntário. Contudo, o país tem as fronteiras encerradas para a receber ajuda internacional em termos de pessoal. “Apenas entram mercadorias”, segundo Suliman.

“Circular pelo resto do país, embora esteja entre 60 a 70% dentro da normalidade, como disse, não é 100% seguro”, sublinha, dando como exemplo o Estado de Emergência Nacional declarado para a cidade de Porto Sudão, na semana passada, com recolher obrigatório e impossibilidade de entrar e sair da cidade a determinadas horas.

Porto Sudão é a cidade onde se encontra o principal e único porto do Sudão no Mar Vermelho. “Houve alguns ataques das RSF na cidade”, afirmou, impossibilitando a entrada de ajuda.

"Considero Portugal a minha casa, também"

Questionado sobre como têm sido as relações bilaterais Portugal-Sudão (antes do conflito), o cônsul honorário afirma que têm sido boas. “Houve interligações entre os dois países”, sublinha, apesar de “não existir embaixada portuguesa no Sudão - é no Cairo, e a relação diplomática sudanesa com Portugal é através do canal diplomático francês, em Paris”, descreve.

“De um modo geral, tem havido trocas comerciais de alguns bens e produtos que vão de Portugal para o Sudão. Tem havido alguns empresários sudaneses a investir em Portugal, em imobiliário e construção, através dos vistos gold e, claro, investir no turismo”, acrescenta. “Viajar para Portugal tem sido relativamente tranquilo”.

"A minha história é aqui, junto deste povo amoroso"Suliman Abdelmagid

O mesmo se dava ao contrário, “muitos portugueses vinham para o Sudão também para turismo, principalmente para mergulhar no Mar Vermelho", garante. "Houve também boas oportunidades de emprego, nas organizações e de comercialização dos produtos portugueses”, no país, refere Suliman Abdelmagid, que também é empresário.

“Haviam portugueses a treinar as equipas de futebol sudanesas e empresários que viajavam para o Sudão para comercializar os seus produtos e participar em exposições. O fluxo era bom”, acrescenta o cônsul honorário que costumava vir a Portugal regularmente em negócios, mas que recusa sair do Sudão para Portugal nesta altura tão complicada.

“Eu considero Portugal a minha casa, também. É por isso que costumo colocar como prioridade viver em Portugal, com a minha família. Mas, honestamente, o foco neste momento é o meu país que está sob fogo. É como um incêndio que começou na capital e agora está a alastrar-se pelas outras cidades. É onde está a minha mente, o meu coração pensa no Sudão. É onde está a família, os parentes e os amigos. É onde tenho os meus negócios. A minha história é aqui, junto deste povo amoroso, tenho os meus vizinhos, tenho tudo aqui”, conclui Adbelmagid, deixando um apelo para que a comunidade internacional não esqueça o povo do Sudão que “está destroçado” com este conflito.

*com Lusa e AFP

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