Quem manda no alto mar? Ou talvez seja melhor começarmos por outra pergunta: o que é o alto mar? A primeira resposta a reter é que corresponde à maior parte do planeta, o que deveria ser a primeira razão a atestar a sua importância. Os oceanos cobrem 70% do planeta e quase dois terços das suas águas e fundos marinhos não são geridos por nenhuma nação, porque não fazem parte da jurisdição de qualquer país à luz do direito internacional.

Veja-se o exemplo de Portugal, que é um país costeiro. Há uma Zona Económica Exclusiva sob jurisdição portuguesa que se estende até às 200 milhas marítimas (370,4 quilómetros) da costa, o que representa uma área quase 20 vezes maior do que Portugal Continental.

A delimitação da Zona Económica Exclusiva foi definida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, aprovada em 1982, também depois de uma maratona de 10 anos de negociação, e é uma espécie de fronteira para as águas internacionais, nome pelo qual é por vezes designado o alto mar.

Um mar de todos e de ninguém

O alto mar é, por isso, um território de todos e um território onde ninguém efetivamente tem autoridade para mandar. O que configura para efeitos de conservação da natureza o pior dos dois mundos e pode ajudar a explicar porque foram precisas quase duas décadas para se alcançar um acordo em sede das Nações Unidas que estabelecesse um quadro de governação de uma área com impacto decisivo em todo o planeta. Foi isso que aconteceu na madrugada do passado dia 5 de março, em Nova Iorque, ao fim de mais de 30 horas de negociação na reta final do acordo conhecido como Tratado para o Alto Mar.

Além do alto mar, também o fundo marinho é sujeito de partilha por toda a comunidade de países. No entanto, contrariamente ao que se passou com o alto mar, as negociações da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar incluíram acordos específicos sobre a exploração mineira dos fundos marinhos com a criação de uma autoridade internacional para esse efeito, em 1994.

Histórico porquê?

Não é apenas pelo tempo que demorou a ser alcançado que o Tratado para o Alto Mar foi designado como “histórico”. A conquista mais imediata será a criação de grandes zonas marinhas protegidas no alto mar. Os oceanos produzem metade do oxigénio que respiramos e são os maiores sequestradores de dióxido de carbono, porém apenas 1% das águas internacionais têm estatuto de proteção, quando o objetivo é chegar a 30% até 2030.

Portugal tem 7% do seu mar territorial com o estatuto de áreas marinhas protegidas. A maior é a Reserva das Ilhas Selvagens, na Madeira, criada há 50 anos e alargada em 2021 para um total de 2.677 quilómetros quadrados, sendo agora uma das maiores áreas protegidas do mundo e a maior do Atlântico Norte. Para que este alargamento fosse possível, Governo Regional da Madeira teve de aprovar um novo regime jurídico de proteção total das Selvagens, numa iniciativa que contou com o apoio técnico e científico da Fundação Oceano Azul, da National Geographic e do Waitt Institute.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – que Tiago Pitta e Cunha, presidente executivo da Fundação Oceano Azul, considera a “constituição” do mar – foi assinada há 40 anos e estabeleceu a área considerada alto mar onde todos os países têm o direito de pescar, navegar e fazer investigação. O que deixou em aberto foi a forma de proteger essa imensidão de mar, crítica para o presente e futuro do planeta, nomeadamente no que respeita à definição de regras e objetivos de proteção da natureza marinha.

O Tratado para o Alto Mar vem criar resolver esse vazio, estabelecendo como objetivo passar de 1,2% de área marinha protegida em alto mar para 30%. Serão zonas do oceano que estão para além da jurisdição nacional de cada Estado, património comum da humanidade.

Um exemplo da tensão Norte-Sul

A riqueza genética, biológica e económica dos recursos marinhos, mesmo em áreas fora das que serão classificadas como protegidas, foi um dos principais entraves à assinatura do Tratado para o Alto Mar. Foi um exemplo geopolítico da tensão Norte-Sul, uma vez que apesar de ficar convencionado que todos os países poderão ter acesso - “seja qual for a sua localização geográfica – à investigação ou exploração dos recursos genéticos marinhos nas áreas do oceano para além da jurisdição nacional, a verdade é que a capacidade económica e tecnológica colocará o hemisfério norte, mais rico, em vantagem face ao hemisfério sul, mais pobre.

"Um dos grandes problemas geopolíticos do mundo em que vivemos é a tensão entre o Norte Global e o Sul Global. Porque uma boa parte deste tratado é sobre a distribuição dos benefícios que a diversidade biológica do alto-mar deve trazer às nações e à Humanidade no seu todo, e não apenas a quem tem a tecnologia, os meios navais e o poder económico para os explorar", afirma Tiago Pitta e Cunha.

O tratado estipula que os benefícios que resultem de iniciativas de investigação e exploração “devem ser partilhados de uma forma justa e equitativa” entre os países, sendo que o quadro em que tal irá acontecer, seja no acesso a base de dados de informação, seja na compensação monetária que possa advir de novas descobertas, será regulada a partir da Conferência das Partes deste tratado que irá criar um fundo voluntário para partilha e compensação dos benefícios.

Objetivo: Nice

A pressão – e exaustão – na reta final de negociação permitiu uma situação fora do comum neste tipo de fórum da comunidade internacional que foi o documento oficial do acordo ter sido o documento de negociação, apenas disponível em inglês quando é prática comum, nomeadamente entre as grandes potências, só aprovarem tratados redigidos nas suas línguas. Mas esse trabalho terá agora de ser feito, antes do envio para ratificação em sede das instituições de cada país.

Neste sentido, está já prevista, para 19 e 20 de junho, uma sessão, na sede das Nações Unidas, para assegurar a uniformidade da terminologia do tratado e a harmonização das versões nas seis línguas oficiais das Nações Unidas.

O tratado terá de ser ratificado pelo menos por 60 países, objetivo que Tiago Pitta e Cunha reforça com a urgência de acontecer em tempo record. “Agora que foi negociado vai ter de ser o tratado mais rápido, nas Nações Unidas, a ser ratificado. A Fundação Oceano Azul vai trabalhar dia e noite nesse sentido”.

Além disso, o presidente executivo da Fundação Oceano Azul tem como ambição organizar a primeira conferência das partes durante a Conferência de 2025, a ter lugar em Nice. “Isso é que seria absolutamente brilhante”, afirma.

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