Trata-se de um relato interessantíssimo que esclarece as relações dentro deste universo paralelo — o dos "Bons Rapazes" que Scorsese imortalizou no grande ecrã — que tem tanta influência no mundo. Por ocasião do lançamento da edição portuguesa (Desassossego, Lisboa, 2019) trocamos algumas impressões, que mal afloram o manancial de informação do livro.
Sobre qualquer grupo permanente de delinquentes dizemos que é uma máfia. Mas há uma diferença entre o que é máfia e o que é crime organizado, não há?
A diferença é que as máfias querem governar, têm a aspiração de conquistar um território e dominá-lo. As que estudo no livro estão todas organizadas da mesma maneira, com vários núcleos, ou “famílias”, coordenados por uma comissão, ou comité, mas cada família tem muita independência. É muito diferente dos grupos de crime organizado que têm como objetivo apenas cometer delitos. Aparecem e desaparecem, conforme as oportunidades. As máfias são permanentes e adaptam-se a todas as oportunidades.
Acha que uma pessoa escolhe uma vida de delinquência porque nasceu numa família de criminosos, ou por vocação, ou pelas circunstâncias?
Bem, é preciso ter uma certa vocação para ser atraído para esse tipo de vida.
Mas uma pessoa que nasce numa família mafiosa pode dizer que não quer entrar no negócio?
Na maioria das máfias, pode. Não se é obrigado a seguir a tradição da família. Claro que não é fácil e às vezes a família pede-lhe um favor que lhe vai trazer problemas e assim começa a cadeia de envolvimento. Mas há exemplos de mafiosos que têm irmãos ou irmãs completamente fora do esquema. Então, não se é obrigado a seguir por se ter nascido naquela família, pode-se fazer outras opções. Algumas das máfias que estudei não se baseiam no parentesco. Os membros podem ser recrutados de fora. E o oposto também acontece; no Japão, por exemplo, há muitos filhos de chefes que se dedicam a outras atividades.
Você fala muito das máfias russas, e eu tinha a ideia de que era bastante diferente. Julgava que se tinham formado a partir do KGB, depois do fim da União Soviética. Algumas pessoas que faziam parte do aparelho do Estado transformaram-se em oligarcas porque puderam comprar as estatais por um preço muito baixo. Ora, você diz exatamente o oposto: as máfias já estavam organizadas durante a União Soviética e sempre foram contra o Estado.
O aparecimento dos oligarcas é um fenómeno diferente. Claro que muitos deles faziam parte do partido, sobretudo do Komsomol (a Juventude Comunista), portanto há os membros dessa organização que se tornaram muito ricos depois. Mas os grupos que estudei são outra história. Trata-se de criminosos que detestavam o Partido e o Estado.
Então, a diferença entre as verdadeiras máfias e estes grupos de interesses a que chamamos de máfias, qual é? O uso da violência?
Acho que é mais do que a violência. O que as máfias querem é governar um território; a chave é essa. Como se quisessem ser um Estado. Além disso têm uma organização com regras de comportamento muito restritas, o que não acontece com os outros grupos a que habitualmente chamamos máfias. Estes são mais associações de pessoas que fazem favores uns aos outros.
Aliás, você escreve que os banqueiros se aproveitam dos mafiosos. Pensava que era ao contrário. Sabem que o dinheiro é ilegal e exigem comissões para o lavar, é isso?
Sim, eles conseguem explorar os mafiosos! Porque um dos maiores problemas da máfia é lavar o dinheiro e não podem detê-lo legalmente, portanto entregam-no ao banco; e o banco pode dizer-lhes que o investimento se perdeu, de uma maneira ou de outra, com explicações técnicas que eles não podem compreender.
Mas o banco não tem medo de represálias?
Deviam ter, porque se a máfia descobre pune-o severamente. Mas o incrível é que há bancos que enganam os mafiosos e acontece muito mais do que nós podemos imaginar. Há banqueiros corruptos que roubam os criminosos!
Acha que este tipo de organizações, as verdadeiras máfias, são impossíveis de erradicar?
Acho que poderiam ser erradicados, mas era preciso haver vontade política. É possível derrotá-los de duas maneiras; uma é prender os chefes; a outra tem a ver com as condições sociais e económicas que possibilitam a sua existência. As dependências tradicionais e as carências materiais levam à criminalidade.
Mas eles por vezes compram os políticos, ou seja, pessoas que foram eleitas ou nomeadas para cargos com poder legal e administrativo.
Exatamente. Por isso é que não há vontade política.
Você descreve em pormenor alguns negócios lícitos e ilícitos. Por vezes o que eles fazem é controlar negócios lícitos, como a coleta de lixo. Como é que se pode combater uma situação destas? Não é possível fazer prova do envolvimento deles.
Sim, na coleta do lixo em Nova Iorque, por exemplo, o que fazem é criar um cartel de empresários, reduzindo a concorrência. Uma pessoa que queira iniciar um serviço de coleta de lixo precisa de permissão da máfia.
Pois, o negócio é legal, mas é manipulado duma maneira criminosa. O que é diferente dum negócio ilegal, como o tráfico de drogas. Parece que as máfias americanas não queriam entrar nesse ramo, por razões “morais”, digamos assim.
Não, isso não é verdade. Estiveram envolvidas desde que o negócio existe. No filme “O padrinho” é que Vito Corleone diz isso, mas é pura ficção.
Acha que se a venda de drogas fosse legal, reduziria o poder dos grupos de traficantes?
Bem, não há dúvida de que a droga é a maior fonte de rendimento das máfias, neste momento. Se se tornassem legais, seria mau para elas; mas encontrariam outro negócio semelhante. Ou então continuariam a controlar o negócio, só que de outra maneira. Fazendo um cartel das empresas produtoras e distribuidoras, por exemplo, que é o seu modus operandi preferido.
Por falar em droga, você não faz referência às famosas máfias colombianas. Podia ser o seu próximo livro...
Pois, eu estive na Colômbia há poucas semanas. Em Bogotá, Medina, Cartagena. A produção de cocaína é a maior de sempre. E é praticamente toda exportada.
Os colombianos são muito violentos. Mas o que sempre ouvi dizer é que a máfia calabresa, a 'Ndrangheta, é a mais feroz de todas.
A 'Ndrangheta é muito rica, e isso dá-lhe muito poder. A droga colombiana entra pelo porto de Gioia Tauro e é a 'Ndrangheta que controla o porto. É muito moderno e muito mais eficiente do que o de Palermo, pode receber aqueles grandes barcos de contentores. O volume de mercadorias é tal que se torna difícil verificar todas. E eles têm o pessoal do porto e da alfândega na mão.
Você escreveu que a 'Ndrangheta tem menos denunciantes do que as outras máfias. Isso é porque eles são mais violentos?
Não, é porque eles têm mais laços familiares do que os outros. Quando se denuncia a organização, esta a denunciar-se a família. Isso torna a traição mais difícil.
No crime ou fora dele, a família tradicional continua a ter muito peso...
Sim, as tradições são muito fortes, mesmo quando são tradições criminosas. As máfias misturam tradições ancestrais com métodos modernos. Uma combinação difícil de derrubar!
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