“Um Papa que falou muito sobre pedofilia, talvez o pontífice que mais falou sobre o assunto, grandes elogios de todo o mundo, sempre e em qualquer caso. Mas a honestidade intelectual para aprofundar essas infinitas palavras ou escritos não foi apreendida por ninguém”, segundo uma nota assinada por Cristina Balestrini em nome da Coordenação dos Familiares das Vítimas, divulgada no dia da morte do Papa Francisco, com um tom amargo.

“Nós, familiares das vítimas de padres pedófilos, queremos expressar o nosso agradecimento ao Papa Francisco: obrigado por ter falado tanto sobre a pedofilia, sem ter feito nada de concreto para a combater”, refere o comunicado, citado pela agência italiana ANSA.

A Igreja Católica tem sido abalada há décadas por escândalos envolvendo padres pedófilos e o encobrimento destes crimes.

Francisco fez do combate aos abusos cometidos pelo clero uma prioridade dos seus 12 anos de pontificado e defendeu uma política de “tolerância zero”.

No verão de 2014, pela primeira vez, seis vítimas de membros do clero foram recebidas no Vaticano por um Papa. Na ocasião, Francisco pediu perdão pelos “pecados de omissão” da Igreja nos casos de pedofilia.

Em 2019, Francisco avançou com uma decisão histórica, ao anunciar o fim do segredo pontifício nos casos de violência sexual e de abuso de menores e de adultos vulneráveis cometidos por membros do clero.

O Papa morreu hoje aos 88 anos, após 12 anos de um pontificado marcado pelo combate aos abusos sexuais, guerras e uma pandemia.

Nascido em Buenos Aires, a 17 de dezembro de 1936, Francisco foi o primeiro jesuíta a chegar à liderança da Igreja Católica.

O chefe da Igreja Católica esteve internado durante 38 dias devido a uma pneumonia bilateral, tendo tido alta em 23 de março. A sua última aparição pública foi no Domingo de Páscoa, no Vaticano, na véspera de morrer.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Quando o papa Francisco tomou posse, a Igreja Católica estava imersa num escândalo global de abuso infantil pelos padres e, ao mesmo tempo, tentava cobrir a situação.

O pontífice sancionou os principais membros do clero e tornou obrigatória a denúncia de abusos, no entanto, as vítimas disseram que mais pode e deve ser feito.

Comissão de proteção aos menores

Em dezembro de 2014, o Papa Francisco estabeleceu um painel internacional com especialistas para recomendar como proteger os menores.

No entanto, a comissão foi envolvida em controvérsias desde o início.

Dois representantes dos sobreviventes de abuso renunciaram ao projeto em 2017, incluindo Marie Collins, que foi vítima de violação por um padre na Irlanda aos 13 anos, que declarou "vergonhosa" a falta de cooperação dos membros do Vaticano.

Em março de 2023, o último membro da comissão, Hans Zollner, proeminente sacerdote jesuíta alemão, renunciou e expressou preocupações sobre “responsabilidade, conformidade, prestação de contas e transparência”.

Ponto de viragem no Chile

A viagem do Papa Francisco em janeiro de 2018 para o Chile representou um ponto de viragem.

O Papa Francisco inicialmente defendeu um bispo chileno contra denúncias de que teria coberto crimes de um padre mais antigo, e pediu aos acusadores uma prova da sua culpa.

Mais tarde, o papa admitiu ter cometido "erros graves" no caso, algo nunca admitido antes por um papa. Convocou todos os bispos chilenos para o Vaticano, e, logo depois, todos apresentaram suas renúncias.

Caso McCarrick

Em agosto de 2018, o papa foi criticado com uma virulência sem precedentes pelo seu suposto silêncio sobre o comportamento do influente cardeal americano Theodore McCarrick.

Este último, acusado de abusar sexualmente de menores, perdeu o título de cardeal antes de ser expulso pelo papa, uma punição sem precedentes na história da Igreja.

Dois anos depois, o Vaticano publicou uma longa investigação sobre McCarrick, admitindo erros na cúpula, mas eximindo Francisco.

Cimeira sem precedentes

Em fevereiro de 2019, o papa reuniu os chefes de 114 conferências episcopais de todo o mundo com o chefe das igrejas católicas orientais e superiores de congregações religiosas para uma cúpula de quatro dias sobre “a proteção de menores”.

Na conferência, houve relatos devastadores de sobreviventes de abuso e críticas contundentes de dentro da Igreja.

O cardeal alemão Reinhard Marx, um conselheiro próximo do papa, lançou a bomba de que os escritórios dos bispos poderiam ter destruído arquivos sobre suspeitos de abuso clerical.

O papa prometeu uma “batalha total” contra o assédio, comparando o abuso sexual de crianças ao sacrifício humano.

Mudanças legais

Em dezembro de 2019, o papa disponibilizou reclamações, testemunhos e documentos de julgamentos internos da Igreja para tribunais laicos. As vítimas puderam aceder aos seus arquivos e quaisquer julgamentos.

No mesmo ano, tornou obrigatória a denúncia de suspeitas de agressão ou assédio sexual às autoridades da Igreja - e qualquer tentativa de encobrimento.

Em 2021, a Igreja Católica atualizou seu Código Penal pela primeira vez em quase 40 anos para incluir uma menção explícita de abuso sexual por padres contra menores e pessoas com deficiência.

No entanto, as vítimas continuaram a reclamar que o clero ainda não era obrigado a denunciar o abuso às autoridades civis de acordo com os códigos da Igreja, e tudo o que era dito no confessionário permanecia sacrossanto.

Um registo misto

Nas suas viagens ao exterior, o Papa Francisco reuniu-se com sobreviventes de abuso, do Canadá à Bélgica, e regularmente pediu perdão.

Mas, embora tenha feito mais do que qualquer outro papa para combater o flagelo, ativistas dizem que nunca reconheceu o que poderiam ser as causas “sistémicas” do abuso dentro da Igreja.

Foi criticado por não se encontrar com os autores de um importante relatório sobre abuso sexual na França e por pedir cautela na interpretação da afirmação de que cerca de 330.000 menores haviam sido abusados ao longo de 70 anos na Igreja.

Os críticos também dizem que deveria ter sido mais incisivo com Marko Rupnik, um padre esloveno e artista de mosaico de renome mundial acusado de abuso em uma comunidade de religiosas adultas na década de 1990.

Sob pressão, o papa renunciou a um estatuto de limitações em 2023 para permitir possíveis processos disciplinares.

*Com agências