Permitam-me que continue onde parei ontem, na minha terra, aquela aldeia a poucos quilómetros da vila da Batalha, em Leiria. É lá que começa o silêncio.

Lembro-me bem de o primeiro dia do mês de novembro não ter a beleza de um fim de semana prolongado, caído sobre a sexta-feira de um calendário, ali juntinho ao fim de semana, três dias suficientes para ir dar um voltinha, três dias para descansar da rotina.

Quando o feriado calhava a meio da semana, o dia seguinte era de aulas, um dia risonho, com uma mala cheia de doces arrecadados no Pão por Deus, mas que começava com um tremendo silêncio.

No caminho de minha casa à escola o cemitério surge de mansinho sobre o lado esquerdo, antes de deixarmos as povoações e descermos para a Batalha. E essa será sempre a condição para que nunca me esqueça do dia dos finados.

Pouco passa das oito da manhã e a estrada está inundada de carros mal estacionados de um lado e de outro. Cá de fora, vê-se uma tenda, alta, branca, rodeada por dezenas de chapéus de chuva pretos. À medida que o carro da minha mãe se aproximava, desligava-se o rádio e olhávamos os três, eu, ela e o meu irmão pelas grades do portão principal, apenas aberto nestas grandes romarias por aqueles que já partiram.

Imagino que na altura em que passava, que o padre estivesse a proferir algumas palavras. Mas para mim, a imagem que fica é a do silêncio. Agora, que me tento recordar desses dias, acho que estava sempre a chover. Mas talvez isso seja mentira.

Ensinaram-nos desde cedo que o silêncio era a homenagem. O minuto do silêncio é uma ida lá acima para abraçar os que foram para baixo de terra. O silêncio emociona, pode ser barulhento, mas por vezes não chega. Com o passar do tempo pode, aliás, ter-se tornado em algo de tal forma ritualizado que acaba, muitas vezes, por ser visto, como uma pequena formalidade e respeito por alguém. Não se ouve. Não se vê. Não se sente.

É por isso que é grande a iniciativa do um minuto de barulho pelas 30 mulheres que morreram este ano vítimas de violência doméstica e por tantas outras que são hoje casos silenciosos. Aqui o silêncio pesa e silencia. Aqui o silêncio não é bonito. Aqui o silêncio é morte.

É forte o parágrafo com que começa a peça assinada pela Inês, pelo Paulo, pelo Rodrigo e pela Rita: "Olá o meu nome é Francisca e durante anos fui vítima de violência doméstica. Peço-lhe que não se afaste já, espere só um pouco. E não tanto como eu esperei. Esperei que ele voltasse a ser o homem po​r quem um dia me apaixonei... Uma ilusão. Hoje sei que o amor não tem nada a ver com violência. Sei que não é fácil, mas é preciso fazer barulho, pedir ajuda. Foi o que fiz, pela minha filha."

Que se faça barulho. Muito. Muito barulho. Que se coloque um fim aos silêncios, um fim à morte. Que se faça barulho para que a atualidade noticiosa deixe de ter 30 pessoas mortas vítimas de violência doméstica, uma rapariga de 14 anos violada, enquanto estava inconsciente, por cinco homens em Espanha.

Que se grite porque já ninguém ouve este silêncio. E isso está a matar-nos.