E se de repente recebesse um telefonema a convidá-lo para ir uns dias ao Parlamento Europeu, com tudo pago, para dar a sua opinião em matérias como educação e cultura, segurança, alterações climáticas, ambiente e saúde ou migrações? Foi isso que aconteceu a 800 cidadãos, escolhidos aleatoriamente, que agora estão a debater os desafios e as prioridades da Europa. E a propor soluções.
"Não estão aqui para fazer campanha, estão aqui para dar a vossa opinião, para dizer exatamente o que pensam, falar de vossa justiça". Foi com estas palavras que os cidadãos do quarto e último painel da Conferência sobre o Futuro da Europa, com o tema migrações e o papel da UE no mundo, foram recebidos naquela que foi a primeira sessão plenária, em Estrasburgo.
Para alguns dos presentes esta foi a primeira vez que viajaram para fora do país, que andaram de avião ou que foram sorteados para alguma coisa. "Nunca ganhei a lotaria ou o totoloto, nem o francês nem o europeu. Nunca fui escolhida para participar em nada, para ser jurada. Nunca. Sou uma pessoa normal, que vive numa pequena vila ao pé do Lago Léman, longe de tudo", diz ainda incrédula Annie Hoëz.
É francesa, tem 79 anos, e foi de lágrimas nos olhos e voz embargada que falou pela primeira vez no hemiciclo. Sentiu-se "alguém", parte de um processo maior que, se tudo correr bem, vai fazer história.
Annie está reformada há 16 anos, mas trabalhou sobretudo na indústria farmacêutica. É casada, tem três filhos e veio acompanhada pela filha Lise, sua "attaché de presse et oreilles" [assessora de imprensa e ouvidos], diz a sorrir. Por acaso, trabalhou com a migração nos anos 70, "quando a França teve necessidade de contratar trabalhadores para as suas fábricas, como portugueses, espanhóis antes deles, ou argelinos", conta. Agora está "feliz por poder ajudar".
Dos mais velhos aos mais novos a sensação de descoberta, de esperança e de solidariedade pairou durante três dias no Parlamento Europeu.
No plenário, os anfitriões fizeram as honras da casa: "Não estamos aqui para nos convencer uns aos outros, mas sim para discutir de forma saudável os diversos pontos de vista. Até à última reunião, em Maastricht, nos Países Baixos, de 14 a 16 de janeiro [adiada para fevereiro por causa da pandemia], haverá tempo para estudar e refletir. Irão ouvir muitas coisas, conversar muito e os pontos de vista irão com certeza evoluir". E evoluíram.
Inês Silva, 24 anos, vive em Sintra e é uma dos 24 portugueses convidados à sorte para participar no evento. Está, como outros cinco, no painel das migrações. Admite que não sabia nada sobre o assunto e até tinha preferido ficar no terceiro painel, que tem o tema da saúde, área em que está mais à vontade, já que é estudante de Ortóptica - "tem a ver com estrabismo e visão binocular".
Diz que "não estava habituada a falar", mas acabou por ser escolhida para embaixadora do grupo a que pertence, ou seja, é uma das 20 representantes do painel, a quem cabe participar em todas as reuniões, fazer as atas e passar a informação aos demais. Ela, que nos primeiros dias usava um crachá com uma fita azul, sinal de que poderia ser filmada ou fotografada, mas estava indisponível para falar com a imprensa (nacional ou estrangeira).
"A minha opinião em relação às migrações evoluiu", afirma agora. "A quantidade de dinheiro de que o Estado beneficia com os migrantes... Fiquei espantada. Mas as pessoas acham que eles vêm para cá para roubar. Há muitos preconceitos", afirma.
"Tive oportunidade de ir a um dos eventos sobre migrações que se realizou em Portugal, em Évora, e percebi que há muita falta de informação, por isso as pessoas acham que os imigrantes só vêm para cá para roubar trabalho. O ser confrontada com números colocou tudo em perspetiva, a informação que passa nas televisões está enviesada. E vieram pessoas contar a sua experiência, algumas nem sequer queriam estar no país", reflete.
De facto, já passaram três meses desde que, no Parlamento Europeu, tomou contacto com esta realidade pela primeira vez. Foi no final de outubro, antes de os 200 cidadãos serem separados por grupos de 15 a 20 pessoas e serem lidas as regras de funcionamento para uma sã convivência: "Ouvir o outro até ao fim sem interromper, mão no ar quando quiserem falar, falar pausadamente por consideração pelos intérpretes, perguntar sempre que existam dúvidas sobre a substância do que está a ser debatido, ser cortês, falar sem insultos mesmo que os pontos de vista divirjam — máxima tolerância, nada de discursos de ódio —, pontualidade, respeitar os horários e os intervalos, telefones em modo de silêncio, fazer uso da língua materna — para isso existem os intérpretes —, mas aproveitar para praticar outros idiomas".
Normas básicas, mas tantas vezes ignoradas por vários parlamentos, ditadas pelos moderadores sem qualquer tipo de paternalismo ou condescendência. "Perceberam todos? Se sim, vamos usar o sinal de concordância utilizado pelos deputados desta casa: levantem os braços e acenem com as mãos".
Depois, um quebra-gelo: "Alguém faz anos hoje?" Ninguém se acusou. "E nos próximos três dias, alguém festeja o seu aniversário?". Também não. "Não era para fazer nada de mal, garantimos, era mesmo para celebrar. Mas parece que por estes dias não vamos cantar os parabéns a ninguém". Risos na sala.
Esse tempo parece agora distante, de certa maneira. O ambiente contagiante, de pessoas cheias de entusiasmo com o que aí poderia vir, deu lugar a algum cansaço. "É normal que as pessoas não estejam atentas das oito da manhã até às cinco da tarde só com o intervalo do almoço", considera Inês. "Agora, para não estarmos sempre nessa correria, a cada duas horas de discussão de um tema há uma pausa. Era tudo muito corrido e a certa altura já estavam todos a olhar para o telemóvel, quem falava gastava metade do tempo a dizer que esperava que ainda a conseguissem ouvir", explica.
Por outro lado, "as pessoas estavam a ficar desanimadas, parecia que ia ser tudo online, o que além de ser mais cansativo torna mais difícil a participação", adianta. Alguns desistiram, vieram novos embaixadores, em parte "porque também não perceberam o conceito; as recomendações são votadas por maioria e os representantes têm de as defender mesmo que não concordem com elas".
O painel sobre migrações e o papel da Europa no mundo está um pouco atrasado, não só por causa da pandemia, como porque "faltou organização nas reuniões. Por exemplo, o nosso grupo trocou de presidente em janeiro — o que foi bom, porque o anterior nunca apareceu. Mas atrasámo-nos e ainda estamos a tentar recuperar, ver a direção que queremos seguir", adianta Inês.
Os painéis dois e três, sobre democracia, Estado de direito e segurança, e sobre alterações climáticas, ambiente e saúde, respetivamente, apresentaram no passado fim de semana as suas recomendações finais, 90 no total, 39 de um lado, 51 do outro.
Guy Verhofstadt, ex-primeiro-ministro belga e deputado do Parlamento Europeu, impressionou-se com "a confiança com que os representantes dos cidadãos defenderam as suas recomendações nos debates com políticos experientes".
Também por isso, Clément Beaune, secretário de Estado para os Assuntos Europeus francês e representante da Presidência do Conselho da UE, considera que "o plenário deve seguir as recomendações dos cidadãos. É este o desafio que temos de enfrentar em conjunto na Conferência sobre o Futuro da Europa".
Para a vice-presidente da Comissão Europeia, a croata Dubravka Šuica, que sempre teve "plena confiança neste processo desde o início", as expectativas foram ultrapassadas. "Estou impressionada com a elevada qualidade das recomendações adotadas pelos painéis de cidadãos europeus e nacionais que concluíram o seu trabalho até à data".
Quase 500 mil pedidos de asilo na UE em 2020
Em 2020 foram feitos 471 300 pedidos de asilo na União Europeia, menos 32,6% do que em 2019 e menos de metade dos pedidos registados em 2015 e 2016, mais de um milhão (neste período foram detetadas 2,3 milhões de travessias ilegais).
Só na Áustria os pedidos de asilo continuaram a aumentar (17,5%). A Alemanha continuou a ser o principal país de destino, representando 24,6% de todos os candidatos que fizeram o pedido pela primeira vez, seguida da Espanha, França, Grécia e Itália. Portugal, neste contexto, é uma formiga, recebeu apenas 1 002 pedidos.
Os migrantes que pedem asilo são aqueles que temem que a sua vida esteja em risco no país de origem, enquanto refugiados são pessoas com medo fundado de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, política ou pertença a um grupo social particular que foram aceites e reconhecidos como tal no país anfitrião.
Atualmente, os nacionais de países terceiros devem solicitar a proteção no primeiro país da UE em que entram. Ao fazê-lo, tornam-se requerentes de asilo, recebendo o estatuto de refugiado ou uma forma diferente de proteção internacional logo que haja uma decisão positiva das autoridades nacionais, o que pode levar meses.
A 1 de janeiro de 2019, o número de pessoas residentes num país da UE com nacionalidade de um país terceiro era de 21,8 milhões, ou seja, 4,9% da população dos 27 países da União Europeia.
As razões da migração são várias, vão de motivos sociopolíticos, como a perseguição étnica, religiosa, racial, política ou cultural, a fatores económicos, como fome, emprego ou oportunidades na área da educação, passando por questões ambientais, desastres naturais como inundações ou terramotos (estima-se que até 2050 haja entre 25 milhões e mil milhões de refugiados ambientais).
A questão das migrações exige por isso um sistema europeu moderno de migração e asilo, de gestão das fronteiras, de cooperação com países parceiros e de luta contra a introdução clandestina de migrantes, a par da proteção das pessoas que fogem da violência e da integração de recém-chegados na sociedade.
Por este motivo, no final de setembro de 2020 a Comissão Europeia propôs um Novo Pacto em Matéria de Migração e Asilo, que os define procedimentos a tomar em toda a União Europeia.
"Não estou muito crente naquilo que o novo pacto trará"
A deputada Isabel Santos, do grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu, eleita pelo Partido Socialista, considera que têm sido dados passos positivos, nomeadamente a criação da Agência Europeia para o Asilo, que dará à UE "outra capacidade de intervenção e de alocações de recursos", que "agora são maioritariamente temporários". Mas, ainda assim, não está "muito crente naquilo que o novo Pacto trará".
A nova Agência, criada em novembro do ano passado, resulta da transformação do Gabinete Europeu em Matéria e Asilo, e deverá ser dotada de um corpo permanente de dez mil guardas de fronteira até 2027.
"Não podemos esquecer, no entanto, que o que está previsto no Pacto sobre a Migração e o Asilo não é, de todo, uma resposta baseada naquilo que sempre defendemos: um mecanismo assente na solidariedade obrigatória. Porque, como dizia Jorge Sampaio [ex-presidente da República], a solidariedade não é opcional", afirma Isabel Santos. "E também não é opcional entre Estados europeus, esse é um dos valores em que assenta a construção da União Europeia".
Só que, ao contrário, "vemos a atitude de alguns países a fecharem fronteiras, a fazerem pushbacks [enviar migrantes de volta] em condições desumanas, uma coisa absolutamente dramática", diz a deputada. "Isto não é aceitável em nenhuma circunstância, porque as pessoas devem ter direito ao acesso à fronteira em condições de segurança e o acesso ao pedido de asilo tem de ser garantido. Qualquer ato que contrarie isto viola a Declaração de Genebra e não pode ser aceite entre nós".
Segundo o modelo agora definido, cada país escolhe o que fazer, caso o migrante não tenha direito ao asilo, e pode optar por patrocinar o financiamento do retorno ou por acolher. "Teremos os chamados países da boa vontade a continuar a acolher, a abrir as suas fronteiras, e teremos os outros países, que geralmente identificamos como o Grupo de Visegrado [Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia], a dizer "não queremos nem mais um migrante, nem mais um refugiado, fechamos as nossas portas e patrocinamos os retornos", diz a deputada.
Para Isabel Santos, uma vez mais, isto "não é aceitável, até porque temos os países da linha da frente, que foram países generosos em muitos momentos, que sentem cada vez mais o peso de acolherem um número que, aparentemente, é excessivo quando comparado com outros países", tudo porque "não houve solidariedade na repartição das nossas responsabilidades" e "nunca chegámos a ter verdadeiramente um mecanismo de recolocação que funcionasse".
A eurodeputada ainda não conseguiu assistir às reuniões da Conferência sobre o Futuro da Europa e não conversou com qualquer grupo de cidadãos, mas aproveita para dizer que é importante ter em conta que "só cerca de 14% das pessoas que necessitam de protecção internacional procuram os países ditos mais desenvolvidos, que não são apenas os da UE, é também o Canadá, os Estados Unidos e por aí fora. Cerca de 86% estão alojados em países vizinhos, países como o Líbano, que tem quase um milhão de refugiados, que representam quase um terço da sua população, e que está neste momento a viver uma crise social, económica e política dramática", adianta. E recorda também a forma como a Jordânia tem recebido nas suas fronteiras os migrantes e refugiados e os tem acolhido. "Não podemos nem falar de crise, porque se há alguma crise nesta matéria, se alguma vez houve, foi de indecisão política, de falta de coragem política e de solidariedade entre os países europeus", denuncia.
Para já, "é necessário que os países estejam abertos e se socorram destes apoios. Depois é preciso que cada país crie o seu modelo, que não será perfeito à partida, mas que estará sempre em progresso", acredita Isabel Santos. "Na questão da integração, as comunidades locais têm um papel fundamental", acrescenta. "Não podemos tratar as pessoas que estão a ser acolhidas como coisas que metemos em gavetas. Temos de as ouvir, perceber as suas aspirações, tão genuínas quanto as nossas. E nós, portugueses, devíamos entender isto melhor do que ninguém, porque somos um país de emigrantes".
Há mais de cinco anos, a União Europeia fez um acordo de interesses com a Turquia: fiquem aí com estas pessoas, que não queremos no nosso território, e em troca disso tomem lá seis mil milhões de euros. "E é isso que continuamos a dizer, e é isso que temo que continuemos a dizer mais adiante em relação a outros países", explica Isabel Santos. "Não só não queremos essas pessoas, como também não nos interessa o que fazem com elas".
Isabel Santos acredita que "a história acabará por nos julgar, a União Europeia tem tido uma atitude muito negativa nesta matéria. Basta pensar, por exemplo, num estudo que prevê que a Alemanha perca 11 milhões de pessoas em idade ativa até 2050. Quando a senhora Merkel abriu portas a um milhão de pessoas não estava só a ser generosa, tinha uma visão de futuro das necessidades do seu país. E é preciso que todos nós tenhamos a visão das necessidades dos nossos países e que se faça uma paragem para pensar o futuro, porque isso vai condicionar o nosso crescimento".
É sobre todos estes temas, incluindo objetivos e estratégias para a segurança, defesa, política externa e comercial, ajuda humanitária e cooperação para o desenvolvimento ou alargamento da UE que o painel sobre as migrações constituído por 200 cidadãos deverá pronunciar-se entre os dias 11 e 13 de fevereiro, num evento organizado pelo Instituto Europeu de Administração Pública, em Maastricht, nos Países Baixos.
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