Como é sabido, o famigerado Relatório Mueller, que levou dois anos a preparar, causou bastante destruição pelo caminho: dezenas de indivíduos foram acusados, estão a ser julgados ou foram condenados por casos relacionados com a investigação do Procurador Especial. Em especial, homens muito próximos da Casa Branca foram apanhados a mentir, ou pior: o General Michael Flynn, Paul Manafort, Michael Cohen e Roger Stone, para citar os mais mediáticos.

Mas o que interessava toda a gente, amigos e inimigos, era saber se realmente Trump tinha participado num “conluio” com os russos para chegar à presidência. O próprio via a investigação de Mueller como um sério perigo; segundo as notas tomadas numa reunião por Jody Hunt, Chefe de Gabinete do ex-Procurador Geral (Ministro da Justiça, no nosso sistema) Jeff Sessions, quando soube da nomeação dum Procurador Especial, Trump desabafou: “Oh meu Deus! Isso é terrível. É o fim do meu mandato. Estou fo....”

Evidentemente que uma pessoa ficar preocupada com uma investigação formidável prestes a cair-lhe em cima não significa que seja culpada. Significa que tem consciência das minúcias sobre a sua vida, dos seus assessores e do seu Governo que vão ser escrutinadas, revelando eventualmente factos inconvenientes e prejudiciais.

Durante todo o tempo em que a enorme e temível equipa de Mueller fez as investigações, sempre blindada com um silêncio total (excepto para os processos contra associados de Trump que eram enviados a procuradores públicos para acusação), Trump nunca escondeu a sua preocupação e irritação, repetindo milhares de vezes as expressões “caça às bruxas” e “não há conluio nenhum”.

Humilhou incontáveis vezes Jeff Sessions, por achar que este tinha por missão defendê-lo e que o tinha traído ao escusar-se a supervisionar Mueller, acabando por despedi-lo de forma aviltante. Considerou, em público e em privado, e em várias ocasiões, demitir Mueller, e isso só não aconteceu porque o advogado oficial da Casa Branca, Donald McGahn, se recusou a fazê-lo, ciente de que seria o suficiente para o Congresso começar um processo de impeachment. Aliás, a constituição do Procurador Especial foi directa consequência de Trump ter despedido o director do FBI, James Comey, por estar a investigar as ligações da equipa do Presidente com os russos.

Segundo o sistema americano, o Procurador Especial é tutelado pelo Ministério da Justiça e é a ele que tem de entregar o relatório final das investigações. Com a recusa de Sessions de travar, ou atrasar, ou impedir as investigações, e na sequência do seu despedimento, quem ficou com o direito foi o Secretário de Estado da Justiça, Rod Rosenstein, que Trump também pressionou constantemente. Rosenstein aguentou a pressão, mas agora, que a sua “missão” de proteger Mueller terminou, já anunciou que se vai embora.

Trump nomeou então para Ministro da Justiça William Barr, um jurista que já tinha desempenhado o cargo em 1991-93, quando era Presidente Bush pai, e cujo conceito da inimputabilidade da Presidência é conhecido há anos. Em várias ocasiões, como quando foi do escândalo “Irão-Contras” (na presidência Reagan) e em entrevistas e escritos, Barr mostrou-se sempre favorável à impossibilidade de indiciar criminalmente um Presidente. A escolha de Trump foi no sentido de ter um Ministro da Justiça capaz de fazer o que constitucionalmente não pode fazer, servir de defensor do Presidente.

Finalmente, a 22 de março, uma sexta-feira, Mueller entregou o relatório de 443 páginas a Barr, como lhe competia. A pressão para que o documento se tornasse imediatamente público, ou pelo menos acessível ao Congresso, era tremenda. Os advogados de Trump terão tido esse acesso imediato, suspeita-se. Mas Barr, alegando, e bem, que havia partes do relatório que se referiam a pessoas e situações envolvendo a segurança nacional, limitou-se a publicar um resumo de quatro páginas na segunda-feira seguinte, enquanto a sua equipa tratava de editar (“redact”) o texto para ocultar essas referências.

créditos: Eva HAMBACH / AFP

No resumo, Barr cita Mueller, que alega enigmaticamente que não há provas de que o Presidente tenha “conluiado” com os russos, mas também não há provas contrárias. O próprio Barr, que não escondeu as suas preferências, enfatizou logo que não houve conluio. Trump, rejubilante, afirmou imediatamente: “O dia está muito bom para mim. Não há concluio, não há obstrução (de justiça)”. E acrescentou: “Uma coisa destas nunca mais pode acontecer a um Presidente. Um embuste destes.”

A alegria de Trump contrasta, evidentemente, com a frustração dos democratas, da comunicação social desafecta ao Presidente (praticamente toda, se exceptuarmos a Fox News, que é mais um canal opinativo do que informativo) e a parte da população que estava à espera de revelações bombásticas.

Contudo, apesar de Trump se considerar completamente ilibado de tudo, a situação não é tão clara. Como diz a jornalista Margaret Carlson no The Daily Beast: “Ninguém diria que Mueller e Barr trabalham para o mesmo Ministério da Justiça, uma vez que Barr só argumentou a favor de Trump, em como Mueller não acusou Trump de obstrução de Justiça, não porque as normas do Ministério o impeçam, mas porque o Presidente não a cometeu — ao contrário do que prova Muller. E o Ministro ainda acrescentou que, caso houvesse, seria justificável porque Trump estava compreensivelmente 'frustrado' com a 'indecência' do processo”.

Finalmente, a 3 de abril, o Ministério da Justiça tornou público o relatório de Mueller, com centenas de páginas “editadas” (o processo consiste em cobrir de tinta preta as partes que não podem ser públicas). Toda a gente se debruçou sobre aquela imensa obra (maior do que o “Crime e Castigo” de Dostoiévski, alguém lembrou.) À medida que as várias equipas – do Congresso e das redacções – esmiuçavam os pormenores possíveis de ler, começaram a surgir as interpretações e as especulações.

A conclusão mais evidente – indiscutível, digamos - é que Trump não conspirou directamente com os russos (o que seria desnecessário, uma vez que tinha na sua equipa muita gente desejosa de fazê-lo, como o relatório demonstra). Aliás “conluio” não é um delito previsto na legislação.

Por outro lado, é igualmente evidente que o Presidente cometeu um crime especificado legalmente: obstrução de Justiça. De todos os relatos entretanto publicados e acusações feitas pelos democratas, baseamo-nos na lista sucinta apresentada pelo jornal “The Boston Globe”.

O jornal começa por afirmar que “mesmo colocando de lado o conluio com os agentes russos que tentaram interferir na eleição de 2016, e que Mueller concluiu que não atingiu o nível duma conspiração ilegal, é difícil ignorar a alegria com que Donald J. e uma série de participantes na campanha eleitoral activamente procuraram e aceitaram factos danosos sobre Hillary Clinton fornecidos por um Governo inimigo. Uma atitude nojenta de anti-americana.” Depois, a lista:

  1. Trump deu ordens ao então director do FBI, James Comey, para encerrar a sua investigação sobre o ex-assessor de Segurança Nacional, Michael Flynn, que tinha mentido ao FBI sobre os seus contactos com o embaixador russo durante a transição presidencial;
  2. Trump tentou que o então Ministro da Justiça, Jeff Sessions, retirasse a sua escusa de participar na investigação sobre a interferência russa, dizendo que precisava dum ministro que o protegesse. Também tentou intimidar Comey e outros agentes de segurança (“inteligence officals”) para que afirmassem publicamente que ele não estava a ser investigado como parte envolvida na investigação russa (o que eles não fizeram).
  3. Trump despediu Comey, que estava a dirigir a investigação sobre a Rússia, e mentiu sobre as razões por que o despedia.
  4. Trump disse repetidamente ao advogado oficial da Casa Branca, Donald McGahn, para mandar o Secretário Geral da Justiça, Rod Rosenstein, para se livrar de Mueller. (...) (McGahn não o fez e até pensou em demitir-se por causa disso.) (...)
  5. Trump continuou a tentar evitar que a equipa de Mueller escrutinasse a sua conduta e da sua equipa de campanha, desta vez usando canais exteriores à Casa Branca, incluindo o gerente da campanha Corey Lewandowski. (Está no relatório: “O modo como o Presidente agiu fornece prova adicional das suas intenções” (...) (Lewandowski não o fez, mas tentou convencer outro funcionário da Casa Branca, Rick Dearborn, que, como tantos outros, recusou.)
  6. Trump reescreveu um comunicado de imprensa sobre o encontro na Trump Tower entre o seu filho e uma advogada russa ligada ao Kremlin para enganar o público quanto aos motivos do encontro.
  7. Trump hostilizou Sessions entre Março de 2017 e Agosto de 2018 para que desistisse da sua recusa. Escreveu Mueller: “A persistência dos esforços do Presidente para que Sessions desistisse da recusa podem ser considerados actos de obstrução”
  8. Trump mentiu quanto a ter dito a McGahn para mandar Rosenstein despedir Mueller. Iludiu a questão, dizendo que nunca usou a palavra “despedir”. Trump também queria que McGahn mentisse, fazendo uma declaração a confirmar que Trump nunca lhe tinha dito o que realmente lhe disse para fazer. (...)
  9. Trump tentou influenciar os testemunhos e a cooperação com a Justiça tanto de Flynn como do ex-director de campanha Paul Manafort. Tentou impedir Flynn de cooperar com os investigadores, dizendo aos advogados particulares de Flynn que a decisão de separar uma defesa comum com a equipa legal de Trump seria vista como uma “atitude hostil”. No caso de Manafort, Trump repetidamente considerou a hipótese de lhe dar um Perdão Presidencial. Manafort acabou por mentir aos inquiridores.
  10. Trump também tentou influenciar o depoimento do ex-advogado Michael Cohen, pedindo-lhe que “mantivesse o discurso”, não se contradissesse ou agisse por conta própria. O relatório afirma de que há provas de que Trump sabia que Cohen tinha mentido ao Congresso sobre o projecto da Trump Tower em Moscovo.

Agora que Trump considera que ganhou a “guerra” contra a Comissão Especial de Mueller, é natural que a Casa Branca passe ao ataque. Está na altura de voltar ao artigo cirúrgico de Margaret Carlson no The Daily Beast:

“Trump, convencido que ele sozinho foi mais esperto do que o 'Estado Oculto' (deep state), está agora à solta para ser uma versão mais refinada de si próprio. Vai ouvir ainda menos os seus assessores, com excepção dos mais servis, como o recém nomeado Ministro da Justiça, que seguiu à letra o seu resumo de “não há conluio” no relatório Mueller, chegando perto de lhe chamar um 'monte de m...' (bullshit)"

"O que Barr ainda não percebeu é que a Casa Branca não é uma versão do programa Apprentice, mas sim de outro sucesso televisivo, Survivor, onde um grupo de pessoas que não se conhece está num local isolado, competem por recompensas e rezam para não serem eliminados. Trump é a estrela da versão presidencial em que ele é o único sobrevivente. Os outros todos acabam por ser expulsos da ilha, magoados pela experiência e desejosos de voltar à sociedade civilizada. Todos os que trabalham na Casa Branca devem ter observado a procura de um substituto para a Secretária da Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, e estarão a pensar em sair dali. Os que ainda estão no Governo são os que cedem aos piores impulsos de Trump. Esta semana assistiu-se aos comentários nostálgicos sobre sobre o ex-conselheiro jurídico Don McGahn, por se ter portado como um verdadeiro advogado e tomar notas do que ia acontecendo e se recusar a despedir Mueller, apesar das invectivas de Trump. (...) O actual chefe de Gabinete, Mick Mulvaney, só pode suscitar nostalgia pelo seu predecessor Reince Priebus, o funcionário choramingas que se sentia 'abençoado' por estar na Casa Branca, e por Steve Bannon, o malvado supremacista branco que foi despedido por ter mau aspecto."

E continua: "Sarah Huckabee Sanders (a porta-voz) continua tão subserviente como Mulvaney. (...) Sem a supervisão dum 'adulto' a equipa de Steven Miller acaba de obter a aprovação do Ministério da Justiça para manter fora do território os que pedem asilo no país, deixando-os encurralados no México durante anos. E está a planear inundar a São Francisco de Nancy Pelosi e outras cidades conhecidas como 'santuários' com (milhares de) imigrantes da América Central.”

Sabemos agora formalmente o que já era evidente há muito tempo: Donald Trump, que tem um grande talento para se incriminar a si próprio, cometeu repetidamente um crime, obstrução de Justiça, suficiente para o Congresso começar um processo de impeachment.

Para os seus adeptos nenhum crime o pode atingir. Mas para os seus adversários, ou para aqueles que apenas exigem que as leis da nação sejam respeitadas, estamos perante uma situação clara. A pergunta é, o que fazer?

Muitos democratas estão prontos para o impedimento. Aliás, já estavam há muito tempo. Há um cansaço com o constante desgaste que este Governo tem infligido ao país, com a sua constante agressividade e o antagonismo que provoca entre os cidadãos, que até ultrapassa as opiniões sobre a política nacional e internacional que Trump prossegue. Se “America First” [América Primeiro], o desprezo pelos aliados e simpatia pelos inimigos, a anti-imigração e, em geral, o papel dos Estados Unidos no mundo, são questões discutíveis, a personalidade narcisista, as mentiras do Presidente e o divisionismo que provoca na sociedade é um problema que precisa de ser resolvido – e, tudo indica, só será quando ele sair do cargo.

Mas o impedimento pode não ser a solução. Primeiro, porque não é certo que se consiga. O Senado, dirigido pelo subserviente e amoralmente partidário Mitch Mcconnell, em caso algum apoiará tal processo. Segundo, porque, historicamente, o partido que propõe o impeachmet é sempre prejudicado na eleição seguinte. É uma medida eticamente correcta, mas estrategicamente fraca. Por isso os democratas estão divididos. Há os que preferem arriscar já, e os que acham melhor usar os erros do Presidente para o derrotar nas eleições de 2020. Mas por enquanto há 20 candidatos democratas, e nenhum parece ter as habilidades necessárias para derrotar um homem tão popular.

A opinião que o resto do mundo tem sobre Donald Trump não tem nada a ver com o modo como é visto pela América profunda. E os principais inimigos dos Estados Unidos – inimigos confessos e evidentes – preferem-no a um presidente mais previsível e com diferente visão estratégica.

Os próximos meses serão decisivos. Mas esta afirmação tem o sabor dum lugar comum; quando é que, na História das nações, os próximos tempos não foram decisivos?