Quando alguém morre, as atenções dos familiares não estão centradas no que envolve todo o processo fúnebre. Embora tudo pareça imediato e repetitivo quando se pensa na morte, um funeral implica mais do que uma agência funerária ir buscar o corpo, organizar o velório e restantes cerimónias, levar o caixão numa carrinha para o cemitério ou para o crematório. Tudo isso é consequência do que foi tratado anteriormente — e que pode demorar mais ou menos conforme a altura do ano.

Em agosto (e também em dezembro), as férias judiciais atrapalham os funerais e os os padres também estão muitas vezes de férias, pelo que pode ser mais difícil agendar as exéquias religiosas.

Além disso, as greves nos tribunais, que se acumulam desde o ano passado, também acabam por afetar os passos necessários ao nível legal no que diz respeito à morte de uma pessoa, já que existem autorizações que passam pelo Ministério Público (MP).

"As greves também se marcam para as pontes para haver muita adesão"

Quais os procedimentos legais quando morre alguém?

No caso de uma morte natural, que seja facilmente justificada, a pessoa não precisa de ser autopsiada, pelo que não é necessária qualquer autorização do Instituto de Medicina Legal nem do Ministério Público para dar continuidade ao processo. Nessas situações, a certificação de óbito feita pelo médico autoriza legalmente, 24 horas depois, a sepultar ou a cremar.

Todavia, no caso de um acidente a situação já é diferente: todas as pessoas que falecem nestas circunstâncias são sempre autopsiadas, mas para isso é preciso seguir uma determinada linha de entidades e obter a sua autorização. E é aqui que tudo pode complicar.

Na prática, o processo começa com a polícia no local, que levanta um auto e ouve as declarações prestadas por quem possa ter presenciado o sucedido. Depois, é enviado um documento da certificação do óbito para o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF).

Ao mesmo tempo, o comandante do posto correspondente — PSP ou GNR, conforme o local da ocorrência — assina também o documento e os agentes que estão ao serviço entregam-no no tribunal, para seguir para o Ministério Público, para o magistrado de serviço avaliar a situação e emitir o pedido de autópsia.

"O Ministério Público tem de estar para os presos e para os mortos"

Por sua vez, na eventualidade de a pessoa morrer em casa, cabe a quem vai na Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) fazer a certificação e o corpo segue para o Instituto de Medicina Legal. O Ministério Público também entra em ação: mais uma vez, o magistrado de serviço lê o processo e lavra um documento a dizer se é um caso para dispensa da autópsia ou para pedido de autópsia. Contudo, todo o trâmite é por vezes demorado — e nenhuma agência funerária pode levantar um corpo sem ter a documentação toda.

Mas o processo pode não terminar aqui, já que para cremar, além de todos os passos anteriores, tem de haver um requerimento de pedido de cremação ao Instituto de Medicina Legal e é o médico que faz a autópsia quem toma essa decisão. Se for uma resposta positiva, o documento segue para o tribunal, que também tem de autorizar.

Um sistema caótico na Margem Sul e no Algarve

Para as agências funerárias, em constante contacto com as famílias enlutadas, é essencial haver informação quanto a todos estes trâmites legais. Afinal, se não existir uma rápida resposta por parte do Ministério Público, toda a organização do funeral pode atrasar.

Carlos Almeida, presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), denuncia ao SAPO24 que existem casos bastante demorados também devido às greves dos oficiais de justiça. "Nomeadamente na Margem Sul é uma vergonha, chega a ser preciso esperar uma semana para haver um despacho".

"Comarcas como Almada, Seixal e Sesimbra são do pior. Tive uma pessoa que faleceu na terça-feira da semana passada [dia 13 de agosto], a decisão judicial só saiu a 21 e o funeral teve de ficar para o dia seguinte", exemplifica. Neste caso, diz que o problema se agravou devido ao feriado de 15 de agosto. "As greves também se marcam para as pontes para haver muita adesão".

Também o Algarve é mais afetado por estas questões. "O Barlavento tem sede em Portimão e o Sotavento tem sede em Faro. O Algarve está dividido ao meio e os cadáveres vão ou para um lado ou para outro. A resposta da medicina legal no sul também demora, os tribunais demoram cerca de quatro dias a dar despacho".

"É um filme adiado. Ligamos de manhã e não há despacho. Ligamos à tarde e não houve por isto ou por aquilo"

Apesar de este mês o problema agravar devido às férias, a verdade é que os casos sucedem todo o ano. Afinal, os oficiais de justiça têm duas greves em curso: desde 10 de janeiro do ano passado, todos os dias durante as tardes, sem serviços mínimos, e também desde 28 de junho nas manhãs de quarta e sexta-feira, por tempo indeterminado. Com isto, os constrangimentos fazem-se sentir em várias áreas.

"O Ministério Público tem de estar para os presos e para os mortos. Se isso não são serviços mínimos num tribunal, então não sei o que sejam. Adiar-se uma sessão de julgamento, tudo bem. Agora este tipo de coisas devem ser sempre consideradas como urgentes. É uma insensibilidade atroz", frisa Carlos Almeida.

"É um filme adiado. Ligamos de manhã e não há despacho. Ligamos à tarde e não houve por isto ou por aquilo. Provavelmente só no dia seguinte é que sabemos quando vem o corpo. E andamos nisto. E é quando atendem o telefone, porque há muitos tribunais que nem atendem telefones", reforça.

E a consequência também se vê na forma como é vivido o luto pelos familiares. "O processo tem de ser célere. Não é estar três dias para haver transporte e depois mais um ou dois dias para a decisão e se a decisão for de autópsia lá chegamos à semana, porque a medicina-legal também tem de planear o seu funcionamento. Tudo isto está demasiado lento e em desrespeito pelos sentimentos das pessoas".

"As pessoas enlutadas têm dias, e se cumprem os dias à espera da decisão, até poderiam nem estar presentes no funeral"

"Desejava-se que fosse tudo muito mais célere. As pessoas, na maior parte das vezes, até têm curiosidade em saber do que faleceram os familiares ao certo, não se opõem às coisas — opõem-se é ao tempo com que essas instituições se articulam, que sai do razoável", nota o presidente da ANEL.

Além disso, "as pessoas enlutadas têm dias, e se cumprem os dias à espera da decisão, até poderiam nem estar presentes no funeral. Isto é o mais comezinho, a um nível desumano, mas acho que não exista nenhuma entidade patronal que não deixasse um filho ir ao funeral. Tudo isto fica completamente atrofiado, as pessoas nem têm um luto tranquilo".

"Esta organização médico-legal e judicial está mal. Tem de se corrigir urgentemente. Têm poucas pessoas? Arranjem mais"

"Depois, quando o cadáver chega junto deles, ao fim de oito dias, já não prestam a mesma homenagem. No mínimo, mesmo conservando o corpo em câmara de frio, esse tempo está a agir contra nós em termos de apresentação do cadáver e tudo o resto, ainda por cima sofrendo o exame necrópsico pelo meio", alega.

Como resolver?

Para Carlos Almeida, é preciso encontrar soluções. "Esta organização médico-legal e judicial está mal. Tem de se corrigir urgentemente. Têm poucas pessoas? Arranjem mais. Têm poucas instalações? Arranjem mais. Agora, não andem a tapar o sol com a peneira, porque isto é uma vergonha".

Mas não funciona mal em todos os sítios. Ao contrário do que é habitual em muitos temas, na capital existem menos problemas. "Lisboa tem uma secção impecável, atendem sempre o telefone e positivamente aquilo funciona. Entra o processo, vai a despacho ao final da manhã, da parte da tarde temos decisão. Acabou, não podemos pedir mais. Se em Lisboa é possível fazer, nos outros sítios também é possível".

"Há legislação já bem mais avançada e mais próxima do que permitia que Portugal deixasse de ser um país de terceiro mundo nesta matéria"

"É preciso uma estrutura médico-legal para que os cadáveres não tenham de ser deslocados. Depois, é preciso haver celeridade quando as autoridades ou o hospital comunicam, é preciso que o MP dê um despacho objetivo. Porque, quando falecem em casa e é a polícia a relatar ao tribunal, os cadáveres vão mais rapidamente para a medicina legal do que aqueles que vão falecer ao hospital", evidencia, já que "quando saem do local do óbito vão logo diretos, enquanto que os do hospital ainda têm de articular o transporte. Mas não quer isso dizer que a autópsia aconteça mais rápido. Se a parte administrativa é lenta, então não há milagres", acrescenta Carlos Almeida.

Contudo, talvez a resposta não esteja assim tão longe — mas é preciso que seja colocada em prática. "Até há legislação já bem mais avançada e mais próxima do que permitia que Portugal deixasse de ser um país de terceiro mundo nesta matéria — aqui estamos em Marrocos de cima —, para ser tudo mais célere. A lei orgânica da medicina legal já prevê a criação dos gabinetes médico-legais [em mais locais do país], mas eles têm de funcionar de facto. Um gabinete estar a funcionar com um médico avençado, que vai lá fazer autópsias quando se despacha das consultas, duas vezes por semana e nas horas que lhe apetece, também não é solução. É como o médico que trabalhava em três hospitais e nunca estava em nenhum, com os doentes sempre à espera. Acaba por ser isso", remata. E, no fim, a conclusão é só uma: é preciso que tudo se resolva, para que as famílias não estejam no limbo".