Lina foi presa por tráfico de droga. Esteve dois anos e meio no Estabelecimento Prisional de Tires e, depois de cumprida a penitência, saiu em liberdade. É fácil, mas injusto, resumir e simplificar a história de uma reclusa a duas linhas de texto, porque a realidade é nebulosa.

Lina nasceu na Colômbia, numa região com um nome de um país europeu, a Arménia. Está na casa dos trinta, tem um filho com 15 anos e foi uma “situação de desespero” que a trouxe a Portugal, país que não conhece mas onde está presa. “Entrei aqui por ser correio”, conta Lina, “e acho que quem faz isso, faz por estupidez. Achava que, ao fazer isso, iria resolver um problema e o que fiz foi tornar as coisas piores. Se fosse agora, nunca na vida voltaria a fazê-lo. Foi uma situação de desespero. E a liberdade é a vida. Porque isto para mim não é vida.”

Na prisão, Lina tenta fazer o tempo passar mais depressa com o apoio de duas muletas: os livros e a costura. Quando não está a trabalhar, lê Isabel Allende e Gabriel García Márquez e, quando não está a ler, costura malas para o projeto Reklusa. Também escreve - um diário - mas confessa que assim que sair vai queimá-lo, “para começar uma nova vida”. Quando deixar para trás este capítulo, conta que “a primeira coisa que quero fazer é ver o meu menino, o meu companheiro. E logo começar a viver, normalmente, procurar um emprego e ver o que me espera no futuro”.

A história de Lina é relatada em “Ala Feminina”, o mais recente livro da jornalista Vanessa Rodrigues sobre prisões femininas, editado sob a chancela da Edições Desassossego. São dezassete as histórias passadas entre Talavera Bruce (Rio de Janeiro), Santa Cruz do Bispo (Matosinhos) e Tires (Cascais), estabelecimentos prisionais onde a jornalista entrou para "ouvir, escutar, partilhar…para nos levar a universos que nos são muitas vezes alheios”, diz ao SAPO24.

A caminhada de Vanessa por alas prisionais femininas começa por acaso. A jornalista ia fazer uma reportagem à prisão masculina de Bangu, no Rio de Janeiro mas, por medo que a entrada de uma estrangeira despoletasse violência, foi redirecionada para Talavera Bruce, uma penitenciária feminina que na altura albergava 375 reclusas e onde realizou entrevistas que figuram no livro. Adicionalmente, desse acaso surgiram duas reportagens sobre prisões femininas portuguesas (Santa Cruz do Bispo e Tires) e indagações que ficavam por esclarecer: “O que é a reclusão feminina? Quais são os sonhos e as expectativas destas mulheres? Quais são as suas histórias de vida? Quais são os direitos dos reclusos e das reclusas? Que projetos sociais existem nas reclusões femininas?”

O “Ala Feminina” surge dessas inquietações, que motivaram a autora a “desconstruir eventuais preconceitos desse universo de reclusão feminina”, como escreve. O resultado “não é um estudo académico, são histórias de vida”. O objetivo? “Dar a entender à sociedade civil o que é que é a reclusão, porque há muitas imagens feitas sobre o universo de reclusão e o universo de reclusão feminina, mas são universos muito distintos; são mulheres com sonhos, com inquietações e com contextos de vida muito diferentes.”

Misturando literatura, jornalismo, poesia e fotografia, Vanessa descreve o livro como tendo uma lógica quase diarística, porque o que liga as narrativas destas mulheres não é apenas a “condição da reclusão feminina”, mas também a própria autora - “eu não fui jornalista neste livro; sou alguém que escutou as histórias e usou as ferramentas do jornalismo - porque é a minha formação -, mas que também usou outras linguagens, porque eu envolvi-me com estas histórias e relacionei-me com estas mulheres. O livro tenta, com essas camadas de linguagem, ‘narrativizar’ as histórias para nos levar a ver coisas que não veríamos normalmente”.

Vanessa sabe o nome das dezassete mulheres de cor e quase não hesita quando relembra pequenas histórias de cada uma delas. Quando questionada sobre como é que conseguiu estabelecer ligações com estranhas em tão pouco tempo (algumas entrevistas duraram menos de dez minutos), revela que foi uma “escutadeira”: “Fui alguém que escutou as histórias sem quaisquer julgamentos e quase sem capacidade de fazer perguntas. Elas contaram a história que elas quiseram e, pela primeira vez, não era uma advogada, nem um juiz, nem um diretor de um estabelecimento prisional, nem um familiar a ouvir.”

Dupla punição

“Quando fui presa, só pensava na minha família. Eles não têm nada a ver com isso e estar aqui fechada, só penso no sofrimento que causei e estou a causar aos outros, é a minha maior pena. Isso é o mais difícil. E isso eu não consigo apagar.” O sentimento de Lina é o de todas as outras mulheres entrevistadas. A ideia de “dupla punição”, como lhe chama Vanessa Rodrigues, parece ser algo intrínseco à reclusão feminina.

“No contexto da reclusão feminina há”, explica a autora, “diferentemente do universo masculino - muito embora eu não queira generalizar -, esta dupla punição de terem sido presas por terem cometido um delito e a outra punição que é estarem longe da família, muitas vezes dos filhos, que é algo constante. ‘Eu estou presa mas a minha família também está a sofrer’, então vivem uma vida dupla: a vida que estão a viver lá fora, de uma forma quase projetada mentalmente, e depois a vida que vivem dentro. Há aqui uma lógica de duplo sofrimento e muitas vezes até de uma solidão imensa.”

Esta maneira de viver a reclusão repartida entre o ‘exterior mental’ e o ‘interior físico’ difere do que acontece no caso dos homens em reclusão. Das conversas que a autora teve com as entrevistadas e com psicólogos, técnicos, assistentes sociais e sociólogos, e advertindo que não conhece o universo da reclusão masculina, há uma tendência que parece emergir: "normalmente as mulheres são abandonadas pelos seus companheiros e passam a reclusão sozinhas, enquanto que na reclusão masculina, se nós nos pusermos à porta [das prisões], a assistir a um momento de fila de visitas, nós praticamente só vemos mulheres…mulheres e filhos. As mulheres continuam a visitar os seus maridos que estão reclusos, ou seja, não há um corte dessa relação delas em relação a eles, mas normalmente há um corte deles em relação a elas.”

Na conversas que teve com as reclusas, poucas fazem referência aos companheiros, confessa Vanessa Rodrigues. No universo da reclusão feminina, o corte que acontece com os companheiros não acontece com os filhos: “Essas mulheres continuam a ter os laços afetivos muito presentes com a família e com os filhos. O universo da reclusão masculina tendencialmente cria um corte com o mundo cá fora e eles vivem o mundo lá dentro. Enquanto que as mulheres não, é quase como se vivessem uma vida dupla: estão presas mas continuam a ter uma forte relação com o mundo cá fora, com uma dupla punição. Tendencialmente no universo masculino não, vivem o mundo endógeno da prisão, não o exógeno. Elas vivem nos dois.”

Diferenças entre as prisões do Brasil e Portugal

Segundo dados do World Female Imprisonment List (quarta edição, 2017), relatório produzido pelo Institute for Criminal Policy Research da Birkbeck, University of London, existem mais de 714.000 mulheres presas em estabelecimentos penais no mundo inteiro.

A análise mostra que a população prisional feminina aumentou muito mais rapidamente do que a população masculina desde o ano 2000, com o número de mulheres e raparigas presas a aumentar mais de 50%, enquanto que a população masculina aumentou 20%.

Na comparação entre os países com mais de 200.000 mulheres presas, o Brasil apresentava a quarta maior população carcerária feminina do mundo (44.700), atrás apenas dos Estados Unidos (211.870), da China (107.131) e da Rússia (48.478).

Por outro lado, Portugal é simultaneamente o quarto país mais pacífico do mundo (Global Peace Index) e tem das taxas mais elevadas de reclusos (128) por 100.000 habitantes, o que coloca o país acima da taxa média europeia de presos por 100 mil habitantes, fixada nos 115.7 reclusos.

Apesar de ser perigoso tentar comparar os dois países - o Brasil tem a dimensão de um continente, sublinha Vanessa Rodrigues - a autora pôde observar uma grande diferença entre a prisão brasileira e as prisões portuguesas que visitou na maneira como se ocupa o tempo. Tanto em Tires como em Santa Cruz do Bispo, existiam “possibilidades de ocupação do tempo com atividades construtivas do ponto de vista social”, tais como a oportunidade de prosseguir os estudos, ter um ofício, frequentar atividades relacionadas com a leitura ou as artes e “depois a oportunidade que essas duas prisões portuguesas têm de que as mulheres tenham os seus filhos consigo até aos 3 anos de idade.” No Brasil, o mesmo não acontece: “as mulheres tinham muito tempo de ócio, ou seja, não tinham nada para fazer. Havia muito poucas atividades dentro da prisão de Talavera Bruce que permitissem que essas mulheres ocupassem o tempo delas da melhor maneira possível, ou de uma forma que pudesse de alguma maneira dar-lhes ferramentas para o futuro.”

O tráfico de droga como crime feminino

Quando se fala de crimes relacionados com drogas, as estatísticas são reveladoras. De acordo com o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), no Brasil 62% das reclusas estão relacionadas com o tráfico de drogas; no caso dos homens presos a taxa desce para os 26% em relação ao mesmo tipo de crime.

O mesmo fenómeno acontece em Portugal: em 2016, 40,95% das mulheres presas (num universo de 857 reclusas) haviam sido condenadas por crimes relativos a estupefacientes, um número muito mais alto do que os 17,8% relativos a homens condenados pelo mesmo tipo de crime (dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais relativos ao terceiro trimestre de 2016).

Ainda que estes números possam ser surpreendentes, o crime feminino continua a ser uma minoria, mesmo em países tão diferentes como Portugal e o Brasil. Os dados mais recentes da DGRSP mostram que a 1 de agosto de 2018 eram 823 as reclusas e 12.134 os reclusos em prisões portuguesas. Elas são apenas 6% da população prisional. A mesma taxa aplica-se ao Brasil, mas numa escala maior: o Brasil é o terceiro país do mundo com maior número de pessoas presas (726.712, junho 2016) mas a população carcerária feminina (44.700 reclusas) é apenas 5,8% do sistema penitenciário brasileiro.

Qual é a razão para esta discrepância nos números? “Não há uma única razão, há várias razões e muitas delas nós até desconhecemos”, responde Vanessa Rodrigues, “mas normalmente, daquilo que eu pesquisei da relação da mulher com o tráfico de droga, tem a ver com a promessa de uma vida melhor, uma vida fácil; então elas estão mais vulneráveis para serem apanhadas nessas redes. Por outro lado, tem uma relação, em alguns casos, com os próprios companheiros”. O nível de escolaridade também ajuda a explicar esta vulnerabilidade feminina? “Muitas vezes, não”, refuta a autora, “muitas vezes tem que ver com momentos de vida e contextos de vida em que a emoção, a vontade de uma vida melhor ou o desespero toldam completamente a razão ou a lógica. Porque muitas destas mulheres, sobretudo as relacionadas com tráfico de droga, confidenciam-me que nunca pensavam que fossem apanhadas.”

Para a jornalista, esta correlação entre o tráfico de droga e o crime feminino não tem uma única razão que a explique, mas diz que se prende principalmente com estas duas causas - o facto de muitas mulheres serem “oriundas de contextos sociais marginalizados” e de, muitas vezes, os seus parceiros já traficarem, torna-as num “público mais vulnerável”.

Para além de querer dar a conhecer com mais profundidade a realidade da reclusão feminina, com “várias camadas de linguagem”, Vanessa Ribeiro parece também querer transmitir uma segunda ideia-chave: que qualquer um de nós poderia ou poderá ver-se atrás de grades. “Há uma fronteira muito invisível em relação a estarmos dentro e a estarmos fora. Em algum momento alguma coisa podia ter corrido mal, desde logo nascermos num contexto social errado. Estas mulheres foram enredadas de alguma maneira num desespero de falta de oportunidades que as levou ao universo da reclusão.” E é precisamente com esta mesma ideia que a jornalista remata o primeiro capítulo do livro: “regresso do outro lado do muro, com a certeza que todos nós somos potenciais caminhantes de uma ala feminina”.