"Devo dizer que não contava. Durante meses e meses esperei que o Partido Socialista apresentasse o seu candidato saído das suas fileiras políticas", começou por confessar Ana Gomes.

Eram 16h00 em ponto quando as câmaras das televisões se ligaram em direto à Casa da Imprensa para ouvir a ex-eurodeputada anunciar e formalizar a sua candidatura a Belém: "antes e depois do 25 de Abril esta casa sempre acolheu quem se dá pela liberdade e democracia. Estes são os dois temas que me trazem aqui hoje. Declaro-me candidata às próximas eleições presidenciais", declarou Ana Gomes em conferência de imprensa a partir da Casa da Imprensa, em Lisboa.

A antiga eurodeputada, afirmando não aceitar, pelo seu partido, "a desvalorização de um ato tão significante como a eleição para a presidência da República". "Como pode o socialismo democrático não participar nesta eleição, ainda para mais quando vivemos tempos estranhos", questionou salientando a "grave crise económica desencadeada pela crise sanitária com impacto global. Tempos que anunciam desemprego, tensões sociais e políticas, mais desigualdades, mais insegurança".

Neste contexto, Ana Gomes salientou que a sua candidatura representará "o campo do socialismo democrático, progressista".

"Tenho uma história de empenhamento cívico e político, pessoal e profissionalmente nos planos nacional, europeu e internacional que me qualificam para o representar. Tenho abertura e capacidade para dialogar e quero ouvir todos os quadrantes democráticos", alegou.

A ex-eurodeputada socialista atacou depois as correntes de extrema-direita.

"Sabemos que forças antidemocráticas espreitam oportunisticamente por desígnios autoritários que só podem trazer repressão e violência, como a História ensina. Não é possível também ignorarmos que uma parte do sistema, vertido nas próprias instituições da República, se deixou corroer, capturado por interesses financeiros, económicos ou outros - que não representam ou servem o interesse público geral", acrescentou.

"Candidato-me porque acredito que Portugal precisa de uma Presidência da República diferente"

Questionada sobre o porquê de se candidatar quando a própria, publicamente, já fez um “balanço positivo” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa e elogiou a “amiga” Marisa Matias, a antiga eurodeputada diz há uma ala socialista que tem de ser ocupada. Sobre a reflexão e decisão da candidatura a Belém, Ana Gomes admitiu que não falou com António Costa e que só o faria caso o PS já tivesse um candidato.

"Candidato-me porque acredito que Portugal precisa de uma Presidência da República diferente, de uma Presidente que dê garantias de independência, que sirva o interesse nacional e não tenha medo, nem peias, de ir contra interesses instalados", declarou Ana Gomes.

Segundo a ex-eurodeputada do PS, Portugal precisa de "uma Presidente livre, uma Presidente livre de compadrios e de comprometimentos, que se empenhe para que as instituições da República funcionem com meios adequados e com mais eficácia, transparência, integridade e mais solidariamente".

Portugal precisa "de uma Presidente que, respeitando os limites da Constituição, zele pelos direitos dos cidadãos e estimule a sociedade civil a escrutinar, a pedir contas a quem governa e decide. Portugal precisa de uma Presidente que colabore com os governos, sejam de que partido forem - sem se deixar condicionar ou ser refém de agendas partidárias", completou.

Ana Gomes lembrou em seguida que, na sequência das últimas eleições legislativas, lamentou não ter havido capacidade para negociar uma coligação entre as forças de esquerda "que proporcionasse estabilidade à governação e propiciasse as reformas de fundo que o país precisa".

"Felizmente, vejo que houve uma evolução, porque isso está a ser discutido. Sem dúvida que, neste quadro, o papel do Presidente da República será muito importante. Cada pessoa é diferente. Eu sou diferente de outros candidatos e relativamente ao tipo de contribuição que posso ter nesse processo" de diálogo à esquerda, salientou.

Mas a diplomata foi ainda mais longe: "Posso ter um papel nessa articulação sem me tornar refém de qualquer estratégia partidária, seja de quem está no Governo ou na oposição".

Diplomata de carreira e militante do PS desde 2003, Ana Gomes tem defendido, ao longo dos últimos meses, a importância de o espaço político do PS ter uma candidatura nas próximas eleições presidenciais, sobretudo para combater projetos de extrema-direita, como o protagonizado pelo líder do Chega, André Ventura, nome que, aliás, nunca mencionou durante toda a conferência.

Questionada pelos motivos que a levam a avançar quando, publicamente, já veio fazer um “balanço positivo” do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa e a elogiar a “amiga” Marisa Matias, Ana Gomes sublinha que não pode deixar que fique um espaço vazio na ala socialista. “Esse campo não pode desertar num combate que é tão importante num momento em que vemos a democracia em regressão”, disse.

“Penso que, pelo meu percurso pessoal e político, represento o campo do socialismo democrático em que, neste momento, não se perspetiva em nenhuma candidatura – atendendo ao que têm dito dirigentes do meu partido”, disse a agora candidata, admitindo que não falou com António Costa sobre esta reflexão de, afirmando que só o faria caso o PS já tivesse um candidato.

As críticas ao próprio partido foram referências constantes no discurso e respostas de Ana Gomes que tem considerado um erro a indefinição dos órgãos nacionais do PS em relação às próximas eleições presidenciais e afirmado por várias vezes que nunca quis uma candidatura que dividisse o seu partido.

Um episódio protagonizado pelo primeiro-ministro, António Costa, e pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em maio passado, na fábrica da Autoeuropa, em Palmela, fez a diplomara ponderar pela primeira vez "seriamente" entrar na corrida a Belém.

Nessa visita, António Costa manifestou a expectativa de regressar àquela fábrica com o atual Presidente da República já num segundo mandato do atual chefe Estado, dando assim como certa a recandidatura e reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa.

No entender de Ana Gomes, esse episódio foi "absolutamente lamentável, deprimente mesmo" e "perigoso para a democracia", devendo provocar "uma reflexão" da sua parte e de todos os democratas".

Enquanto militante socialista, criticou António Costa por ter assumido uma posição sobre as presidenciais quando "não estava na qualidade sequer de dirigente partidário, mas na qualidade de primeiro-ministro", e observou que "a democracia não está suspensa", mas "parece que alguns pensam que está suspensa no PS".

Dentro do PS, a candidatura de Ana Gomes recebeu já o apoio do antigo líder parlamentar e ex-eurodeputado socialista Francisco Assis, e do líder da tendência minoritária dentro da Comissão Política do PS, Daniel Adrião.

Até hoje, o secretário-geral do PS não comentou a candidatura de Ana Gomes - atitude que também foi seguida pela maioria dos principais dirigentes socialistas.

*Artigo atualizado às 18h17