Uma das linhas de intervenção das novas medidas adotadas pelo executivo para responder à crise na habitação é “o reforço do papel do setor cooperativo, através da cedência de terrenos e edifícios devolutos do Estado”.

Simultaneamente, a Câmara de Lisboa apresentou, em fevereiro, a Carta Municipal de Habitação, na qual propõe algo semelhante. A vereadora Filipa Roseta disse, na altura, que a autarquia identificou 500 edifícios e terrenos que poderão ser mobilizados para as cooperativas e anunciou o lançamento de cinco concursos “até ao final do ano”, com o objetivo de “dar um terreno municipal a um grupo de pessoas para que possam construir nele”, pagando “apenas o valor da construção”.

A Lusa conversou sobre esta intenção de reforço das cooperativas com Bernardo Fernandes e Vattani Saray-Delabar, membros da Rizoma, um dos cinco coletivos da Área Metropolitana de Lisboa que integram a Rede Co-Habitar, já com dois projetos em processo de construção, nos concelhos de Mafra (distrito de Lisboa) e Moita (Setúbal).

Atualmente, a Rizoma é sobretudo conhecida pela mercearia comunitária e autogerida, situada na zona de Arroios, em Lisboa.

Os produtos – para exclusivo consumo dos cooperantes – são biológicos e naturais. Pelo rótulo, ficamos a saber o produtor, o preço de compra, a distância e a respetiva pegada ecológica.

Com mais de 500 membros, a Rizoma assume-se como cooperativa multissetorial e ambiciona agora enveredar pela habitação colaborativa, em propriedade coletiva, que “não tem nada a ver com as cooperativas de construção de habitação dos anos 1970, 80 e 90”, passando por "um processo de criação de comunidades”, distingue Vattani.

“Ser em propriedade coletiva significa que qualquer habitação pertence, como um todo, à cooperativa. Não é pública nem é privada, é da cooperativa. Os cooperantes têm direito de usar o espaço, mas não de o vender, porque a propriedade fica sempre na cooperativa”, acrescenta Bernardo.

Segundo dados fornecidos à Lusa pela Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, atualmente estão registadas 175 cooperativas de habitação e construção, na “grande maioria" em regime de propriedade individual, ainda que a propriedade coletiva tenha começado “a ser mais usada recentemente, em algumas das poucas cooperativas de habitação e construção que se têm vindo a constituir e que pretendem usar o sistema de habitação colaborativa”.

A Rizoma realça que este modelo encontra entraves nas atuais políticas, desde logo no acesso a financiamento, que é “o obstáculo principal”, e a recursos, nomeadamente terrenos. “Para um grupo de habitantes, é impossível lutar contra promotores imobiliários”, assinalam, saudando que “cada vez mais câmaras falem em ceder terrenos”.

Além disso, os princípios deste cooperativismo impõem alterações ao crédito. “Quando cada membro tem de fazer individualmente um empréstimo à banca, está-se a matar a ideia de que o dinheiro é comum. O risco deixa de ser partilhado e passa a ser uma ideia individualizada do que é viver numa cooperativa”, explica Bernardo.

Sobre os concursos públicos já lançados pela Câmara de Lisboa – 18 fogos na zona do Lumiar e 12 em Benfica –, Bernardo nota “falta de conteúdo” nos critérios de candidatura para as cooperativas e defende a criação de um gabinete de apoio a um processo que é demorado e exige alguma tecnicidade.

A Rizoma critica também a separação entre os concursos para construção e para ocupação. “A comunidade não tem participação no processo no momento chave de definir espaços comuns e tipologias de habitação”, aponta Bernardo, elogiando bons exemplos na Dinamarca, Suíça, França e Espanha.

Os exemplos que funcionam, assinala Vattani, “são os que tiveram alguma participação das pessoas e que misturam vários meios sociais e todas as idades”.

O foco da autarquia lisboeta nos jovens e a imposição de um teto de rendimentos conduzirão a “uma homogeneidade social e etária”, além de retirar à cooperativa a autonomia para decidir sobre os seus membros.

Concordando que os projetos devem destinar-se, em parte, a pessoas com menos rendimentos, os cooperantes alertam para a importância de preservar o princípio da entreajuda. “A mistura é importante para o equilíbrio da comunidade”, destaca Vattani.

O movimento pela habitação colaborativa está a crescer “a reboque” da crise da habitação, mas este modelo é também “outra forma de estar em sociedade”, que assenta na importância do coletivo, da criação de laços sociais e da resposta solidária aos problemas.

Neste quadro, no entender de Bernardo, “a ideia de envolvimento e participação deve ser o ponto de partida e não surgir apenas no fim, para retoques finais”. Saúda a intenção da autarquia da capital, mas ressalvando que, “até agora, o que se fez foi lançar um projeto de arquitetura e isso não é lançar um projeto para cooperativas”. No concurso para o Lumiar, aponta, “a palavra ‘dialogar’ aparece uma vez, no final, como se fosse uma nota de rodapé”.

Vattani realça que “não é assim” – de cima para baixo, “privilegiando a competição em vez da negociação” – que se constitui um coletivo de habitação colaborativa, e alerta para “o risco de ter pessoas que nem se conhecem e que vão entrar num processo de habitação em conjunto sem terem noção dos valores que têm em comum”.

Por exemplo, os projetos de Lumiar e de Benfica têm uma parte significativa do orçamento alocada a estacionamentos, quando as cooperativas integram princípios ecológicos e de sustentabilidade que os tornam desnecessários na maioria dos casos.

“É um exemplo de como, politicamente, não houve um diálogo sério sobre de que se está a falar quando se fala de cooperativas”, lamenta Bernardo.