O diplomata jordano Al-Hussein destacou-se no cargo, que ocupou em 2014, pelo tom muito crítico que adotou com Governos e líderes de todo o mundo onde se registassem abusos dos direitos humanos, reiterando não ser o organismo que dirigia que “envergonhava os Governos, mas eles que se envergonhavam a si mesmos”.
Por ser considerado um dos cargos mais complexos dentro das Nações Unidas, sendo os seus titulares amiúde alvo de críticas e pressões de líderes internacionais, não houve surpresa quando Zeid al-Hussein anunciou, em dezembro passado, que não se recandidataria, por não estar disposto a fazer concessões políticas para obter um segundo mandato.
A socialista Michelle Bachelet, de 66 anos, Presidente do Chile em dois períodos - entre 2006 e 2010 e entre 2014 e março deste ano -, foi, entre 2010 e 2013, a primeira diretora-executiva da ONU Mulheres, e dirigia atualmente uma aliança internacional para a saúde de mães, recém-nascidos e crianças.
A sua nomeação como próxima Alta-Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, uma escolha do secretário-geral da ONU, António Guterres, foi aprovada a 10 de agosto pela Assembleia Geral da organização, por unanimidade e aclamação dos 193 Estados membros.
Guterres salientou então que Bachelet “foi uma pioneira nas Nações Unidas”, dando à ONU Mulheres um arranque “dinâmico e inspirador” como sua primeira diretora-executiva.
“Agora, assume um papel ao qual se adapta perfeitamente. Neste ano em que celebramos o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não me ocorre uma escolha melhor”, observou.
O dirigente máximo da ONU referiu que Michelle Bachelet assumirá o cargo num momento difícil para os direitos humanos, num contexto de aumento do ódio e da desigualdade, de retrocesso no respeito do direito internacional e com a liberdade de imprensa sob ameaça.
“Para navegar por estas correntes, necessitamos de uma defensora inequívoca de todos os direitos humanos: civis, políticos, económicos, sociais e culturais”, frisou.
Para Guterres, essa figura é Bachelet, alguém que “viveu sob a escuridão de uma ditadura (de Pinochet, entre 1973 e 1990)”, que, como médica, conhece os desejos de saúde e outros direitos que a população tem e que está consciente das responsabilidades dos líderes nacionais e internacionais.
“Michelle Bachelet traz uma experiência única para as Nações Unidas e para todos nós e está firmemente empenhada em manter os direitos humanos na dianteira do trabalho da ONU”, assegurou.
No mesmo dia, o Alto-Comissário cessante saudou a escolha de Bachelet como sua sucessora, elogiando o seu “profundo empenho na defesa dos direitos humanos”.
“Ela tem todas as qualidades – coragem, perseverança, paixão e um profundo compromisso com os direitos humanos – para ser uma Alta-Comissária bem-sucedida”, sublinhou então Zeid Ra’ad al-Hussein, membro da família real jordana.
Já na semana passada, ao aproximar-se do fim do seu mandato, Al-Hussein defendeu que “só há uma maneira de fazer este trabalho” e encorajou a sua sucessora a não se calar, a não hesitar em condenar publicamente os abusos graves dos direitos humanos.
“Nós não estamos aqui para nos calarmos”, declarou Zeid na sede do Alto-Comissariado, em Genebra, ao fazer o elogio da sua sucessora.
Diplomatas e algumas fontes dentro da ONU revelaram que, durante o processo de escolha, Guterres queria nomear alguém mais conciliador que Al-Hussein em relação aos chefes de Estado e de Governo estrangeiros.
“Eu não procuro fazer amigos junto dos Governos [e] não teria muita confiança num Alto-Comissário que não fizesse este trabalho assim”, declarou Al-Hussein, frisando que a missão de defensor dos direitos humanos é, desde logo, ser a voz das vítimas de abusos.
Durante o seu mandato, Al-Hussein criticou publicamente alguns dirigentes políticos, entre os quais o Presidente norte-americano, Donald Trump.
Segundo fontes internas da ONU, António Guterres terá pretendido moderar o tom do Alto-Comissário para não perder o apoio dos Estados membros.
Al-Hussein declarou que o secretário-geral só lhe pediu uma vez para moderar a linguagem: quando acusou Trump de “ter falta de generosidade”, após a adoção de um decreto anti-imigração que tinha como alvo países muçulmanos, logo após a sua chegada à Casa Branca.
“Ele disse-me ‘Sabes, Zeid, nós temos problemas com a nova Administração norte-americana, poderá haver ameaças ao nosso financiamento e, por isso, talvez pudesses utilizar outras palavras’”, relatou o Alto-Comissário cessante, recordando a conversa com Guterres e indicando que a tomou como um conselho “de um velho amigo”.
“Continuei da maneira como penso que é preciso agir e ele não insistiu para que eu mudasse”, acrescentou.
Alguns ativistas humanitários acusam o secretário-geral da ONU de ter posto o pé no travão quanto à causa dos direitos humanos desde que foi nomeado, em dezembro de 2016.
Zeid al-Hussein explicou que existe “uma progressão natural” que afeta todos os secretários-gerais: eles observam primeiro a “topografia política” do cargo, antes de adotarem uma linha mais dura relativamente aos abusos que possa afastar dirigentes estrangeiros.
O Alto-Comissário cessante disse não se arrepender de nada, no que diz respeito a todas as vezes que condenou Governos por abusos, mas ao cabo daquilo que descreveu como um esforço de quatro anos para dar visibilidade às violações dos direitos humanos em todos os continentes, confessou não estar muito otimista quanto ao futuro.
Durante o seu mandato, o diplomata condenou sem descanso os responsáveis políticos que acusa de atiçarem as tensões étnicas e religiosas para se imporem, como o Presidente Trump e o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban.
E disse ter-se apercebido, ao longo desse tempo, de que “todos os Estados estão em construção e que uma ou duas gerações de políticos irresponsáveis podem destruir qualquer deles”, e deu como exemplo os Estados Unidos, a Hungria, mas também a Polónia, com o seu Governo de direita.
Por último, Zeid afirmou temer “o regresso dos demagogos, das meias-verdades, dos charlatães que disseminam o medo, atiçam a xenofobia e utilizam extremistas violentos e aterradores (como o grupo Estado Islâmico) como contraponto para justificar tudo o que fazem”.
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