“O que está lá é, de facto, uma ‘cápsula do tempo’. Aquilo foi a vida das pessoas que foi levantada ao ar por pás carregadoras”, adianta, em declarações à Lusa, o museólogo Francisco Maduro-Dias.

Às 15:42 do dia 01 de janeiro de 1980, um sismo de 7,2 na escala de Richter abalou a tranquilidade de uma tarde de feriado na ilha Terceira, nos Açores.

O terramoto, o mais demolidor dos últimos 200 anos em Portugal, deixou um rastro de destruição nas ilhas de São Jorge, Graciosa e, sobretudo, Terceira. Estima-se que mais de 20 mil pessoas terão ficado desalojadas. Contaram-se mais de 70 mortos e 400 feridos.

“Era dia feriado e as pessoas saíram de casa. Às 20 para as 16:00, já não tiveram casa para voltar. Não tinham lugar para jantar, nem para dormir. Ficaram nos carros, foram dormir para casa de amigos. Foi uma confusão tremenda”, recorda Francisco Maduro-Dias, que também viu a casa afetada pelo abalo.

A maioria das ruas da cidade de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, ficou obstruída pelas pedras das cimalhas das casas, que o sismo deitou ao chão.

“Não havia maneira de socorrer ninguém, não havia maneira de levar comida para lado nenhum, não havia maneira de ver como é que a casa estava, para poder tirar alguma coisa que fosse possível salvar, sem passar pelo caminho”, lembra o museólogo e historiador.

Era preciso desobstruir as ruas rapidamente para permitir a circulação e restabelecer a normalidade possível na cidade, por isso foram enviadas máquinas, que carregaram a pedra e tudo o que vinha junto: móveis, louças, roupas, fotografias, vidas inteiras de memórias.

Se os moradores estavam presentes à hora marcada era-lhes dado algum tempo para retirarem alguns bens dos escombros, mas as pessoas estavam “em estado de choque”, “sem emoção” e muitas, quando regressavam a casa, já só encontravam as pedras do rés do chão.

Os funcionários que manobravam as máquinas respondiam: “Eh senhor, foi no entulho”.

O entulho, que encheu dezenas de camiões, acabou depositado na Baía das Águas, à saída da cidade, e foi-se acumulando em camadas, que acabaram por acrescentar alguns metros à linha da costa.

“Meia cidade foi para o calhau”, explica Maduro-Dias, especialista em gestão e conservação de património cultural, que anos mais tarde foi diretor do Gabinete da Zona Classificada de Angra do Heroísmo, quando a cidade conseguiu a distinção de património mundial da UNESCO, depois de se reerguer.

“Para as pessoas terem uma ideia do que foi lá parar, é entrarem na sua casa hoje, pararem e olharem. E agora? Isto tudo desapareceu. Conseguem imaginar? Então estão em condições de perceber o que é que as pessoas sentiram”, descreve.

É preciso recuar no tempo a uma altura em que o plástico não tinha a presença que tem hoje e a maioria dos produtos era comprada a retalho para compreender que o entulho tenha acabado naquele local.

Não havia recolha de lixo e o pouco que não era reaproveitado era deitado ao mar. A Baía das Águas era um dos locais frequentemente escolhidos para o efeito.

Parte da cantaria foi entulhada noutro local da cidade, por baixo da Rua Gonçalo Velho Cabral.

“As cantarias foram postas, em cima umas das outras, como quem põe livros, e a rua alargou para o dobro”, lembra o museólogo.

As pedras em melhor estado foram separadas do restante entulho, mas não chegaram a ser reutilizadas na reabilitação das casas.

“A ideia foi arrumar a pedra e acabou por ficar lá, porque a decisão da engenharia foi de que as cimalhas não deveriam voltar a ser de pedra ou, se fossem de pedra, deviam ter uma zona de betão pelo lado de trás”, explicou Maduro-Dias.

Apesar do choque era preciso “enxugar as lágrimas e arregaçar as mangas”, como apelou o então presidente do Governo Regional dos Açores, João Bosco Mota Amaral.

Foi criado um Gabinete de Apoio à Reconstrução (GAR), que mais do que distribuir materiais, dava apoio técnico à população, no local, para que começasse a reconstruir as suas casas.

As memórias, que agora estavam entulhadas, traziam “uma profunda dor” e “um profundo desalento”, mas era preciso “fazer com que rapidamente as pessoas tivessem uma luz, uma orientação”, para seguir em frente.

“Eu diria que nunca vi muita gente a ver aquele monte de entulho do seu passado. Vi mais gente preocupada em voltar a pôr a casa de pé”, conta o historiador.

Maduro-Dias indica como “contraponto daquele monte de entulho” a criação do império do Espírito Santo do bairro do Lameirinho, onde se juntaram pessoas de várias freguesias da ilha que tinham ficado desalojadas.

“Trouxeram um contentor, enfeitaram com palmeiras, folhas e flores, puseram umas luzes e fizeram a festa do Espírito Santo ali. O único ponto de união desta gente de diversas comunidades de origem era a necessidade de terem a festa do Espírito Santo. É uma atitude muito dolorida, mas de resistência”, salienta.

Mais do que o “terror brutal”, é essa capacidade de adaptação e de diálogo com as situações que o historiador destaca da catástrofe que abalou a ilha há 45 anos.

“A boa memória que eu tenho do terramoto de 80 é a glória da reconstrução”, remata.