Passaram quase duas décadas desde que a esquerda avançou e tomou o poder na América Latina com a promessa de uma nova política para um novo século.

A chamada "maré rosa" - por ser mais moderada do que os vermelhos comunistas revolucionários da Guerra Fria - alcançou 15 países, a começar pela Venezuela, com a eleição do falecido Hugo Chávez, em 1998.

Mas foi o Brasil que verdadeiramente tingiu de vermelho o contingente, com o carismático e popular Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, sua afilhada política, quando o PT chegou ao poder em 2010.

Lula - um metalúrgico e ex-líder sindical - e Dilma - uma ex-guerrilheira que foi presa e torturada durante o regime militar (1964-1985) - mudaram e revitalizaram a imagem da velha esquerda latino-americana e o seu modelo foi admirado em boa parte do planeta.

Combinando políticas ortodoxas e amigáveis ao mercado com programas sociais revolucionários, Lula sonhou com um Brasil de classe média impulsionado pelo consumo. Este sonho, no entanto, foi frustrado.

'Boom'

Lula (na foto em baixo) teve a sorte de chegar ao poder com o 'boom' dos mercados emergentes nos anos 2000, quando a procura voraz da China impulsionou os preços das matérias-primas, diminuindo a dependência do crédito externo.

Quando passou o poder a Dilma após dois mandatos, o Brasil registava um crescimento de 7,5% e mais de 40 milhões de brasileiros tinham saído da pobreza.

Na América Latina, os que superaram a linha da pobreza somaram os 75 milhões numa década.

"Havia essa sensação de que a América Latina estava finalmente a emergir", disse à AFP William LeoGrande, cientista político da American University de Washington.

Mas tudo desmoronou, não só para o Brasil, mas para toda a região, que vive o seu segundo ano de recessão.

"A ilusão era de que seria fácil", disse LeoGrande à AFP. "Mas claramente a dependência das matérias-primas é maior do que alguns pensavam".

Más notícias

Para a esquerda brasileira, a saída de Dilma Rousseff do poder não é outra coisa senão a estratégia da direita para recuperar o governo e, a partir daí, atacar os avanços dos últimos treze anos no Brasil.

Mas o certo é que as más notícias foram-se acumulando para a esquerda latino-americana, embora os especialistas concordem que não se pode colocar no mesmo saco os projetos do petismo (Partido dos Trabalhadores) brasileiro com os do chavismo ou do kirchnerismo.

Mauricio Macri (na foto), de centro-direita, venceu as eleições presidenciais na Argentina em novembro do ano passado, pondo um fim à era kirchnerista (2003-2015).

Outros reveses se seguiram. Na Venezuela, a oposição obteve maioria parlamentar nas eleições legislativas de dezembro. Rico em petróleo, o país está à beira do colapso económico, com Nicolás Maduro, o sucessor de Chávez, a lutar contra um referendo revogatório que quer tirá-lo do poder.

Na Bolívia, o líder indígena Evo Morales perdeu em fevereiro uma consulta sobre a possibilidade de se candidatar a um quarto mandato na Presidência, enquanto no Equador, o economista de esquerda Rafael Correa desistiu da ideia de um terceiro mandato perante a queda nas sondagens.

Muitos destes governos deram ênfase à redistribuição, mas faltou-lhes fomentar a criação de riqueza e o investimento.

Além disso, uma série de escândalos de corrupção alimentaram o mal-estar da população.

Até mesmo a moderada chilena Michelle Bachelet viu a sua popularidade desabar nas sondagens depois do seu filho se ver envolvido num escândalo.

Rosa demais?

A saída do poder do PT de Lula e Dilma muda definitivamente os ventos na região.

Dilma Rousseff (na foto) é acusada de autorizar gastos sem o aval do Congresso, de adiar pagamentos aos bancos públicos para melhorar as contas, e de, neste contexto, continuar a financiar programas sociais no ano de sua reeleição e no começo de 2015.

Mas a rigor, é considerada culpada pela pior recessão brasileira em 80 anos e pelo escândalo de corrupção na Petrobras.

Lula, que poderia voltar ao cenário político em 2018, enfrenta agora acusações de corrupção no caso do “Petrolão" e corre o risco de ser preso.

Alguns dos seus seguidores consideram que o Partido dos Trabalhadores (PT) ficou muito rosa, coligando-se a partidos que só queriam acesso aos fundos públicos para benefício próprio.

O PT "foi isolando lentamente as suas bases, interrompeu a formação de novos líderes, aliando-se a partidos de centro e direita para garantir a ‘governabilidade', e teve importantes personalidades envolvidas em casos de corrupção para cobrir os altos custos das campanhas eleitorais", explicou à AFP José Oscar Beozzo, um teólogo de esquerda.

A nova direita

Se a chegada ao século XXI foi um novo começo para a esquerda - após um século XX que a condenou à marginalização com golpes de Estado, invasões e governos militares, frequentemente com o apoio dos Estados Unidos -, a região pode estar agora a viver o surgimento de uma nova direita.

Apesar do reiterado argumento de Dilma de que o impeachment (a destituição) não passa de "um golpe", a região trilhou um longo caminho desde a Guerra Fria, quando os golpes de Estado eram literais.

O surgimento de uma direita latino-americana mais pragmática, comprometida com a democracia e com uma agenda social é algo novo, considera John Coatsworth, reitor da Universidade Columbia, em Nova Ioque, e especialista em história latino-americana.

"Por mais de dois séculos, a direita latino-americana era profundamente desconfiada das instituições democráticas, e conspirava sempre que lhe era conveniente para as derrubar", destacou.

A boa notícia para a esquerda, acrescentou, é que a direita nunca provou ser melhor na gestão das crises económicas.

E lembrou: "os partidos de centro-direita e de direita que estão a beneficiar do colapso da esquerda em toda a América Latina sofreram, eles mesmos, um colapso semelhante há uma década".