Passa a 27. Esta quarta-feira os deputados do Reino Unido, país pioneiro da União Europeia, participaram pela última vez numa sessão plenária e, 47 anos depois, dizem adeus ao maior projeto de paz e bem-estar europeu. A saída torna-se efetiva esta sexta-feira às 23 horas (24h em Bruxelas).
Houve choro e ranger de dentes, sorrisos e aleluias, cânticos de tristeza: os eurodeputados escoceses entoaram “Auld Lang Syne”, a hora do adeus. Depois abriram-se garrafas de espumante; uns beberam para celebrar, outros para esquecer este dia.
O Acordo de Saída entre o Reino Unido e a União Europeia foi aprovado por 621 votos a favor, 49 votos contra e 13 abstenções. Para a maioria, mesmo para aqueles que não queriam sair (ou que o RU saísse) este não é o melhor acordo, mas é o acordo possível.
"Tudo isto é miserável. Estou furiosa, absolutamente furiosa", desabafa a deputada britânica Judith Bunting, eleita pelos liberais democratas nas últimas eleições, e que pertence ao grupo Renovar a Europa.
"Penso que esta é a coisa mais disparatada, mais estúpida, mais errada que já alguma vez se fez. E está a acontecer por causa de interesses privados e por vaidade, é isso que nos está a empurrar para fora da Europa" Judith Bunting
Judith Bunting representa um dos 49 votos contra. Discursou pela última vez e depois chorou. "Não vou ser chantageada por Boris Johnson para apoiar um acordo que é mau para o Reino Unido", disse ao SAPO24. "Sei que a alternativa era não haver acordo, mas não tinha de ser. E o acordo de Boris Johnson é pior que o de Theresa May, não inclui nada que tenha a ver com os serviços aduaneiros e reduz os direitos dos trabalhadores e da cidadania. Até Nigel Farage e outros defensores do Brexit esperavam mais a este nível".
Fala sem parar e com os olhos raiados de encarnado: "Estive aqui seis meses, e antes não sabia muito disto. A minha eleição foi uma surpresa, mas não fui eleita por engano, só que ninguém esperava que ganhássemos [os liberais democratas] três lugares". E lá vai mais um golo de espumante para esquecer. "Quando cheguei, o que vi foi cooperação entre partidos e entre pessoas, mesmo aquelas que não concordam em termos políticos - exceto por parte do Partido do Brexit, que não colabora com ninguém. Vi respeito, compromisso e discussão entre nações. É por isso que penso que esta é a coisa mais disparatada, mais estúpida, mais errada que já alguma vez se fez. E está a acontecer por causa de interesses privados e por vaidade, é isso que nos está a empurrar para fora da Europa. E se não tivermos cuidado, vai destruir os Estados-nação, porque a Escócia pode vir a ser independente e a Irlanda já começou a falar na reunificação, o que nunca aconteceu no meu tempo de vida - e já não sou nova. Ou seja, podemos ter em curso um projeto de vaidade que nos vai arrastar para a lama e que me dá vontade de vomitar".
A deputada inglesa sabe que sair foi uma vontade dos eleitores, "mas o referendo de 2016 não foi levado muito a sério pelos defensores do 'remain' [da permanência], a campanha não foi boa e, acima de tudo, era tão óbvio que os defensores do "sair" estavam a mentir — tínhamos Nigel Farage na televisão a dizer que poderia perder por alguma margem, mas que a luta não acabava ali e haveria um segundo referendo. Contra todas as expectativas ganharam eles e perdeu o 'remain', mas nessa altura ninguém disse que era preciso um segundo referendo. Ou por outra, o meu partido pediu-o desde o dia seguinte ao referendo, mas ninguém quis que se fizesse, porque sabiam que o resultado seria outro. E ficámos reduzidos às eleições antecipadas e a Boris Johnson, que tem carisma, nem eu nego isso, mas mente, não é de confiança. É um narcisista atraente, de certa forma. E Jeremy Corbyn, que muitos viram como uma ameaça, não fez uma oposição decente, foi um péssimo líder da oposição. Podíamos ter tido um líder dos trabalhistas, e toda a história seria diferente. Podíamos ter tido um governo de salvação nacional, como propunham os liberais democratas, uma união com o único propósito de fazer um segundo referendo. Mas, uma vez mais, o ego de Boris Johnson e o ego de Corbyn venceram".
Muito aconteceu desde que, em 1972, Sir Edward Heath, então primeiro-ministro do Reino Unido, assinou o tratado de adesão, com efeito a partir de 1 de janeiro de 1973, à Comunidade Económica Europeia.
Mas o caminho nunca foi pacífico - o Reino Unido teve sempre um pé dentro e outro fora, sem dar passos como aderir ao euro ou negociando cláusulas de exceção em relação ao espaço Schengen. Logo em 1975, Margaret Thatcher desafia os britânicos a dizer sim à Europa num referendo, para pouco depois, em 1990, dizer não aos planos do presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors, para alargar as competências da Europa em matéria política. Mas já antes a "dama de ferro" tinha lançado a semente do euroceticismo, quando, em Fontainebleau, França, exigiu “o nosso dinheiro de volta".
Foi um salto até Nigel Farage discursar: “Os nosso interesses são melhor servidos não fazendo parte deste clube". O líder da Ukip nunca foi contido nas palavras: "Não quero parecer indelicado, mas o senhor tem o carisma de uma esfregona molhada", dizia ao então presidente do Parlamento Europeu, Herman Van Rompuy. Foi há dez anos.
Uma Europa que caminha junta num registo solo
Enquanto no quinto andar se faz luto, uns andares abaixo há quem faça uma festa. John Longworth e Lance Forman, do Partido do Brexit, ambos parte do grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus, dão vivas: "Bottoms up!" [Goela abaixo]. Erguem os copos e brindam "à liberdade e à soberania", com um ar tão divertido quanto provocador.
Foram sempre provocadores. Horas antes do fim, na sua última conferência de imprensa no Parlamento Europeu, Nigel Farage dizia aos jornalistas: "Quando cheguei éramos três, agora somos 29. Há batalhas a enfrentar, como as pescas, o alinhamento das regras ou o Tribunal de Justiça da União Europeia, mas o que interessa é que vamos sair e passámos o ponto do não retorno".
"Estou absolutamente convencido de que conseguiremos fazer muito melhor fora do mercado único, fora de um mercado sobrerregulado. E seremos uma nação democrática autogovernada, e é aqui que está o ponto" Nigel Farage
Eufórico, Farage afirmou: "O que isto significa para nós é tão ou mais importante do que quando Henrique VIII cortou com Roma". E prometeu continuar a dar conferências, a fazer comentários e até envolver-se na campanha eleitoral nos Estados Unidos, como já fez no passado. "Antes ia uma vez por mês a Estrasburgo, agora irei à costa atlântica" para continuar a travar a guerra entre nacionalistas e globalistas.
E o líder do Partido do Brexit deixa um aviso a Boris Johnson:"Vamos dizer "yuppi, conseguimos", e deixar tudo nas mãos do Partido Conservador e abandonar o campo de batalha? Não. Se o primeiro-ministro deixar cair a bola, nós estaremos lá para garantir que o objetivo será cumprido”.
"Estou absolutamente convencido de que conseguiremos fazer muito melhor fora do mercado único, fora de um mercado sobrerregulado. E seremos uma nação democrática autogovernada, e é aqui que está o ponto", disse ao SAPO24.
Uns metros à frente o semblante volta a estar carregado. A deputada Julie Ward, eleita pelo Partido Trabalhista há cinco anos e meio, integrada no grupo Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, está inconsolável. "A União Europeia é um projeto grandioso de mais para ser minado, o projeto de paz mais grandioso que o mundo alguma vez conheceu. Estou zangada e triste pelos britânicos que não perceberam isso e acreditaram em tantas mentiras. E fico tão triste pelos mais novos...".
"Acredito que os mais novos vão consertar isto e colocar-nos de volta no caminho certo, porque este é um erro histórico, um ato de autoflagelação, um ato de vandalismo."Julie Ward
O que é que escapou aos ingleses, afinal? "Não fizemos nenhuma educação para a cidadania, formal ou informalmente, durante décadas. Algo que permitisse aos mais novos nas escolas e aos jovens universitários crescer a saber os seus direitos e as suas responsabilidades enquanto cidadãos europeus. Porque eles não entendem, não sabem isso enquanto cidadãos britânicos. Não sabem o que fazem os eurodeputados, não sabem o que fazem os conselheiros, não sabem nada. Uma grande fatia da população acha que não se importa, não quer saber quando há uma votação, uma eleição ou um referendo. No entanto, a extrema-direita vota sempre, e usa a democracia para minar a democracia. E esta é uma mensagem importante", afirma.
Mas Julie Ward, como tantos outros, ainda acredita que a saída não será definitiva. "Acredito que os mais novos vão consertar isto e colocar-nos de volta no caminho certo, porque este é um erro histórico, um ato de autoflagelação, um ato de vandalismo, até, da parte dos tories [conservadores]. Penso que os mais novos vão ver isto com clareza. Os conservadores não querem dar voto aos jovens, provavelmente não irão fazê-lo, mas os jovens não se vão esquecer disso, e quando tiverem idade suficiente para votar não vão votar no partido que lhes tirou oportunidades, que lhes limitou o seu futuro".
À pergunta sobre o que espera de Boris Johnson, que será agora o interlocutor do Reino Unido, responde: "Espero que continue a mentir, porque é esse o seu registo. É um primeiro-ministro mentiroso, mentiu à rainha - o supremo tribunal considerou-o culpado de mentir à rainha. Portanto, não confio nele nem um pouco e acredito que continuará a mentir. Quanto mais cedo os britânicos perceberem isto, melhor, e quanto mais cedo a União Europeia perceber isto, melhor".
De resto, ironiza, "a saída do Reino Unido da União Europeia será boa para a fuga ao fisco, para as grandes empresas. Nós, aqui no Parlamento Europeu, produzimos legislação para apanhar os evasores fiscais, mas para quem foge ao fisco no Reino Unido o Brexit é fantástico. Só não é fantástico para a maioria da população, os 99% que estão a lutar para sobreviver. Para esses não é bom".
A conversa com o SAPO24 vai sendo interrompida aqui e ali por outros deputados que passam e param para a abraçar. Mais lágrimas. No patamar também está gente da Comissão Europeia e um português pede-lhe para se deixar fotografar com ele: "Os ingleses são os aliados mais antigos de Portugal", diz-lhe. "Mas sabe, estamos a trabalhar numa legislação nova para proteger os povos indígenas". Explico que o Brasil deixou de ser nosso há muitos anos e aproveito para perguntar que deputados portugueses conhece. Não lhe ocorre nenhum nome (apesar de estar sentada ao lado de Pedro Silva Pereira, do PS, quando discursou sobre o Brexit).
Mas não é só Julie Ward que não se recorda de um nome português. Fizemos a mesma pergunta a deputados de diversos países, em diferentes grupos políticos, e a resposta é quase sempre a mesma: "assim de repente...". Mesmo nestas breves conversas sobre o Brexit foi possível perceber isso. Judith Bunting admitiu não conhecer nenhum português, "mas conheço um espanhol", apressou-se a acrescentar, como se fosse tudo mais ou menos a mesma coisa. Dinesh Dhamija, outro liberal democrata que entretanto se juntou à conversa, acrescenta: "Mas sei que Portugal tem um primeiro-ministro metade indiano. Tenho um sobrinho a trabalhar em Lisboa, por isso sei isto. É nos comités e nas comissões que conhecemos ou outros deputados, talvez não haja portugueses onde estamos", justifica-se. Até que uma assessora vem e fala em Graça Carvalho, do PSD, e todos à volta se sentem aliviados.
"Que poder tem o Reino Unido frente a Donald Trump? Ele quer é ser nosso amigo, mas só até precisar de nós. As negociações nunca serão feitas em pé de igualdade."Judith Bunting
Os ingleses eram, de certa forma, o garante da estratégia atlântica, que também convinha a Portugal. E agora? "Se querem prosseguir uma estratégia atlântica, têm de tentar fazê-lo com os restantes 26 Estados, têm de ter uma voz mais forte na Europa, têm mesmo de lutar pelas coisas. E há uma relação muito forte americana e europeia, muitos estão chocados com a presidência de Trump, estão chocados com a votação do Brexit, e têm uma presença no Parlamento Europeu, por isso, posso dizer-lhe que há um mecanismo a funcionar", responde Julie Ward.
Judith Bunting é mais cética: "Para mim, a questão da Europa cristaliza na dimensão da nossa economia de mercado, é esse o poder da negociação. Que poder tem o Reino Unido frente a Donald Trump? Ele quer é ser nosso amigo, mas só até precisar de nós. As negociações nunca serão feitas em pé de igualdade. Digo isto e não sou tão pro-europeia quanto muita gente, não quero uma Europa federal, adoro a Europa das nações soberanas, adoro ter a libra, sou antiquada... Mas a lógica diz-me que um país com uma população de 60 milhões, como o Reino Unido, não vai levar a melhor na negociação com um país com uma população de 350 milhões, como os Estados Unidos".
O Reino Unido, que tem agora contactos estruturados com os Estados Unidos a nível comercial, terá de renegociar a sua relação com os países da União Europeia. "Penso que não haverá qualquer alinhamento, e isso será um problema, a ponta do iceberg, diz um responsável francês do Comité Económico e Social Europeu, liderado por Luca Jahier. "Se fizer as coisas de forma completamente diferente da UE, enquanto antigo Estado-membro, terá os Estados Unidos com o seu frango clorado, com tarifas, a privatização dos serviços públicos, um péssimo sistema de saúde... Uau, boa sorte".
"Como emigrante tenho de olhar sempre para a frente. E, para já, não vai acontecer nada, este é um período [de negociação] que pode demorar três anos no total." Dinesh Dhamija
Em 2018, os principais setores da economia britânica foram o comércio grossista e retalhista, os transportes, os serviços de alojamento e restauração (17,9%), a administração pública, a defesa, a educação, a saúde e os serviços sociais (17,5%), e a indústria transformadora (14,1%). Cerca de 47% das exportações britânicas destinam-se a países da UE, com a Alemanha no topo da lista (10%). Os Estados Unidos representam 13%.
No que respeita às importações, 53% são de países da UE, uma vez mais com a Alemanha como principal parceiro comercial (14 %). Os Estados Unidos contribuem com 10%. Nesse ano, o mercado britânico voltou a liderar o ranking dos países com os quais Portugal tem maior excedente comercial.
Menos emotivo, talvez por ter chegado ao Parlamento Europeu há apenas seis meses, Dinesh Dhamija diz que olha para a frente. "Como emigrante tenho de olhar sempre para a frente. E, para já, não vai acontecer nada, este é um período que pode demorar três anos no total".
O agora ex-deputado, fala do processo de transição, que será mastigado e deitado fora, e que terá Boris Johnson a negociar com a União Europeia, daqui para a frente sem a interferência dos deputados europeus britânicos. Todos os divórcios têm questões práticas para resolver, e este não é diferente.
Para já, saem os 73 deputados eleitos pelo Reino Unido, dos quais 27 serão distribuídos entre 14 Estados-membros, de acordo com a regra da proporcionalidade regressiva, da seguinte forma: França (+5), Espanha (+5), Itália (+3), Países Baixos (+3), Irlanda (+2), Suécia (+1), Áustria (+1), Dinamarca (+1), Finlândia (+1), Eslováquia (+1), Croácia (+1), Estónia (+1), Polónia (+1) e Roménia (+1).
Os 46 lugares restantes ficarão disponíveis para futuros alargamentos e/ou para a possível criação de um círculo eleitoral transnacional. Apesar de o número total de deputados do Parlamento Europeu diminuir de 751 para 705, nenhum Estado-membro perderá lugares com esta redistribuição.
Até 31 de dezembro deste ano decorrerá um período de transição, ao longo do qual a maior fatia da legislação da União Europeia continuará aplicável no país. O objetivo é evitar perturbações durante a negociação do acordo sobre as futuras relações, que está agora em marcha.
Este período de adaptação poderá ser prorrogado por um ou dois anos, por decisão do comité misto criado pelo Acordo de Saída. É preciso não esquecer que mais de 3 milhões de cidadãos dos 27 Estados-membros residem no Reino Unido e 1,2 milhões de britânicos vivem espalhados pelos 27 países da UE.
*Em Bruxelas
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