Na verdade, esta sala de cinema nasceu em 1904 num edifício do século XIX, entre o Chiado e o Bairro Alto, e teve várias vidas ao longo de mais de um século. Chamou-se Salão Ideal, Piolho do Loreto, Cine Camões e Cine Paraíso, até ser recuperado há dez anos por Pedro Borges, reabrindo no final de agosto de 2014.
Na altura, Pedro Borges afirmava publicamente que a identidade do Cinema Ideal seria a de um cinema de bairro, com programação pensada para que as pessoas pudessem “reganhar o gosto de ir a uma sala de cinema”.
Dez anos depois, é o desânimo e a indignação.
“Nos primeiros anos ainda tínhamos muita gente que vivia aqui perto, ou num raio de 15/20 minutos a pé e que vinha aqui muitas vezes, e havia quem trabalhasse aqui ou quem ao fim da tarde viesse ao cinema e depois jantar, e isso tudo desapareceu nestes dez anos”, disse Pedro Borges.
O produtor e exibidor fala mesmo em “destruição da cidade”, quando se refere ao turismo massificado, à transformação do comércio local e ao aumento do número de hotéis e alojamentos turísticos, em particular nas zonas do centro histórico.
“Hoje em dia, as pessoas que vêm ao Ideal fazem o seu esforço, porque gostam, mas vêm e vão-se embora rapidamente. E não têm muito mais o que fazer nesta zona. É como se estivéssemos aqui sentados a ver o mundo à nossa volta a ser engolido por esta turistificação selvagem”, criticou.
Quando questionado sobre quantos mais anos aguentará o Cinema Ideal no Chiado, Pedro Borges responde: “Não faço ideia. A questão é se vai continuar a fazer sentido durante muito mais anos se as coisas não se alterarem. É preciso tomar medidas em relação à destruição de lojas, escritórios, casas de habitação. Como em Barcelona, que já avisou que vai suspender [o alojamento local]”.
Em Lisboa, como no resto do país, a maioria da exibição de cinema está concentrada em centros comerciais. As salas de exibição comercial regular e independente com porta direta para a rua são o Cinema Ideal e o Cinema Nimas, aos quais se junta o Cinema City Alvalade, que é uma sala desta cadeia de exibição.
O Cinema Ideal vive da bilheteira, não vende pipocas nem refrigerantes, que são uma fonte de receita das exibidoras, e tem apoio da Câmara Municipal de Lisboa e do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA).
Nesta década, o Cinema Ideal contabilizou anualmente cerca de 38.000 espectadores, excluindo os anos da pandemia, que levaram o encerramento ou condicionamento da exibição comercial no país.
“Nunca iria fechar uma coisa destas. Há certas derrotas que a gente não pode admitir”, garantiu Pedro Borges.
No entanto, se pudesse, diz que teletransportaria o Cinema Ideal “para o Campo Pequeno ou para a Alameda, para Alvalade, para qualquer sítio onde ainda haja uma vida de cidade, uma vida urbana normal”.
O exibidor atribui ainda o desânimo à falta de uma política concertada entre Ministério da Cultura, ICA e autarquias para “estimular a abertura ou reabertura de salas” em todo o país.
“Nunca se conseguiu convencer ninguém que isso era preciso. Não faz sentido o ICA ter aumentado em 50% os apoios à produção de novos filmes e não se ter preocupado onde é que os filmes vão ser mostrados e ser vistos”, apontou.
Pedro Borges também não poupa críticas a um setor que já foi reivindicativo e até polarizado, e que “vive um bocadinho em coma, neste momento”.
“Como houve um aumento grande ao nível do instituto [ICA] e as pessoas não sejam muito corajosas, pelo contrário, o que mudou nestes dez anos é que desapareceu a velha geração do cinema português, que apesar de tudo impunha algum respeito ao poder público; e isso não foi renovado”, disse, fazendo referência aos realizadores Manoel de Oliveira, Paulo Rocha ou Fernando Lopes.
“Deixaram herdeiros, mas não impõem respeito ao poder público e político”, sentenciou.
Os dez anos do Cinema Ideal serão assinalados no final do mês com uma programação especial, da qual fará parte, por exemplo, “24 Frames”, o último filme do realizador iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e a estreia do documentário “Verdade ou Consequência?”, de Sofia Marques, que é “um retrato admirável e delicado sobre Luís Miguel Cintra”, ator e encenador.
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