Ligar Lisboa, Portugal, a São Petersburgo, na Rússia, num percurso de 5.500 quilómetros recorrendo à utilização de um combustível - Gás Natural Liquefeito (GNL). Este o propósito de um “rally” de veículos pesados e ligeiros que partiu do Carregado, na Azambuja, no passado dia 16 e chegará à Rússia, à cidade dos Czares, no dia 2 de outubro.
Este “Comboio dos Duros”, versão 2.0, que pela primeira vez partiu de Lisboa, passa por Madrid, Barcelona, Marselha, Milão, Ulm, Berlim, Varsóvia, Kalinegrado, Riga, Tallinn e chega à costa russa, percorrendo 12 países, pretende chamar à atenção para a utilização do Gás Natural Liquefeito como combustível alternativo, menos poluente e mais económico, ou seja, amigo do ambiente e do capital.
O projeto “Blue Corridor”, traduzido para português, “Corredor Azul”, vai na 11ª edição, arrancou em 2008 pela mão da empresa russa Gazprom, a que se associou a sua congénere alemã, Uniper, em 2010, e que conta, desde 2014, com apoio da União Europeia para promover o potencial do Gás Natural Liquefeito enquanto combustível alternativo aos derivados do petróleo no transporte rodoviário de mercadorias.
Desde o arranque, estes “Comboios” já percorreram mais de 40 mil quilómetros, 110 cidades e 22 países, envolvendo 71 conferências que juntaram políticos, cientistas, empreendedores, especialistas, homens de negócios, universidades para discutir os aspetos ambientais, legais, técnicos, económicos e sociais da indústria do GNL e dos seus derivados, Gás Natural Veicular e Gás Natural Comprimido.
Portugal estreou-se nesta viagem de sensibilização europeia, contanto com o apoio logístico da GASNAM, Associação Ibérica de Gás Natural para a Mobilidade.
Três portugueses e um brasileiro com os Pirenéus como limite
À partida para esta travessia pela Europa, arranque anunciado pelo desfraldar de bandeiras dado na estação Carregado, Azambuja, estavam “seis pesados e cinco ligeiros”, sublinhou João Jesus, diretor geral da Douro Gás, associada da GASNAM. Com a participação de “30 veículos ao longo de todo o percurso”, nesta “estafeta vão entrando e saindo veículos que encaixam a sua rotina diária nesta rota, utilizando o GNV”, realçou.
Toni e Marcelo são dois dos camionistas que à hora marcada sobem para estes “monstros” do asfalto. Trabalham ambos para a Transordizia, empresa basca que se dedica ao transporte de veículos pesados. Toni, 38 anos, é português de passaporte, pelo pai, mas zairense de nascimento. Marcelo tem sotaque e “aquele jeito” brasileiro.
O camião de Toni, da marca IVECO (Renault, Scania e Volvo também utilizam este combustível), pesa 8 toneladas e está personalizado com a tradicional chapa de matricula com o nome bem visível, colada no vidro da parte da frente, por cima do volante.
Se, por fora, assemelha-se uma fortaleza rolante, com capacidade para “levar às costas” 24 toneladas carga (três tratores iguais), por dentro, não faltam pequenos luxos dignos de um qualquer Alojamento Local tão em moda.
Duas camas, em beliche, interior acolchoado, cheira ainda a novo, sendo visíveis alguns plásticos no teto. Há espaço para um micro-ondas, máquina de café, computador e tablet, além de um pneu suplente de bicicleta, veiculo esse que vai pendurado nas traseiras da cabine e que serve “para os tempos de lazer”.
Toni conduz descalço para manter tudo limpo. Mais que um “escritório com rodas”, é a “minha casa, onde durmo, logo mantenho-o limpo o mais possível, porque saímos para fazer descargas e trazemos pó para dentro e no final do dia ficava com o camião sujo”.
Mora em Braga, é um habitué da estação de GNV de Santa Maria da Feira e abasteceu, pela primeira vez, no Carregado. Assegura que Portugal “está bem equipado”. Conduz a gás só há “cerca de 6 meses” num camião que soma “em meio ano de vida 99.450 km”. Diz que se sente a poupança de combustível. “Em média, com tanque cheio, faço 1200 km, mas depende carga e já cheguei fazer 1400”, assegura.
Com 15 anos sentado lá no alto de um assento pneumático, oito dos quais feitos na Bélgica (está explicado, por aí e pelo local de nascimento, porque é que o GPS fala francês), sublinha que só percorre estradas europeias. “O mais longe que fui foi até à Bulgária. O resto é aqui perto, na Alemanha”, sorri, percebendo que o “aqui perto” pode ter, pelo menos, duas interpretações, a de quem conduz e de quem é conduzido.
Numa viagem com limite máximo (leu bem, limite máximo e não velocidade média) de 90 km/h faz com que no troço Lisboa-Caia pareça um flashback até 1998, ano antes da conclusão da autoestrada que liga a capital portuguesa à fronteira espanhola. Um qualquer carro que ultrapassasse o Toni parecia um Ferrari em aceleração.
O caminho é uma perceção temporal. Passa, demora a passar, mas no final do dia, quem anda a 120 km/h ou 90 km/h pouca diferença faz. “Nós não paramos pelo caminho e mais à frente apanhamos quem nos ultrapassou e parou para tomar um café”, sorriu. “Temos ciclos 9 horas de trabalho de 11 horas seguidas de descanso”, explica Toni, numa conversa que ajuda o tempo a passar. “Tudo é medido e controlado por um aparelho, uma caixa-negra”, reforça, adiantando que, em média, completa 700 quilómetros por dia.
A conversa e o tempo deu para tudo. Até para recuar aos anos em que viveu no Zaire (República Popular do Congo) e falar do conflito Ruanda-Uganda, Tutsis e Hútus, uma revisitação interrompida: “Oh Marcelo, estamos a chegar a Elvas. Qual a saída?”, perguntou pelo intercomunicador, instrumento que utilizam para comunicar e, por vezes, conversar para passar o tempo que andam na estrada.
Na outrora fronteira, com sinais claros que ali pararam muitos carros, atualmente só (quase) para quem quer abastecer. Há placas de “Vende-se” nos restaurantes que hoje são só uma memória do outro tempo. O espaço de restauração aberto vale por todos os que estão fechados.
No Caia, Toni e Marcelo abasteceram na estação da Douro Gás. Para tal usaram luvas especificas e uma viseira. Um avental de material criogénico é outra peça recomendada para encher o depósito com um combustível que atinge, a sair dos depósitos, 162 graus negativos. Madrid é o destino intermédio até chegarem ao País Basco.
Na fila, a seguir, Fernando Augusto, da empresa Magalhães&Bruno. Com mais de três décadas ao volante, estreou-se no GNV. Saiu do Carregado e seguiu até “uns quilómetros à frente” onde ficará a descansar numa casa que tem. Aí entregou o volante ao colega que opera na parte espanhola e que seguiu até à capital espanhola, “para carregar” e voltar.
...dois russos, um alemão e um italiano vão até (quase) aos Urais
“Queremos ligar o Atlântico até (quase) aos Urais. É até São Petersburgo, mas os Urais será o próximo passo e se calhar até Pequim”, afirmou Iugini Pronin, no Carregado.
Já com Badajoz à vista, assumiu-se como o “pai” deste projeto da Gazprom. Desde a 1ª edição que percorre os caminhos do gás natural, tendo participado nas 11 edições. “Comecei em 2008”, recorda, sendo que sentado na carrinha WV Passat já fez “9 edições”, visíveis nos autocolantes. 9 travessias sempre acompanhado do amigo alemão, Andre Schumann, da Uniper e de um compatriota russo.
Os quilómetros não assustarem Iugini e amigos. Os três arrancaram de Moscovo, a 7, deram a volta em Lisboa, e, juntamente com Enrico, italiano condutor de um camião e mais dois condutores de uma carrinha, completam o lote de quem fará os mais de 5.500 quilómetros deste “Comboio dos Duros”, versão 2.0. “Vamos até São Petersburgo, onde cerca de sete camiões e sete veículos ligeiros (que se vão juntando pelo caminho) e chegaremos a tempo (2 de outubro) do Gás Fórum, na Expoforum, São Petersburgo, conclui.
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