A pergunta parece despropositada, afinal o que é podem ter em comum Abdesselam Tazi, cidadão marroquino condenado a 12 anos de prisão por recrutar em Portugal operacionais para o grupo radical do autoproclamado Estado Islâmico, os membros do conhecido Gangue do Multibanco, um grupo que entre 2008 e 2009 aterrorizou várias zonas do país com assaltos a máquinas ATM com recurso a explosivos e carros de alta cilidranda roubados, José Sócrates, um ex-primeiro-ministro acusado de 31 crimes e que vai ser julgado por seis, e Ljubomir Stanisic, chefe com uma estrela Michelin, dono do restaurante 100 Maneiras, protagonista do programa Hells Kitchen, acusado de corromper um polícia para desobedecer ao confinamento? A resposta óbvia seria nada. Mas não é.

Eis o que liga todos os sujeitos acima mencionados: foram ou são protagonistas em processos mediáticos que estiveram ou estão nas mãos do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal Ivo Rosa.

Estes processos levantam o véu sobre a forma como o juiz madeirense, de 54 anos, olha para a Lei. Se os revisitarmos, cronologicamente, tornam a decisão lida ao longo de mais de três horas, na passada sexta-feira, muito menos surpreendente. No dia 9 de abril, Ivo Rosa pronunciou os arguidos José Sócrates e Carlos Santos Silva por três crimes de branqueamento de capitais e outros três de falsificação de documentos, o ex-presidente do BES Ricardo Salgado por três crimes de abuso de confiança, o ex-ministro Armando Vara por branqueamento de capitais e João Perna, o ex-motorista do antigo primeiro-ministro, por posse de arma proibida.

“Para que ninguém seja condenado e o país entre em pânico generalizado com este tipo de criminalidade violenta, bastam um gorro, um par de luvas e força bruta!”

Comecemos pelo caso do Gangue do Multibanco. A 9 de junho de 2020, cinco dos 13 arguidos acusados de terem furtado mais de dois milhões de euros em ataques a multibancos foram condenados a penas de prisão efetiva entre os nove anos e meio e os 17 anos, sete foram absolvidos e um foi condenado a pena suspensa.

A decisão final sobre o processo que visava os responsáveis por uma onda de assaltos a caixas multibanco, que aconteceram em diversos distritos do país (como Lisboa, Setúbal, Santarém, Évora, Beja, Leiria, Coimbra, Porto e Braga) e onde Quinito, Marco d'Aires e um ex-operacional das FP25 foram três dos principais arguidos, acusados de associação criminosa para roubo e furto de máquinas ATM, com recurso a veículos de alta cilindrada previamente furtados para o efeito, contrasta com aquela que foi tomada por um coletivo de juízes, presidido por Ivo Rosa, em 2010, e em que foram absolvidos 11 dos 12 membros do gangue.

Nessa mesma decisão do coletivo das Varas Criminais de Lisboa, o único arguido a ser condenado foi Jonny Portela, sentenciado a uma pena de prisão de 2 anos e 6 meses, por uma acusação de tráfico de droga e não pelo envolvimento nos ditos assaltos.

Para o juiz Ivo Rosa e para os seus colegas, as provas recolhidas pelo Ministério Público e GNR não permitiam “por si só” condenar os arguidos, uma vez que os líderes do gangue falavam com os outros membros em nomes de código e agiram de cara tapada, o que impedia uma identificação facial objetiva por parte das testemunhas e dos guardas que seguiram o grupo. Tudo isto levou a que as provas fossem classificadas como “insuficientes”.

De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação, o coletivo de juízes que absolveu 11 dos 12 membros do gangue fez um "errado julgamento de parte significativa" das provas levadas a tribunal.

Como resposta, os juízes desembargadores expressaram "incompreensão e perplexidade" pela decisão tomada em julho de 2010 ante a "evidência e irrefutabilidade de algumas das provas" apresentadas pela acusação feita pelo Departamento de Investigação e Ação Penal.

Num tom irónico, os juízes do tribunal de segunda instância disseram mesmo, perante a absolvição do gangue: “(…) para que ninguém seja condenado e o país entre em pânico generalizado com este tipo de criminalidade violenta, bastam um gorro, um par de luvas e força bruta!”.

Assim, em finais de 2010, a Relação de Lisboa mandou repetir todo o julgamento do 'gangue do multibanco' por entender que o primeiro julgamento "foi gravemente lesivo dos interesses e expetativas das vítimas e corrosivo para a imagem de uma Justiça que tem vivido um dos seus piores momentos".

Há cerca de 11 anos já podíamos dizer que Ivo Rosa estava numa relação difícil com Relação (e com o Ministério Público).

A prova “indireta” e os "indícios suficientes”

Vamos andar no calendário até ao dia 9 de janeiro de 2020, data em que Abdesselam Tazi, cidadão marroquino condenado a 12 anos de prisão por recrutar em Portugal operacionais para o grupo radical Estado Islâmico, morreu na cadeia de alta segurança de Monsanto, em Lisboa.

Tazi tinha 65 anos e estava preso desde 23 de março de 2017 na cadeia de alta segurança de Monsanto. Tinha sido condenado por sete crimes: falsificação com vista ao terrorismo, recrutamento para o terrorismo, financiamento do terrorismo e quatro crimes de uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo.

Uma decisão que só foi possível depois de o cidadão marroquino ter sido levado a julgamento, algo que na primeira instância não foi decidido, quando o juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal, então optou não pronunciar, e portanto não levar a julgamento, Abdesselam Tazi por vários crimes ligados ao terrorismo, tendo os procuradores do Ministério Público João Melo e Vítor Magalhães interposto recurso da decisão de “não pronúncia” para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Na leitura da decisão instrutória, o juiz Ivo Rosa sustentou que a prova apresentada pelo MP na acusação é “indireta”, acrescentando que dos factos imputados a Tazi não é possível inferir ou concluir que o arguido tenha atuado com o propósito de falsificar documentos, de financiar, de aderir ou de recrutar elementos para o Estado Islâmico ou para outra organização terrorista.

O juiz salientou que “não se mostraram" provados indícios suficientes quanto aos factos descritos na acusação relacionados com o terrorismo, razão pela qual o arguido não foi pronunciado por esses factos.

Ivo Rosa colocou em causa a prova apresentada pelo MP que sustentaria as ligações ao terrorismo, e disse que a acusação formou a sua convicção “em meios de prova indireta”, que podem ter diversas leituras e interpretações.

Do facto de Tazi ter utilizado passaportes e cartões de crédito falsos, ter viajado para a Turquia, estar na posse de manuscritos do Islão, ser muçulmano e ortodoxo, e não havendo prova direta de que radicalizou Hicham El Hanafi [detido em França desde 20 de novembro de 2016 por envolvimento na preparação de um atentado terrorista], não é possível, segundo o juiz, “extrair-se uma conclusão ou inferir que dos mesmos o arguido aderiu a uma organização terrorista ou que recrutou Hicham El Hanafi”.

A acusação do MP refere que o arguido se deslocou várias vezes ao Centro de Acolhimento para Refugiados, no concelho de Loures, para recrutar operacionais para o Estado Islâmico, nomeadamente em agosto de 2015. Contudo, o juiz Ivo Rosa aponta uma contradição na acusação, pois nessa data o arguido não se encontrava em Portugal.

O arguido então foi pronunciado apenas por um crime de falsificação de documento (relativo à falsificação do passaporte) e por quatro crimes de contrafação de moeda (relativos ao uso de quatro cartões de crédito falsos), que nada têm a ver com terrorismo ou com ligações terroristas.

A decisão final, que levou à pena efetiva de 12 anos de cadeia, resultou de um recurso e foi pronunciada pelo Tribunal da Relação.

Num exemplo mais atual, relativo a este ano, no dia 24 de março de 2021, o juiz Ivo Rosa decidiu não levar a julgamento o ‘chef’ Ljubomir Stanisic, no caso em que era acusado de corromper um polícia para desobedecer ao confinamento.

Na decisão instrutória do processo “dupla face”, o juiz decidiu pela não pronuncia de Stanisic, considerando “não haver indícios suficientes quanto aos crimes de corrupção ativa para ato ilícito e de desobediência”, este último em relação ao dever de confinamento, decretado devido à situação pandémica em abril de 2020.

Consequentemente, o arguido Nuno Marino, agente da PSP, também deixou de ir a julgamento por corrupção passiva para ato ilícito e desobediência.

A Relação do juiz com a decisão

Portanto, muito resumidamente, no caso do Gangue do Multibanco houve uma despronunciação dos arguidos pela ausência de prova direta. No caso de Abdesselam Tazi, o cidadão marroquino não ia a julgamento porque não havia indícios suficientes que sustentassem a acusação do Ministério Público. No caso relacionado com o chef Ljubomir Stanisic, a justificação utilizada na ilação do chef é a de “não haver indícios suficientes quanto aos crimes de corrupção ativa para ato ilícito”.

Não serve o presente texto para desvalorizar ou contestar qualquer uma das decisões. O pretendido com esta viagem sumária por três casos mediáticos onde Ivo Rosa teve intervenção é sublinhar que em todos estes processos constam as expressões que são marca da leitura criteriosa que Ivo Rosa faz de um processo, assim como da lei. Foi por isso sem surpresa que vimos várias destas mesmas expressões serem usadas na leitura da decisão instrutória da Operação Marquês, que levou mais de três horas.

Mesmo com muitas decisões revogadas em segunda instância ao longo da carreira e com muitas discordâncias com o Ministério Público, o juiz madeirense manteve-se fiel à sua leitura da lei e à importância de seguir todos os trâmites legais, assim como privilegiar as chamadas provas diretas para uma decisão cem por cento à prova de bala.

Num dos vários perfis já publicados sobre o juiz, um procurador que falou anonimamente ao Expresso disse, em 2019, o seguinte: “O que vejo é que está a boicotar completamente as investigações ao Ministério Público”. O mesmo magistrado disse ainda que Ivo Rosa “tem tido decisões dificilmente sustentáveis do ponto de vista jurídico”, sublinhando que isso é “o que a maioria das pessoas pensa sobre ele”. “E não só no Ministério Público, também entre juízes. Ninguém sabe nunca o que pode vir dali”, afirma.

Se a primeira parte da descrição nos é alheia, a imprevisibilidade podemos, de facto, dizer que é uma das características que parecem definir este juiz que votou em 2016 contra a opinião maioritária do coletivo de juízes internacionais de que fazia parte e que condenou Radovan Karadzic, o “carniceiro da Bósnia”, caracterizado pelos seus colegas como tendo “o maior e o mais grave conjunto de crimes atribuídos a uma única pessoa” em toda a história do Tribunal Penal Internacional. O voto contrário teve por base o facto de a prisão perpétua não estar prevista no código penal português.

“Uma pena, qualquer que seja o seu formato ou duração, não pode perder o seu sentido de humanidade”, escreveu na altura numa declaração assinada a meias com um magistrado espanhol. “É isso que define a diferença entre uma resposta legalmente civilizada e uma vingança tribal", lia-se.

Voltando aos perfis. O Observador escreveu que quem conheceu Ivo Rosa nas Varas Criminais de Lisboa não ficou surpreendido com as polémicas que agora o atingem.

“Nenhum juiz gosta de ver uma decisão sua considerada errada ou com falhas”, disse nesse mesmo perfil um magistrado que também passou pelas Varas Criminais, “mas, se há coisa que o Ivo não tem, é crises de consciência. Não é por ser desinteressado ou displicente, pelo contrário. É porque, quando toma uma decisão, acredita mesmo na bondade do que decidiu, no sentido de ser a opção mais correta, tendo em conta todos os fatores”.

De facto, essa é outra característica de Ivo Rosa. O juiz madeirense tem uma visão muito restritiva da lei não só relativamente ao acesso às provas, como na utilização das mesmas. Fã da prova direta, a única e verdadeiramente irrefutável, ficou conhecido por grande número de absolvições. Conta o perfil publicado no Observador que os mais críticos dizem que este julgava um caso de corrupção, onde existe muito pouca prova direta, da mesma forma que julgava um caso de homicídio, onde são vastas as provas forenses ou outro tipo de prova cientifica.

Agora, são legítimas duas perguntas. A primeira é: como é que Ivo Rosa reage ao facto de muitas das suas decisões serem anuladas no Tribunal da Relação? A resposta é dada pelo próprio numa rara entrevista, neste caso ao programa Vidas de Mérito, da RTP Madeira, em 2017, quando diz que não tem pesos consciência. "Eu decido de acordo com a minha consciência e de acordo com a lei e quando um juiz decide assim, não tem problemas de consciência", afirma. A segunda pergunta é: como é que alguém que há uns parágrafos foi classificado como imprevisível é agora dito como extremamente rigoroso, numa leitura quase matemática e científica do processo? Porque contrasta com os seus pares, incluindo com o juiz Carlos Alexandre, com quem partilha o Ticão, nome pelo qual é conhecido o Tribunal Central de Instrução Criminal, que tem outra abordagem à prova circunstancial e à forma de olhar o processo.

Esta diferença ficou ainda mais patente no caso da Operação Marquês, em que Carlos Alexandre ser trabalhou com o Ministério Público a obtenção das provas que, mais tarde, foram consideradas nulas ou prescritas por Ivo Rosa, cuja decisão ficou muito aquém do que o MP, que tinha acusado 28 arguidos, entre os quais nove empresas, de um total de 188 crimes económicos e financeiros, entre os quais corrupção e fraude fiscal, pretendia.

Timor, a leste das absolvições

Apesar de tudo, seria injusto sumarizar (ou dar a entender) que a carreira do juiz Ivo Rosa se restringe às absolvições — e não haverá melhor prova disso do que o trabalho que desempenhou em Timor-Leste, onde esteve durante dois anos e meio.

Ivo Rosa chegou a Timor em 2006, através de um programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, uma agência da ONU que tinha como competência a implementação de um sistema de justiça em Timor-Leste, quatro anos depois do país se tornar independente e quando estava a dar os primeiros passos da construção de um sistema judicial.

Na entrevista que concedeu à RTP Madeira, afirmou que aqueles foram anos de “trabalho sob condições muito difíceis”, a maior parte do tempo sem eletricidade, “porque o gerador não funcionava”, sem Internet e sem ar condicionado. “Para além disso não tinha funcionários, ou seja, tinha não só de fazer as funções de juiz, mas também tinha de fazer de funcionário, tinha que transcrever depoimentos das pessoas, pôr as pessoas a assinar os documentos”, revela.

Nesse período proferiu mais de 60 acórdãos. Entre os mais marcantes, chumbou algumas normas do Orçamento Retificativo de 2008 por serem inconstitucionais, impondo ao Governo de Díli um teto de 400 milhões de dólares na transferência anual vinda do fundo petrolífero daquele país, e condenou a sete anos e meio de prisão, numa decisão confirmada pelo Tribunal de Recurso, Rogério Lobato, ministro do Interior no I Governo Constitucional de Timor-Leste, de 2002 a 2006, acusado de 18 crimes de homicídio, 11 de homicídio na forma tentada e um crime de peculato, considerando provado que o ex-governante tinha distribuído armas a civis para matarem figuras da oposição.

O mal-estar gerado nos meios políticos e judiciais foi tanto que o Conselho Superior da Magistratura timorense não lhe renovou o contrato e Ivo Rosa viu-se forçado a abandonar Timor-Leste.

“Eu não fui aconselhado a vir embora, eu fui despedido devido a decisões que tomei no âmbito das minhas funções, fazendo respeitar a lei e a constituição, decisões que não foram do agrado do poder político”, disse em entrevista à RTP Madeira.

Conta que, quando foi tratar dos papéis para voltar para Portugal, um funcionário lhe disse que “não podia ir embora, senão os tribunais não eram independentes”. “Acho que isto resume o trabalho que eu fiz em Timor”, diz.

Ivo Nelson de Caires Batista Rosa, natural de Santana, na ilha da Madeira, quarto de cinco filhos, decidiu que queria ser juiz no dia em que assistiu a um julgamento no tribunal do Funchal, no 12.º ano. Mais tarde, deixou a Madeira para ir estudar para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se formou como juiz aos 26 anos. Julgou o primeiro caso por excesso de álcool no Tribunal do Funchal, veio depois para Lisboa, mas rumou a Timor-Leste. Tornou-se no primeiro juiz português a ser eleito pela Assembleia Geral das Nações Unidas para o Mecanismo Internacional para os Tribunais Penais Internacionais, criado pelo Conselho de Segurança para substituir os tribunais da ex-Jugoslávia. Em 2015, escolheu o Tribunal Central de Instrução Criminal, até então dominado pelo juiz Carlos Alexandre, para trabalhar. Hoje, para além de tudo o que ocupou as linhas deste artigo, é também alvo de uma petição que pede o “afastamento do Exmo. Sr. Juiz Ivo Rosa de toda a Magistratura face à sua parcialidade e consecutivos erros judiciais lesivos ao Estado e à Nação Portuguesa” e que já foi assinada por mais de 180 mil pessoas.

Quem o conhece ou se cruzou com o juiz nos tribunais não se mostra surpreendido com a polémica gerada pelas suas decisões. Mas quem provavelmente não tem nada a dizer sobre isto é o próprio Ivo Rosa, descrito como um lobo solitário, em harmonia consigo e com as suas decisões. Nada disto lhe tira o sono, até porque se tirasse, já teria concorrido para o Tribunal da Relação, como teve oportunidade várias vezes, conta o próprio em entrevista à RTP. Não o fez porque isso o mergulharia em papelada e o afastava das pessoas. E seis mil páginas e zero pessoas é tudo o que Ivo Rosa não quer.

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