Mortes, muitas, níveis de desemprego assustadores, distanciamento social, nervos à flor da pele. Por todo o mundo a Covid-19 mudou vidas e, da falta de material de protecção às crises política e económica, das palmas à janela à incerteza, é assim que dez portugueses estão a viver a pandemia em dez países no estrangeiro.
Hoje começamos por vos contar a história da Teresa, em Madrid, do Francisco, em Munique e da Dulce em Västerås.
O vírus é o mesmo, mas o combate está a ser feito de formas diferentes, dependendo, sobretudo, não só dos meios de cada governo, mas da cultura e da história de cada Estado.
Teresa Coutinho - Madrid, Espanha
Teresa, funcionária do gabinete do Parlamento Europeu, não vê os três filhos menores há 45 dias. Perdeu o aniversário da mais pequena, Constança, e vai tentar tudo para chegar a tempo ao do mais velho, Lourenço, que faz hoje 15 anos. Quando decidiu ir trabalhar para Madrid, há quase nove meses, estava longe de imaginar o caos em que Espanha se transformou: mais de 215 mil infetados por Covid-19 e quase 25 mil mortos em pouco mais de dois meses.
Agora as medidas estão a aliviar, mas ainda assim o governo prorrogou o estado de emergência até 9 de maio. Houve, aparentemente, uma estabilização do número de infectados e do número de mortos, "mas os números valem o que valem", considera Teresa. E lembra que o país chegou a registar 900 mortes por SARS-CoV-2 por dia, e agora está abaixo das 300. "Isso já foi uma vitória, embora seja triste dizer que estes números são uma vitória, porque uma vida humana já é de mais".
Ainda assim, a diferença é imensa e isso nota-se em diversos "pormaiores". O Palácio do Gelo, ali bem perto de casa, onde mãe e filhas costumavam ir patinar e onde habitualmente se realizam diversas competições internacionais, esteve transformado em morgue durante várias semanas. "Era preciso encontrar alternativas viáveis para tantos corpos que se tornou impossível sepultar". Atualmente, esta e outras estruturas, como o hospital de campanha em que foi transformada a Feira Internacional de Madrid, um parque de exposições equivalente à FIL - Feira Internacional de Lisboa, começam a ser desmanteladas.
As restrições impostas desde o início de março, com a declaração do primeiro estado de emergência a 16, começam a suavizar, com a abertura de alguns sectores não essenciais da economia, como a construção ou o pequeno comércio, e novas regras de isolamento, que também afrouxam. "Tudo pouco a pouco, de forma muito progressiva", diz Teresa. Ainda assim, as críticas já começaram, "porque existem sempre, mas também porque houve abusos". Por isso, às salvas de palmas à janela aos profissionais de saúde todos os dias às oito da noite, juntou-se um coro de bater de tachos contra os políticos uma hora antes. De resto, todos os dias, nos briefings diários, "que acontecem tal qual como em Portugal", é dito que é preciso ter muito cuidado, porque o vírus não desapareceu e os números ainda são muito elevados".
Afinal, todos têm ainda muito presente o descalabro. O primeiro caso positivo em Espanha foi confirmado nas Ilhas Canárias, a 31 de janeiro. No entanto, é na comunidade de Madrid que tudo se precipita, a 25 de fevereiro. Teresa recorda como se fosse hoje: "Dizia-se que era um caso esporádico, um espanhol que tinha importado o vírus de Itália. Aliás, a entrada do vírus em Espanha ficou a dever-se muito ao jogo Atalanta-Valência, porque muitos espanhóis foram ver o jogo [San Siro, 19 de fevereiro]". Depois veio o Dia Internacional da Mulher e as manifestações de 8 de março, que funcionaram como barril de pólvora. "Hoje fala-se na manifestação de 8 de março como um dos principais pontos de contágio. Juntou milhares de pessoas no centro de Madrid, e muitas foram contaminadas aí, entre elas a ministra da Igualdade", Irene Montero. A partir daí, "as coisas descontrolaram-se e cresceram de uma forma que ninguém previa", continua Teresa.
"Lembro-me de que no dia em que o primeiro-ministro espanhol [Pedro Sánchez] anunciou, às oito da noite, que iam fechar as escolas, foi uma explosão de alegria enorme. Depois começaram a pensar melhor"
Poucos dias depois, a 10 de março, o governo suspendia as aulas. "As escolas começaram logo no início a tomar medidas, como obrigar os miúdos a lavar as mãos, chamar a atenção para não porem as mãos na cara, na boca, nos olhos. As meninas começaram a perguntar o que era isto do coronavírus, expliquei, e começaram a inventar brincadeiras e canções entre elas. Lembro-me de que no dia em que o primeiro-ministro espanhol [Pedro Sánchez] anunciou, às oito da noite, que iam fechar as escolas, foi uma explosão de alegria enorme. Depois começaram a pensar melhor, sem escola iam deixar de estar com os amigos, e esse foi o reverso da medalha".
Antes disso, o Parlamento Europeu já tinha proposto o regime de teletrabalho. "No edifício onde funciona o gabinete em Madrid, funcionam também a representação da Comissão Europeia e a Embaixada da Irlanda, portanto, há muitas pessoas. E houve alguns casos identificados já depois de estarmos em casa. Gradualmente desde meados de fevereiro o Parlamento começou a tomar medidas: cancelou imediatamente todos os eventos, até porque a maior parte do trabalho que fazemos envolve muita gente e é essencialmente com o público - eu sou responsável por um programa que envolve 105 escolas em Espanha. As medidas foram apertando: primeiro deixaram de entrar pessoas no edifício, até para serviços, o contacto passou a estar reservado aos funcionários, até 100% dos trabalhadores serem mandados para casa".
Teresa acredita que o paradigma do trabalho irá mudar daqui para a frente. "O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia já promovem muito o teletrabalho como forma de conciliação da vida profissional com a vida familiar, é um instrumento muito útil a que tantas vezes podemos recorrer, mas penso que muitas empresas, muitos empregadores vão ganhar consciência de que é possível trabalhar desta forma", diz.
"Quando levei as minhas filhas a Cáceres, a cidade que fica exactamente a meio caminho entre Lisboa e Madrid, cerca de 300 quilómetros para cada lado, para as entregar ao pai, pensei se não seria bom eu ir também"
Talvez por isso, as filhas "só perceberam que a situação era séria" quando a mãe lhes comunicou que as duas iriam regressar a Portugal, ter com o irmão, que já aí estava com o pai. Dia 16 concretizou-se a viagem, en hora buena, pois a 17 de março o governo decide restabelecer o controlo de fronteiras terrestres e deixa de ser possível circular entre Espanha e Portugal e mais tarde mesmo entre regiões autónomas espanholas. "Quando levei as minhas filhas a Cáceres, a cidade que fica exactamente a meio caminho entre Lisboa e Madrid, cerca de 300 quilómetros para cada lado, para as entregar ao pai, pensei se não seria bom eu ir também. Mas a verdade é que vínhamos de Madrid, as crianças tinham acabado a escola dias antes, estávamos no período de 14 dias de quarentena e não sabia se estaria contaminada. Elas tampouco. Na altura, havia a segurança de Portugal ter menos casos, embora fosse expectável que o número aumentasse, mas, sobretudo, preferi que ficassem confinadas no campo, numa quinta, onde têm ar livre e animais e onde os irmãos estão todos juntos. No meu caso as coisas obrigavam a uma logística que no momento não me era possível", conta.
Nessa altura Espanha vivia já um descalabro: mais de 56 mil infectados, dos quais cerca de 6500 médicos e enfermeiros, 3600 pessoas em estado crítico [unidade de cuidados intensivos], um terço dos casos na comunidade de Madrid. "Os serviços médicos estão completamente no limite, não há camas, não há máscaras, não há ventiladores. O governo investiu imenso, mais de 432 milhões de euros, na compra de material à China, mas adquiriu testes que, veio a saber-se, não estavam reconhecidos, o que gerou uma enorme polémica".
Tal como em Portugal, as pessoas passaram a ser mandadas parar pela polícia e conduzidas a casa caso não possuíssem uma carta da empresa a justificar a saída ou um motivo válido para estar fora da área de residência. O isolamento passou a ser obrigatório e passou mesmo a ser proibido estar até nos jardins comuns, incluindo de condomínios. Ainda assim, houve de tudo. "Desde o primeiro dia do estado de emergência que vejo a polícia passar por aqui muitas vezes, no centro de Madrid ainda mais. Há patrulhas por todo o lado e foram detidas pessoas pelos mais diversos motivos, desde por estarem a passear o cão e porem-se à conversa - diz a tradição que os espanhóis vivem na rua, o isolamento está a custar-lhes imenso - a um homem de 77 anos apanhado à caça de Pokémon", avança.
Por estes dias, e com o relaxamento das medidas, as crianças, há um mês e meio confinadas em casa, já podem sair à rua, embora com restrições: a saída é limitada à distância máxima de dois quilómetros da morada, não podem ir os dois pais ao mesmo tempo e, no caso das famílias numerosas, têm de se dividir para evitar ajuntamentos. "É natural que as crianças, depois de tanto tempo fechadas em casa e quase sem poder descer aos jardins dos condomínios, aquelas que têm a sorte de os ter, precisem de uma certa normalidade na sua vida", afirma Teresa Coutinho, que, mesmo por videochamada e à distância de cerca de 650 quilómetros, continua a dar apoio aos filhos, sobretudo às duas mais novas. "Louvo todos os pais pelo seu trabalho, porque conciliar as aulas dos filhos com o teletrabalho, muitas vezes com plataformas comuns, porque eu precisava do computador e elas também, eu estou num reunião de trabalho e elas interrompem para tirar uma dúvida", não é nada fácil.
"Faço uma espécie de exercício diário cujo ponto alto é quando vou deitar fora o lixo, dou vinte voltas ao edifício pelo jardim do condomínio"
Desde o início, Teresa tentou manter a rotina. "Tento que os meus dias sejam o mais iguais possível ao que eram antes. Levanto-me à hora que me levantava para ir trabalhar, começo a trabalhar à hora que começaria se estivesse no escritório, marco reuniões e tento manter alguma actividade física com aulas de pilates por Messenger, Hangouts ou Zoom e todas estas plataformas que entretanto foram criadas, seja em directo seja através de aulas colocadas no YouTube. Opto por, durante as horas de sol, ir trabalhando nas zonas da casa mais expostas, para não me faltar vitamina D, e faço uma espécie de exercício diário cujo ponto alto é quando vou deitar fora o lixo, dou vinte voltas ao edifício pelo jardim do condomínio".
À data de hoje já existem algumas certezas, mas as dúvidas ainda são muitas. Sabe-se que vão começar a abrir as lojas de rua, os centros comerciais - "os cabeleireiros e lavandarias estiveram sempre disponíveis, sobretudo por causa dos mais idosos e das pessoas pessoas que não conseguem tratar da sua higiene pessoal a esse nível" -, mas ainda não se sabe se as escolas vão reabrir, embora "o objetivo continue a ser abrir 15 dias em junho, que é o que é dito pelo Ministério da Educação, não há nada certo". Para já, "o ensino continua à distância, com algumas aulas através da TVE2 para os alunos do público, enquanto as escolas privadas ou concertadas, que são as que têm um apoio estatal, têm mais aulas online e melhores recursos".
O maior receio é a recessão económica, "que me parece inevitável, não devido ao período em que muitas actividades estiveram encerradas, mas às situações de lay-off e de despedimentos. Li esta semana uma notícia que dizia que já há 300 mil novos desempregados em Espanha. A taxa de desemprego, que rondava os 10%, pode duplicar, segundo estimativas do FMI [Fundo Monetário Internacional]. Uma taxa de desemprego de 20%, num país com 45 milhões de pessoas, é brutal".
Brutal é também o aumento da violência doméstica, desde sempre um grave problema em Espanha. "Quando o governo anunciou as primeiras medidas no que respeitas a restrições e apoio aos trabalhadores, sobretudo trabalhadores independentes e pequenas e médias empresas, anunciou também uma medida especial dedicada às mulheres vítimas de violência doméstica. Desde logo uma série de hotéis pagos pelo Estado ficaram disponíveis para receber essas mulheres e os seus filhos, se os tiverem, que estavam confinadas com o seu agressor. Houve ainda um reforço das linhas de apoio às vítimas, e há bastantes em cada comunidade autónoma. Mas ainda há poucos dias houve o caso de um homem que atirou a mulher pela janela; apesar de os vizinhos terem ouvido os gritos e terem colocado colchões na rua, não conseguiram salvá-la", conta.
De resto, os funerais seguem da mesma forma, com fortes regras de segurança: não há velórios ou as exéquias habituais e só duas pessoas podem estar presentes na cerimónia, seja de "morte morrida", seja de "morte matada", como diria o poeta.
Francisco Chuva - Munique, Alemanha
Francisco está em regime de home office. No escritório onde trabalha as primeiras medidas adotadas foram de distanciamento: "Os gabinetes têm à volta de dez metros quadrados e não podia estar mais de uma pessoa por gabinete. Quem partilha sala tinha de ir à vez e tem sido assim até agora. Mas esta foi uma medida imposta pela empresa, não pelo governo", esclarece.
Depois o governo decretou a quarentena, e foi então que a empresa permitiu que todos ficassem em regime de teletrabalho. "Foi assim que estive durante algum tempo, mas tenho ido duas vezes por semana ao escritório, tendo em conta que não o posso fazer se estiver lá alguém próximo; tenho de ficar a dois metros de distância e não pode haver reuniões presenciais. No meu caso, funciono muito à base de emails e chamadas de telefone, não tem havido muitas conferências. Para a semana passarei a ir ao escritório todos os dias", adianta.
É engenheiro civil, trabalha há quatro anos na Alemanha e está há dois em Munique. E foi precisamente na Baviera, perto do Starnberger See, um dos lagos da região, que apareceram os primeiros casos de Covid-19. A doença alastrou muito rapidamente e a Alemanha é hoje o 5.º país do mundo mais afetado, com cerca de 164 mil casos, 121 mil recuperados e mais de 6700 mortos.
"As medidas de contenção começaram a ser impostas no final de março", por isso, e porque o país "tem um sistema de saúde muito bom", as mortes são muito poucas, considera Francisco Chuva. Foram canceladas feiras e exposições, fecharam restaurantes, bares e discotecas, a circulação de pessoas foi restringida.
Desde o início a empresa onde trabalha, num edifício de seis andares, distribuiu máscaras e luvas a todos os trabalhadores. "É obrigatório andar de máscara e, apesar de as luvas nunca terem sido impostas e de quase ninguém as usar, a verdade é que estão lá à disposição", diz.
Francisco só se apercebeu de falhas depois de os médicos lançarem "a moda" de postar nas redes sociais fotos sem roupa, como protesto pela falta de material hospitalar
Não se lembra de ter havido falta de proteção individual, mas recorda que o papel higiénico e o álcool-gel esgotaram nos supermercados. Além disso, só se apercebeu de falhas depois de os médicos lançarem "a moda" de postar nas redes sociais fotos sem roupa, como protesto pela falta de material hospitalar. "Penso que a falta de material não será assim tão grande, porque do que sei por amigos que trabalham em hospitais, é que estão a ser desmanteladas unidades por não serem necessárias. Mas isto é na Baviera, pode haver estados onde houve falta de máscaras e ventiladores...", justifica.
As medidas de relaxamento já começaram, a quarentena abrandou e as lojas mais pequenas foram abrindo a conta-gotas nos últimos dias. Na próxima semana reabrem as superfícies com mais de 800 metros quadrados. As regras de distanciamento mantêm-se, um metro e meio entre cada pessoa e uso obrigatório de máscara e carrinho de compras, que ajuda a manter a distância mínima. À porta dos estabelecimentos as pegas dos carrinhos são desinfetadas antes de seguirem para o próximo cliente.
Para Francisco o êxito da Alemanha, onde "as coisas funcionaram até relativamente bem" e que "obteve uma resposta que outros países não conseguiram", ficou a dever-se, pelo menos em parte, ao facto de cada um dos 16 estados poder tomar decisões próprias, apesar das recomendações do governo, tornando a gestão local da pandemia mais flexível e adaptável.
"Este tipo de resposta personalizada ou de acordo com as necessidades de cada estado, permitiu dar uma resposta mais adequada à crise do coronavírus". É por este motivo que, por exemplo, apesar de o governo permitir a reabertura das escolas já a partir do dia 10 de maio, ali as escolas permanecerão fechadas ainda mais uma semana além disso.
"A Baviera tomou medidas um pouco antes dos outros estados, até porque foi aqui que começou a crise do coronavírus na Alemanha. Além disso, o sistema de saúde alemão é muito bom; prepararam-se e cada hospital tem uma ala própria para fazer a triagem dos doentes Covid-19. A capacidade existente é até excessiva, agora perceberam que não têm tantos doentes como previram e estão a desmantelar unidades que montaram e que não foi necessário utilizar. Mas, antes a mais do que a menos", desabafa.
Afinal, o que significa um bom sistema de saúde? "Significa que existe um apoio a toda a população e que se eu for às urgências vou ser atendido atempadamente. Há uma rede de hospitais muito boa... Também pagamos impostos altos para que isso aconteça, há seguros privados e há seguros públicos, mas quer uns quer outros são uma fatia grande do nosso salário", responde. "Este tipo de serviços sai-nos dos bolsos, mas vê-se".
"O que falha mais é o facto de as pessoas quererem juntar-se, fazer festas, apanhar sol e outras coisas que não deveriam"
Ainda assim, e como em quase todos os países, na Alemanha também há transgressores. "O que falha mais é o facto de as pessoas quererem juntar-se, fazer festas, apanhar sol e outras coisas que não deveriam", afirma Francisco. Agora chove e a temperatura voltou a descer, mas nas duas últimas semanas o tempo esteve soalheiro e as pessoas aproveitaram para ir até aos lagos ou para passear de bicicleta. Eu próprio fiz isso, toda a gente queria sair à rua".
A polícia, no entanto, não permite grandes aglomerados de pessoas, "mas foi totalmente passiva, porque é impossível impedir as pessoas de ir para a rua, passear de bicicleta ou fazer jogging para vencer a inércia de quem está em casa a ficar obeso e sedentário". Só os grandes grupos são repreendidos. E multados. Na véspera do 1 de maio a força policial foi reforçada e teve de intervir em várias "house parties", nomeadamente em Berlim. Algumas celebrações com um máximo de 20 participantes foram autorizadas, mas até amanhã as aglomerações com mais e duas pessoas estão sujeitas a multas de 200 euros. "Alguns amigos foram apanhados pela polícia no meio de muita gente e foram multados em mil euros por cabeça", conta.
Apesar disso, este não é um hábito alemão. "Os alemães não costumam agrupar-se muito. Mesmo no verão no ano passado, quando não existia pandemia nenhuma, o máximo que se via nos lagos ou nos parques públicos era pessoas aos pares ou um aqui e ali a ler um livro. Não é como em Portugal, que vemos 20 ou 30 pessoas juntas na praia. Aqui andam em grupos pequenos, de três ou quatro pessoas no máximo".
"Este é um país de velhinhos, e os estrangeiros são como eu, emigrantes jovens"
Por contraste com os mais novos, os mais velhos fecham-se a sete chaves. "O que não ajuda nada na Alemanha é a demografia", afirma Francisco. "Este é um país de velhinhos, e os estrangeiros são como eu, emigrantes jovens. Uma grande parte da população alemã está muito envelhecida. E esses não saem de casa, muitos aumentam o isolamento das janelas e das portas para garantir a sua segurança, estão mais assustados. Às vezes, na ida ao supermercado, vejo na rua senhores mais velhos, e eles preferem atravessar a estrada do que cruzarem-se com uma pessoa jovem".
Ainda assim a assistência é boa e a Alemanha tem feito imensos testes - "mais do que a maior parte do resto dos países da Europa" - e essa triagem permite detetar os casos positivos e agir em conformidade. Francisco não foi testado e nunca teve sintomas: "Sinto-me saudável e com vontade de sair à rua".
Mas na Alemanha, como noutros países, a indústria parou. "Esta crise representa uma pancada muito grande na indústria automóvel alemã, que é o motor deste país: Volkswagen, BMW, Audi, Mercedes, todas eles estão num sufoco", considera o engenheiro civil. Também por isso, "embora ainda nem tudo esteja claro, porque isto é um pouco uma questão de tentativa e erro, esta segunda-feira muitos negócios vão reabrir". Depois, tudo dependerá da evolução do número de casos.
De resto, a verdade é que, como nota Francisco, "a economia alemã já estava a entrar em recessão, estava estagnada no final do ano passado. Isto foi apenas a gota de água, mas já estava para acontecer. Por acaso foi uma pandemia, mas podia ter sido outro fenómeno qualquer: a crise económica já se previa".
Só que a Alemanha tem arcaboiço: um superavit nos últimos seis anos permite-lhe estar agora mais à vontade para injetar dinheiro na economia. Para já tem preparado um pacote de 750 mil milhões. "As empresas, claro, estão todas a penar, mas não há nenhuma que fique desprotegida, tirando aquelas que têm sede em paraísos fiscais", garante.
Quem parece ter ficado fora da crise são as startup, empresas mais tecnológicas e já habituadas ao regime de teletrabalho. Francisco dá o exemplo do seu colega de casa: "Partilho casa com um engenheiro informático que trabalha numa fintech. Ele nem sentiu, não foi minimamente afectado; levaram os computadores para casa e continuaram a trabalhar. Agora, as empresas mais antigas, essas ressentem-se, claro que sim. Isto é um bola de neve, se a maior parte das pessoas não pode trabalhar, todas as empresas levam por tabela. A empresa onde trabalho também sentiu isso, o pânico é generalizado, tudo o que era trabalhadores temporários foram despedidos e bastantes outros também porque, por enquanto, não precisos".
Quando a empresa mandou os trabalhadores para casa em regime de home office Francisco pediu para ficar a trabalhar a partir e Portugal, mas a empresa não quis arriscar, com receio que o fecho de fronteiras o impedisse de voltar. "Estando a trabalhar em casa, preferia estar perto da família e dos amigos que tenho em Portugal. O sistema português não é tão bom como o alemão, nesse aspeto estou mais protegido aqui. Para já, os voos vão continuar cancelados no mês de maio, "mas para junho não houve voos cancelados, penso que vai haver uma retoma dos voos", diz. Está à espera de viajar? "Sim, sim, quero ir para Portugal mal possa".
"Em relação à vizinhança senti uma aproximação e um novo sentimento e bairrismo. Conheci muitos vizinhos que nunca tinha visto antes"
Enquanto isso, continuará mais horas em casa e na varanda, onde parecem estar todos os vizinhos com uma taça de vinho nos dias que correm. "Em relação à vizinhança senti uma aproximação e um novo sentimento e bairrismo. Conheci muitos vizinhos que nunca tinha visto antes, porque não estavam tanto por casa e porque há uma solidariedade mútua: estamos juntos nisto. Todos no mesmo barco até voltar a normalidade", admite.
Francisco não é diferente da maioria e confessa que "foi difícil ficar preso". Joga PlayStation, ping-pong e dardos com o colega de casa para desanuviar, mas sente "falta dos bares, restaurantes, cinemas e concertos com os restantes amigos".
Sobre outra vizinhança, a dos outros países da União Europeia, considera que "o projeto europeu está comprometido", mas acredita que "a Alemanha vai acabar por ser solidária", ao contrário de outros países, como a Holanda, mais reticentes na aprovação de um plano de emissão de dívida conjunta.
Enquanto não se encontra a vacina para salvar a economia, procura-se a cura para a Covid-19 e os laboratórios alemães estão na corrida. "Penso que não devem conseguir a vacina este ano e duvido que sejam os primeiros, porque, apesar de estarem na vanguarda da investigação, os alemães são muito cautelosos e fazem tudo com muito rigor. Claro que a confiança numa vacina alemã também é outra, mas penso que os alemães não vão conseguir a vacina este ano. Aliás, o Trump veio cá tentar convencê-los a vender as licenças, mas não foi muito feliz. E os alemães estão nesta luta, mas são realmente muito burocráticos e até às vezes até um pouco obsoletos nos processos".
O principal receio, por isso, é que uma nova vaga de SARS-CoV-2 "chegue no outono, já depois do calor, e faça disparar o números de casos, como aconteceu em Itália ou em Espanha". Esperemos que não.
Dulce Vilaça - Västerås, Suécia
Dulce é engenheira mecânica e está na Suécia há seis anos e meio. Um dos motivos que a levou a aceitar partilhar este testemunho foi o facto de ter ficado impressionada com o que nos outros países se diz do caso sueco. "As coisas não se passam assim", garante.
"Na Suécia as pessoas só se cumprimentam com um beijo em duas situações: quando se conhecem pela primeira vez ou quando têm a certeza de que nunca mais se vão ver"
E explica: "Na Suécia as pessoas só se cumprimentam com um beijo em duas situações: quando se conhecem pela primeira vez ou quando têm a certeza de que nunca mais se vão ver", brinca. Mas é, de facto, mais ou menos assim.
Mais a sério, continua: "Para começar, devo dizer que já passei por várias fases, também fui evoluindo. Não há dúvida de que as medidas mais restritivas que estão a ser tomadas noutros países são mais seguras. No entanto, a grande preocupação na Suécia, e a razão por que isto está a ser feito de outra forma, é a economia. Isto não é uma experiência, nunca foi uma estratégia para aumentar a imunidade de grupo, embora isso tenha sido dito. Não é. A questão de raiz é económica".
Os suecos, garante Dulce, sempre foram pessoas ponderadas e pesaram bem todas as questões. Desde o início o pensamento foi este: se fechamos tudo, as empresas vão todas à falência. "A economia na Suécia é uma economia em muito boas condições; o Estado tem dinheiro, mas é uma economia baseada no facto de haver muitas empresas em boas condições que, por isso, têm muitos trabalhadores e muito bem pagos. Não é uma economia sustentada no Estado. E, se as empresas falirem, o Estado é terrível, porque não existe, por exemplo, subsídio de desemprego".
Daí a dizer que não existe um plano de contenção e que as pessoas andam todas como se nada fosse, há uma grande diferença, afirma. "O governo foi proibindo os comportamento mais críticos", como "eventos com mais de 50 pessoas, o que significa que não há missas, não há cinema, teatros, espectáculos ou feiras". "Tanto as escolas secundárias como as universidades estão a funcionar em regime de ensino à distância" e apenas estão a funcionar as escolas até ao 9.º ano. O motivo foi exatamente este: para as pessoas não terem de deixar de trabalhar para ficar com os filhos", diz. "Além disso, foi avaliada a questão de as crianças mais pequenas sofrerem menos com esta doença, exceção feita àquelas que têm doenças crónicas".
Desde o início, também "foram criados hospitais de campanha, mesmo antes e haver necessidade. Aliás, nunca chegaram a ser usados. Em Estocolmo, por exemplo, existe uma grande área, o Centro de Exposições de Estocolmo, equivalente à FIL portuguesa, e toda essa zona foi transformada num hospital, com equipamentos militares e centenas de camas e ventiladores, mas nada está a ser necessário", diz Dulce Vilaça.
A Suécia tem hoje mais de 21.500 casos positivos e mais de 2600 mortos, em apenas perto de mil recuperados. "Eles", o governo, "reconhecem que há muitos mortos, o que justificam com o facto de terem melhores estatísticas do que os restantes países". Neste aspecto em particular, Dulce também tem as suas dúvidas.
Mas, ainda assim, as notícias que passam em Portugal "parecem exageradas" e Dulce Vilaça quase podia garantir que as imagens não são de agora.
"É um sistema em que, normalmente, as pessoas são mandadas tratar-se em casa. E é também da própria população não ir às urgências ou aos centros de saúde como em Portugal"
Quando perguntamos se a Suécia é um modelo a seguir ou o maior espalhanço europeu, é preciso ter diversos factores em consideração. Entre eles, o sistema nacional de saúde do país e a forma como a população lida com as doenças. "O sistema privado é quase inexistente, o sistema público é a base de tudo". Como funciona? "É um sistema em que, normalmente, as pessoas são mandadas tratar-se em casa. E é também da própria população não ir às urgências ou aos centros de saúde como em Portugal. Ainda hoje uma colega que esteve em casa dois dias porque a filha tinha alguns sintomas de Covid-19, dores de cabeça e cansaço, me disse que não havia necessidade de contactar um médico, quando lhe perguntei por que motivo não o fazia. As pessoas tratam-se em casa e o sistema de saúde é muito assim", explica Dulce.
"No fundo, a Suécia não declarou estado de emergência nem definiu uma quarentena obrigatória ou o encerramento de tudo e mais alguma coisa", mas criou "alternativas viáveis", nomeadamente fez aprovar uma lei que permite que, em caso de necessidade, algumas medidas possam ser aprovadas sem ter de passar pelo parlamento, de forma a agilizar processos". Entre essas medidas estão o encerramento de linhas ou estações de comboios ou de escolas. "Não é que a Suécia tenha enlouquecido e, não sei se sabe, mas a OMS [Organização Mundial de Saúde] referiu-se à Suécia na sua conferência de imprensa diária de uma forma positiva, dizendo que o modelo escolhido pelo país também, com distanciamento social voluntário e sem parar a economia, também é um exemplo a analisar".
Mas foram tomadas medidas. "As pessoas andam mais distantes, os autocarros andam mais vazios e existem um número de cuidados nas idas ao cabeleireiro ou a restaurantes". Há regras bem definidas: por exemplo, "nos restaurantes, mesa sim, mesa não tem uma cruz em cima, tão simples quanto isso, não e preciso ir lá ninguém bater nas pessoas para não se sentarem", diz.
Mas todos esses locais estão hoje mais vazios do que antes e as pessoas socializam menos e quando o fazem optam por fazê-lo em espaços abertos. "Conheço pessoas que na Páscoa se queixavam: "ah, não posso fazer o jantar de família que costumava fazer, por isso vamos fazer um lanchinho no jardim com os miúdos, está toda a gente à distância e vemo-nos na mesma". O mesmo com festas de aniversários de miúdos". Ao mesmo tempo, evita-se o contacto com idoso ou grupos de risco.
Dulce dá outro exemplo: "No meu grupo, a quem foi pedido para continuar a trabalhar, estão a trabalhar pessoas que se sentiam bem com isso e que não tinham problemas. Tenho colegas com filhos doentes ou que são diabéticos e que foram logo para casa. As restrições existem, os cuidados existem, mas são mais suaves, está tudo a funcionar: ginásios, piscinas, mas tudo muito vazio", adianta.
Ontem celebrou-se o 1.º de Maio, data em que a Suécia faz uma grande festa, com saltos à fogueira, uma espécie de boas-vindas à Primavera, que coincide com o fim do ano letivo e, por isso, é participada por muitos jovens. "Não fechamos os concelhos, como aconteceu em Portugal ou na Irlanda, mas estas festas, que normalmente se realizam em parques públicos, foram proibidas e os jardins foram vedados ou ficaram sob vigilância das autoridades".
A maior prova de que muitos serviços não estão a ser utilizados são os lay-off e os despedimentos. "Há duas semanas os números do desemprego já eram assustadores", afirma Dulce. "O governo tem disponibilizado muitos milhares para apoiar as empresas, mais do que as pessoas, mas sempre com a visão de que as empresas mantenham os empregos e as pessoas continuem a receber os seus ordenados, em vez de apoiar as pessoas directamente e deixar as empresas ir à falência. Há várias ajudas às grandes empresas, como a SAS ou a Volvo, muito importantes para a economia nacional, e há também medidas para as empresas mais pequenas, como aos taxistas, uma das áreas profissionais mais afetada, por estar associada a deslocações, viagens, aeroporto. Por exemplo, na Suécia as baixas de curta duração são pagas pelas empresas e não pela Segurança Social. Agora, e excecionalmente para esta situação, é o Estado que paga".
"Ninguém é testado aqui. E essa é a parte que dá um pouco de insegurança"
Para Dulce Vilaça existe apenas um senão: "Ninguém é testado aqui. E essa é a parte que dá um pouco de insegurança. No entanto, quando me perguntava se me sinto mais ou menos segura, posso dizer-lhe que a situação económica que vai existir no mundo pós-Covid-19, e que vai afectar a Suécia, porque nenhum país vive sozinho, é uma parte importante dessa segurança, mas aquilo com que não me sinto nada segura é o facto de só ser testado quem é internado num hospital".
Desde há duas semanas, sensivelmente, começaram também a ser feitos testes de fio a pavio em lares, tal como aos profissionais de saúde que manifestam sintomas. "Não fui testada e não conheço ninguém que tenha sido testado, apesar de várias pessoas com quem. trabalho terem estado doentes com todos os sintomas típicos de Covid-19 - tosse, febre, dificuldade respiratória", admite.
Além da falta de teste, a Suécia tem também falta de material de proteção individual. "Comprei luvas sem problema nenhum, mas máscaras não consegui arranjar". Quando ainda não tinha sido diagnosticado nenhum caso de Covid-19 no país, Dulce tentou comprar máscaras, porque o filho ia viajar. "Tentei inclusive em lojas do tipo da Leroy Merlin e a única coisa que consegui foi comprar máscaras para protecção de poeiras, mas muito poucas. Também sei que falta equipamento de proteção individual porque tem sido um problema para os profissionais de saúde, nomeadamente - e isso tem sido muito falado aqui - os que tratam dos idosos".
Na Suécia a esperança de vida é alta e taxa da população idosa é elevada. "Outra questão que é muito sueca é que há muitos poucos idosos a viver com familiares, não existe essa coisa de várias gerações na mesma casa, ou se existe são exceções. Habitualmente, os idosos vivem sozinhos e têm assistência domiciliária, que está a funcionar normalmente, mas com falta de equipamentos de proteção".
Com exceção dos grupo de risco, não existe na Suécia uma recomendação para o uso de máscara ou luvas. Dulce trabalha em open space e "aquilo que foi feito, porque a maior parte das pessoas estão a trabalhar de casa, com exceção de um grupo de pouco mais de 20 pessoas a quem foi pedido para garantir o serviço, é que fomos espalhados de forma a ter sempre pelo menos uma secretária de intervalo entre cada um. Temos como regra não estarem numa sala de reuniões mais de cinco pessoas e acabamos por estar muitas vezes a participar na mesma reunião mas por Skype, embora as pessoas estejam sentadas duas mesas à frente umas das outras".
Apesar de tudo, regressar a Portugal por causa do vírus não foi coisa em que Dulce Vilaça tivesse pensado. O maior receio? "Neste momento os meus filhos estão ambos em Portugal, a minha filha a estudar, o meu filho foi apanhado no meio do caos e acabou por ficar. Têm 20 e 22 anos e são ambos atletas de alta competição. O que me custa mais é não fazer ideia de quando vou voltar a poder abraçá-los ou, pelos menos, vê-los ao pé. Não quero ver pessoas morrer, mas não tenho aqui ninguém que pertença a grupo de risco, incluindo eu, que estou saudável , tanto quanto sei. Faço uma vida extremamente solitária, do trabalho para casa e passeio ou corro na mata, onde raramente encontro pessoas e dá para ter o maior distanciamento social que quisermos. E essa é a questão, porque mesmo não existindo qualquer restrição em relação às saídas para a rua, as pessoas têm cuidados. Mas os suecos acham perigoso fechar as pessoas, cria depressões e não é saudável, têm tendência para comer mal, além de que é importante que as crianças continuem a fazer desporto, não em cima de outras crianças, mas ao ar livre", conclui.
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