Em entrevista à agência Lusa, a propósito da Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os oceanos, que se realiza em Lisboa, entre 27 de junho e 01 de julho, o almirante Gouveia e Melo começou por desvalorizar o impacto no calendário da recente recusa do Tribunal de Contas ao visto prévio ao contrato entre o Governo e a IdD-Portugal Defence para a gestão do programa de aquisição de seis navios de patrulha oceânicos.

“Em termos de longo prazo vai afetar pouco. No curto prazo pode ter um atraso de dois a três meses no projeto mas que depois pode ser recuperado. Convém é que as coisas arranquem bem e o Estado tem que encontrar a melhor maneira de fazer esse investimento. O investimento já foi decidido que vai ser feito, portanto, a Marinha não está ansiosa relativamente a isso porque é uma questão de tempo”, respondeu.

Este tipo de plataformas, explicou, é importante para Portugal devido ao “grande espaço para vigiar e controlar” que o país tem, sendo que atualmente a Marinha tem poucos navios oceânicos e dois deles “têm que ser abatidos”.

“Por outro lado, dentro do conceito NATO, porque nós também somos militares, o nosso grande papel é garantir que o Atlântico continua a ser um lago da NATO, no que respeita ao movimento estratégico de apoio entre as duas partes do oceano, quer da Europa aos EUA, quer dos EUA à Europa”, salientou.

Segundo o almirante Gouveia e Melo, a Aliança Atlântica tem superioridade no que toca a navios de superfície e aeronaves mas é importante desenvolver a capacidade antissubmarina.

“Pela sua capacidade de operarem de forma discreta e não serem detetados, submarinos de outras potências podem vir a ocupar o Atlântico norte e impedir esses movimentos logísticos. Portanto, o grande contributo que Portugal tem, com os Açores, com a Madeira, com a sua posição, é combater e estar preparado para ajudar no combate aos submarinos”, afirmou.

Questionado sobre o que espera ao nível das verbas para a Defesa no próximo Orçamento do Estado, tendo em conta a guerra na Ucrânia e os compromissos internacionais, nomeadamente com a NATO, Gouveia e Melo espera apenas que Portugal seja “coerente entre o que são as suas estratégias” e os recursos atribuídos para as cumprir.

“Se o Estado português definir estratégias muito ambiciosas e depois não atribuir os recursos, claro que isso terá impacto nas próprias estratégias. Se definir estratégias adequadas aos recursos que tem, nós conseguimos cumprir”, disse.

Realçando que “o mar é a última fronteira” e “tem sido usado essencialmente como elemento de trânsito”, Gouveia e Melo acredita, no entanto, que “com as primeiras plataformas petrolíferas e outros desenvolvimentos que estão a aparecer e que a tecnologia permite” será possível ter seres humanos a viver de forma permanente no mar.

“Tenho a certeza absoluta que neste século vamos ter colónias de mar, seres humanos a viver permanentemente no mar, cidades no mar, o que vai mudar a geografia humana, o que vai mudar as relações humanas”, sustentou.

Neste contexto, “Portugal sendo um pequeno país no sudoeste do continente europeu, afastado dos principais centros económicos e industriais, numa Europa que se está a estender a leste, tem que olhar para o seu enquadramento estratégico e perceber qual é o seu papel no mundo e como pode prosperar nesse enquadramento geográfico e histórico”.

“Temos que nos preocupar com o Atlântico. Ligando-nos à principal potência marítima neste momento que é os Estados Unidos da América, mas também ao Brasil, países de expressão portuguesa em África, mas essencialmente ligando a uma economia baseada no mar”, disse.

Interrogado sobre se a Armada tem meios para conseguir cumprir os seus compromissos internacionais com a Aliança no contexto atual, Gouveia e Melo respondeu que a Marinha nunca falhou “o cardápio de necessidades da NATO” e está “a fazer tudo para não falhar eventuais necessidades mais urgentes ou mais prementes no futuro”.

“Claro que nada é perfeito, os recursos são sempre escassos (…) a nossa obrigação é com os recursos que temos, ser o mais eficientes possível”, disse.

Gouveia e Melo recusa Marinha “fechada e autofágica”

O chefe do Estado-Maior da Armada recusa uma Marinha “fechada e autofágica” realçando o seu papel como “catalisadora da economia” e destacando que na nova Lei de Programação Militar 70% do investimento do ramo terá aplicação na indústria nacional.

“A minha visão é precisamente não ter uma Marinha fechada e autofágica, que se preocupa com as suas coisinhas pequenas. Mas uma Marinha aberta, aberta à sociedade de forma a que seja um catalisador de diferentes fatores dessa própria sociedade”, afirmou o almirante Gouveia e Melo.

O almirante adiantou que na nova Lei de Programação Militar – cuja revisão teve início este ano – “todo o investimento dos próximos 20 anos da Marinha, cerca de 70% é para aplicação na indústria nacional”.

“Somos o ramo, de longe, que está mais virado para a indústria nacional, ou seja, nós queremos puxar pela nossa indústria nacional disponibilizando 70% de todo o investimento que vamos fazer nessa indústria, coisa que não acontecia no passado, era o inverso: apostávamos 20 ou 30% na indústria nacional e íamos adquirir 80 a 70% na indústria internacional”, apontou.

Na opinião de Gouveia e Melo, “a Marinha não é só um ramo das Forças Armadas, face à importância que o mar tem para a economia, é também um catalisador da economia e um catalisador da cultura marítima”.

Questionado sobre que expectativas tem quanto aos resultados práticos da Conferência da ONU sobre os oceanos - que trará a Lisboa chefes de Estado e delegações de vários países, incluindo da Rússia - Gouveia e Melo reconheceu que muitas vezes este tipo de reuniões gera muita atenção mediática mas depois “há quase um esvaziamento”, no entanto, acredita que “pode ser uma oportunidade para começar a fazer coisas de forma concreta”.

“É relevante que esta reunião se realize em Portugal, porque mostra que Portugal é um país virado para os oceanos e, portanto, uma potência marítima, a história de Portugal assim o indica”, sublinhou.

Na opinião do chefe militar da Armada “o mar é neste momento na retórica nacional um assunto que está em cima da mesa” mas há que “passar das palavras aos atos”.

“Um exemplo muito concreto é que está a ser criada uma Zona Livre Tecnológica em Tróia [Setúbal] sediada numa base da Marinha em que se vão fazer a partir dessa base todo o tipo de experiências relacionadas com o mar, quer sejam civis, quer sejam militares, usando tecnologias de duplo uso”, salientou.

Gouveia e Melo adiantou que esse centro já é “um acelerador tecnológico e experimental da própria NATO”, o que vai “atrair indústria, a academia, e é o primeiro passo, muito concreto, em que a Marinha, mais uma vez, de forma holística está a servir como um catalisador”.

“Nós virámo-nos de costas para o mar desde que entrámos para a Europa e temos que perceber que o nosso valor na Europa cresce quanto mais nós nos viramos para o mar e não quanto mais de costas estamos para o mar, porque senão somos uma província de um país maior ou de uma unidade maior e não temos nenhuma independência”, vincou.

Outro dos investimentos que será levado a cabo pela Marinha e pelo Governo através das verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é uma plataforma naval cuja despesa - 94,5 milhões de euros - foi autorizada pelo executivo em maio.

“É um porta ‘drones’ de superfície e de ‘drones’ de subsuperfície, ou seja, debaixo de água. Pela primeira vez vamos ter uma plataforma que atua em todos os domínios. Também tem capacidade para proporcionar o desembarque e o auxílio a populações em terra”, especificou.

Consoante a função a desempenhar, podem ser colocadas nesta plataforma equipas especializadas para determinados períodos de tempo em missões específicas.

“Pode ser operada por 60 a 80 homens no máximo mas depois pode ir até 300 ou 400 homens embarcando, por exemplo, equipas de resgate, indo buscar pessoas ou equipas multidisciplinares de cientistas. Imagine o que é, eu quero mapear o fundo do mar e meto um navio grande, que é esta plataforma, a fazer fileiras para trás e para a frente, curtas, com uma data de gente para tentar mapear o mar durante meses seguidos. Se calhar é mais fácil a plataforma ir a um determinado sítio e largar 20 ‘drones’ que fazem essa fileiras 20 vezes mais rápido”, acrescentou.

Para além disto, realçou, “é um navio que pela sua tecnologia vai exigir e obrigar a que o tecido nacional encontre soluções da fileira tecnológica que mais tarde permitirão à indústria portuguesa e academia estar em projetos de elevado valor no mar”.

A Conferência das Nações Unidas sobre os oceanos vai realizar-se em Lisboa, com o apoio dos governos de Portugal e do Quénia, e contará com a presença de chefes de Estado e de governo de todos os continentes.

* Texto de Ana Raquel Lopes e fotografia de Mário Cruz/LUSA