Dizem que na ilha do Corvo um dia tem quatro estações. Ao almoço, a chuva, o vento e o cinzento faziam o inverno. A tarde é húmida e quente, o cinzento ficava; desaparecia a chuva, acalmava o vento, caía um nevoeiro que ia daqui às Flores. Ao fim do dia, a tela ganha cor. Vão-se as nuvens e fica o sol, levanta-se o azul e o verde.
É dia 7 de junho, são seis da tarde. Não há hora de ponta, são três os carros estacionados junto à Câmara Municipal, e acaba de chegar mais um. A maioria das pessoas chega a pé ou de bicicleta. Os miúdos jogam à bola no largo, os adolescentes fazem do parque infantil sala e ficam na conversa. À frente da cozinha comunitária, juntam-se homens e mulheres. O inverno da manhã e a primavera da tarde não são tema de conversa, as pessoas estão mais do que habituadas à mudança de humor das nuvens. Fala-se do dia, mas fala-se pouco. Espera-se. O Amândio e o senhor José Maria montam cá fora uma mesa de tábuas e afiam a faca, espetam-na na mesa como quem diz, ‘deste lado está tudo pronto’.
A paisagem fica suspensa no ar como um quadro: várias linhas de pessoas, a cozinha atrás, vê-se os tachos pelas janelas abertas. No topo, o monte coroa a imagem, está verde e cheira a verde, como se o inverno ainda estivesse ali no cheiro a relva molhada do pequeno jardim atrás da câmara. Esperam por algo, mas fingem que não. Olham para o lado, riem-se. Falam.
A tela é interrompida pela marcha atrás de uma carrinha pick up Toyota que carrega 500 quilos de carne, duas cabeças de gado. A chegada do veículo foi como o tocar de um sino. Faz-se um semicírculo à volta da mesa e mete-se um dos animais em cima dela. O padre, que chegara discreto, com a coroa do Espírito Santo, símbolo da fé que os move, abençoa a carne e desfaz o parlamento perfeito que ali se formara. Cada um vai às suas posições, com a naturalidade de quem fez sempre isto. Cá fora, os homens desmancham as vacas. Lá dentro, as mulheres limpam o sebo à carne e separam-na.
Mais abaixo, do outro lado da estrada, no pavilhão desportivo da Escola Básica e Secundária Mouzinho da Silveira, está outro grupo que prepara sala onde serão servidas as sopas, o almoço, do domingo de Pentecostes, dali a dois dias.
Lá em cima, na cozinha, quem manda é Amândio Cabeceira, o cozinheiro de serviço, o homem que sabe a receita, o toque secreto. É florentino, mas já vive na ilha há 25 anos. Lembra-se da primeira vez que veio ao Corvo, tinha 12. “O meu pai trabalhava para a família Augusto, que fazia os transportes para cá [a partir das Flores], e o João Berto, o filho do senhor Augusto, disse 'se quiseres ir, eu levo-te'. O meu pai deu-me autorização e eu vim cá”, conta-nos. Nesse dia, Amândio não se afastou muito do porto, mas conta uma ilha muito diferente do que é hoje. Na descrição, só uma onomatopeia de exagero: “puf”. “Mesmo quando eu cheguei cá era diferente, porque vim para trabalhar na primeira ampliação do cais, pela Somague”, conta. Ainda pela empresa de construção civil, haveria de trabalhar naquela que é a estrada mais fundamental da vila, a que liga a vila ao caldeirão. Depois disso, foi convidado a fazer outras empreitadas fora daqui, mas já casado e com filhos não quis sair do Corvo. Fez-se pescador, mas acabaria por mudar-se para a casa da matança, profissão que ainda hoje teria ou não tivesse sido requisitado pela Câmara para ser adjunto da presidência.
A mestria com que cada pessoa trata da sua tarefa impressiona quem vem de fora. Parece que fazem aquilo todas sexta-feiras. É sexta-feira, primeiro dia da preparação das sopas, mas a sensação é de que podia ser outro dia qualquer. Que de vez em vez todos se juntam para preparar um almoço para toda a ilha.
Mas se hoje impressiona, então devíamos ali ter estado há 15 anos, diz-nos Décio. “Chegavam aqui e estava metade da população a fazer isto”, comenta. O Corvo não é diferente de outra cidade dos tempos modernos. Estrangulada entre o que era, o que se tornou e o que quer ser. A ilha vive entre o preservar das tradições e uma abertura cada vez maior ao exterior, ao turismo, diga-se de passagem. Os serviços que foram criados no centro da vila, indispensáveis a qualquer concelho, foram um assalto ao setor da agropecuária. Da vila ao monte desapareceram os campos cultivados, ficaram as vacas, são mais de mil, e os subsídios da Europa.
Aurélio Hilário tem 70 anos e lembra-se do tempo em que a ilha era outra, mergulhada na pobreza, isolada, quando “na década de 60 e 70, de dezembro a março o barco não passava, não havia comunicação com a ilha”. Outros tempos em que o Corvo tinha praticamente o dobro dos habitantes. Andou de “pé descalço” no tempo do Estado Novo.
“Tudo o que se comia era da terra, não havia dinheiro nem nada. Depois do 25 de Abril é que a coisa mudou. Mas depois veio o fluxo de emigração… Olhe, isto é uma diferença como da noite para o dia!”, conta. Hoje as coisas estão melhores, mas os campos já ninguém quer saber deles, são só as vacas “que valem o subsídio da CEE”.
De vacas percebe o senhor José Maria Fraga. Nascido no Corvo, só saiu da ilha para ir para a guerra em Angola. “26 meses e 18 dias, nunca mais me esquece. Voltei ao Corvo no dia 24 de abril de 1974 e já sabia que ia acontecer uma revolução, tinha ouvido em Angola falar no 18 de março, quando eles saíram das Caldas da Rainha”, sorri. Há dez anos que oferece uma vaca para as sopas, uma das que está a ser desmanchada é dele, uma vaca com seis anos que não conseguiu parir um vitelo e que nunca recuperou dessas mazelas.
O dia da revolução foi um dia marcante para uma ilha que sofreu muito com as guerras coloniais. “Estava tudo farto. Imagine naquele tempo, em termos de percentagem, se morriam duas pessoas daqui, em 400 pessoas, era muito homem. Sofremos muito com a guerra”, conta. É por isso que votará sempre à esquerda, diz. Pela liberdade, porque se lembra, tal como o senhor Hilário, de andar de pé descalço, de viver numa ilha fechada. “Sou PS desde 74. Sabe porquê? Eu vi quando o Mário Soares chegou de comboio a Santa Apolónia vindo de França a gritar liberdade. Eu não percebia nada de política, mas sabia de liberdade”, conta.
O primeiro dia termina com a carne que fica ali a marinar. Os foguetes assinalam o final de cada momento de preparação das sopas, e interrompem a manhã, a tarde e a noite.
Sábado é altura de se encontrarem no mesmo local de manhã cedo para ligar os fogões e começar a preparar tudo, a carne cozida e a carne assada. A primeira para compor a sopa, que por si só é caldo e massa de sovada. A segunda, o segundo prato, para vir a seguir, com a batata assada. Fica a faltar só da sobremesa, o arroz doce, que fica a cargo da mãe de Renato, o mordomo da festa.
No sábado à noite é bonita a procissão das travessas do arroz doce, dos tachos. À medida que a madrugada entra o número de pessoas diminui, ficam seis a acabar tudo e prontos para levar as primeiras três sopas assim que estas estiverem prontas. Serão entregues às primeiras pessoas que encontrarem na rua ainda antes do sol nascer, aqueles que, como o Corvo, não dormem.
Queima-se um foguete e lá vai o José, que aqui não é presidente, a Nádia, filha do Amândio, e o Décio, que é o segundo mordomo, pela vila à procura de quem esteja de pé. A primeira pessoa está logo ali, no largo do Outeiro, o senhor Pedro Lindo, a abrir o seu Ford KA vermelho, a mudar-lhe a água do radiador. A segunda entregou a Nádia ao Paulo Reis pelo segundo ano consecutivo. A terceira, foi parar à mesa de Arlindo Faria.
A história viva da ilha está aqui. Na exibição que é a preparação das Sopas do Espírito Santo, uma tradição insular antiga, presente em todas as ilhas, mas recente no Corvo, trazida em 2003 por Alfredo Rocha, corvino que, por razões profissionais, tinha ido trabalhar e viver para a ilha das Flores, ali ao lado, terra de onde dificilmente se perde o Corvo de vista.
Quando regressou à terra natal, prometeu oferecer um almoço de Sopas do Espírito Santo a toda a população da ilha fundando mais esta tradição de devoção, para além das já típicas festas que aconteciam no segundo fim de semana de julho e que celebravam, também, o regresso dos emigrantes que no século XX partiram para o continente americano.
Do Império à Igreja, cabe a devoção toda duma ilha
Cirandando no basalto escuro, uma rapariguinha de vestidinho branco vai correndo na rua do Jogo da Bola, em direção à do Outeiro. Adiante outra se lhe junta, e assim vai o par, correndo para a Casa do Espírito Santo.
“As minhas meninas vão tão lindas”, diz uma velha sentada a um canto do labirinto que são estas casas longas, metidas à beira das ruas apertadas dos becos do Corvo. Mas elas a não ouvem, concentradas que vão no caminho que levam.
Dali a pouco, chegam ao largo do Outeiro. O sino toca. Na Casa do Espírito Santo — ou do Império, como é costume chamar nas outras ilhas — vai uma correria. Os rapazes arrumam-se: cabelo penteado, faixa apertada e flor na mão. Vai tudo enfeitado e aprumado à procissão.
Às raparigas, porém, reserva-se aparato maior: brilhantes tiaras, vestais vestidos — e, às rainhas, uma longa capa escarlate, de veludo capaz de fazer cobiça à mais nobre infanta.
9 junho. É Domingo de Pentecostes. Estas raparigas que se enfeitam serão as rainhas. Rainhas convidadas pela Irmandade do Espírito Santo para “continuar a tradição da Rainha Santa Isabel”, explica o padre Artur Cunha.
“Todas estas festas começaram com a Rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIV. E começou com a caridade — dar esmolas aos pobres”, conta. “Naquele tempo, escolhia-se o pobre mais pobre de todo o reino para ser coroado — e até se sentava no trono do rei D. Dinis, era uma grande honra. Depois, dava-se uma refeição aos pobres”.
O cura não é daqui. Veio de São Jorge há seis anos. A tradição, contudo, não difere: “É semelhante em todas as ilhas. Há umas variedades — por exemplo, na confeção da sopa: alguns põem hortelã; outros põem enchidos, e assim por diante. Mas o mais importante é unânime em todas as ilhas.”
E unânime também há de ser a falta de vontade de uma criança que acordou demasiado cedo num domingo. Que importa se passaram sete semanas da Páscoa? Sono é sono. Há de estar nisto indagando o rapaz quando um grito o sobressalta: “Rodrigo, tira mão do bolso que também levas uma flor!”.
Perto, ali metido entre os bancos da Casa do Espírito Santo, um outro miúdo é recrutado: “Ah, Afonso! Afinal não tiveste escapatória!”
Vai ali fora um grande rebuliço também. O chega e vai pela porta antecipa a confusão no largo do Outeiro. Rainhas, damas, povo. Tudo ali num grande corrupio a preparar a procissão que há de descer à igreja.
“Ó mãe, o Tiago diz que vou casar com ele!”, queixa-se uma menina, vestida quase como noiva, enquanto foge de um homem. “Não vou nada”, responde esse tal Tiago, “tu és mais velha do que eu, fica mal”.
Vão assim brincando. Andreia Silva, corvina e co-coordenadora do Ecomuseu do Corvo, traz uns papéis que vai consultando para alinhar a procissão. Vai lendo em voz alta as entidades que cabem em cada posto, numa hierarquia horizontal de gente que se alinha conforme a importância que tenha o respetivo cargo.
Vêm os bombeiros, a Polícia Marítima, a GNR e a PSP, engalanados e com todas as medalhas a luzir, apesar do céu nublado. Dos bombeiros vêm cinco homens. Da GNR duas militares. Da PSP, que só tem autoridade no aeroporto, vem um homem. Da Polícia Marítima um também”.
“A nossa gente está lá fora e quer ver”, diz o padre Artur, entregando a pequena câmara fotográfica a uma das fiéis, a partir de agora responsável pela documentação dos ritos.
No entretanto disto, ouvem-se os sopros fortes e o bombo abafado ao longe. “Lucas, não te ponhas aí que a filarmónica vai ter de subir”, avisa alguém. Dali a pouco, lá aparece ela: os treze homens e a solitária mulher arribam ao largo do Outeiro. Rebentam foguetes.
As horas vão andando na manhã. O cortejo está quase em vias de ficar montado. A banda vai tocando “Homenagem Jorge Antunes”, enquanto a maestrina, vigilante, vai observando os catorze músicos que tem ao comando. Depois, dá ordem para arrancar com o “Hino do Espírito Santo”.
Até o arroz doce e a sopa vão na procissão. Do mesmo modo que o pão e o vinho são igualmente levados. Atrás das bandeiras, depois do sacerdote, segue o resto em duas filas: vai o poder local — autarquia, presidente da assembleia municipal, deputados; vão as polícias, a GNR e os bombeiros.
Depois, a banda, arrancando com o “Avé Maria” de A. Madureira, dá corpo a uma marcha de procissão, conforme se espia nas partituras empinadas nos instrumentos encardidos. Atrás, o povo. Vai também uma mão cheia de turistas, que se desencaminharam do passeio e aqui vieram cair.
A linha comprida estica-se pela vila. Quando a cabeça passa à beira da lota, ainda a cauda vai diante da câmara, na rua acima. Os passos vão lentos, e, ao chegar à frente da residência de apoio ao idoso, estacam. A banda cala-se. E uma das coroas é dada a beijar aos velhos da ilha. Arrumada a coroa, saltam dois foguetes e o compasso arranca, ao toque da caixa.
E, depois, diante da igreja de 1795, segundo a inscrição no topo da fachada, a banda cessa os barulhos e o povo entra. Abra-se a missa, celebre-se o dia.
Artur Cunha está de óculos escuros deitando ao ar as alegorias. O estilo ao sermão é culpa de um problema nos olhos, que só assim consegue suavizar. Não deixa de ser interessante a vista, na ilha onde todas as pedras são negras, também os olhos do padre ficam escuros.
“Saúdem-se na paz de Cristo — mas com um sorriso”, diz o pároco. O povo na igreja levanta-se. As crianças andam num vai e vem de cumprimentos e saudações.
Adiante na cerimónia, que a sopa está pronta e os estômagos também. A rainhas alinham-se junto ao altar. Dançando com as coroas num rito seu, o padre vai benzendo as raparigas, coroando-as.
Saltam três foguetes. A filarmónica arranca nova marcha e o compasso vai para a escola: alimentados os espíritos, alimentem-se agora os corpos.
O Espírito Santo vem duas vezes por ano
Não há nenhum outro ponto do país que celebre o Divino Espírito Santo como os Açores. Conta João Gago da Câmara, jornalista e escritor natural da ilha de São Miguel, que este culto remonta ao século XIV e “é uma das mais antigas manifestações do catolicismo popular português, achando-se que teve origem, em 1320, num convento franciscano, em Alenquer”.
A tradição viria a persistir nos Açores e a praticamente morrer no continente. As celebrações decorrem nas sete semanas a seguir ao domingo de Páscoa, culminando no Dia de Pentecostes, quando, segundo a história, o Espírito Santo desceu sobre a Virgem Maria e os Apóstolos.
Agora, a data vai sendo outra. Ou melhor: repete-se. O Espírito Santo existe no Pentecostes, mas tem uma repetição no segundo fim de semana de julho — que é para que os emigrantes (e suas remessas) possam participar nas celebrações.
O Espírito Santo que une o Corvo espera cativar outros. E na devoção dos que creem, a ilha sobe — se não para junto de Deus, pelo menos para o cimo do céu.
(Artigo corrigido às 16:19)
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