A ex-dirigente e eurodeputada socialista lamentou que o responsável máximo do largo do Rato não tenha tido “a coragem de enfrentar o caso” judicial do ex-líder do PS e antigo primeiro-ministro José Sócrates de outra forma, acrescentando que achou o arguido da Operação Marquês “muito pipi, muito galarote” no primeiro contacto.
O livro “Ana Gomes, a vida e o mundo”, da autoria do jornalista do Diário de Notícias João Pedro Henriques, tem a chancela da editora Palimpsesto.
“O António Costa é inteiramente político, da ponta dos pés à ponta do cabelo. Vive para a política, respira política e tem noção do que é o interesse público. Tem também um arreigamento ao aparelho partidário, no qual se formou e em que sempre viveu e de que precisa, porque, de facto, não se faz política e não se exerce o poder sem aparelho partidário”, analisou.
Para a diplomata o chefe do Governo “tem tremendas qualidades, é um habilíssimo negociador, mas por vezes o negociador perde-se no deleite da negociação e faz-se a negociação por negociar”.
“Não o vejo [a Costa] de maneira nenhuma como um sujeito venal e vejo-o a querer fazer o que é certo para o país e a querer defender o país, o partido e o seu próprio bom nome”, afirmou.
Ana Gomes defendeu que o PS devia ter lidado com o polémico processo de Sócrates assunto de forma mais assertiva.
“Não acho que tenha sido propriamente tolerância. Acho que [Costa] não teve a coragem de enfrentar o caso. Isso seria bom. Reforçaria o partido perante a opinião pública, mas obrigaria também a introduzir determinados procedimentos que hoje não existem. Eu não gosto nada de ver uma pessoa que eu nem conheço – dizem-me que é muito inteligente –, o Lacerda Machado, a andar por aí a fazer negócios para o Estado, porque é amigo do primeiro-ministro”, disse.
A antiga embaixadora de Portugal em Jacarta defendeu que “o PS tinha que fazer a sua autocrítica, de assumir as suas responsabilidades por se ter deixado instrumentalizar por um indivíduo que tinha esta promiscuidade, esta vulnerabilidade”.
“Achei-o muito pipi, muito galarote”, contou sobre o primeiro encontro com Sócrates, por casualidade num aeroporto, no Rio de Janeiro.
Ana Gomes reconheceu que, “nas campanhas eleitorais, o Sócrates era carismático, tinha uma estamina extraordinária e essa estamina era contagiante, mesmo nas condições mais duras”.
“Sim, dizia-se que ele era rico. Comprei essa história, ele tinha todas as características de um menino mimado em certos aspetos. Era um jovem inteligente, capaz, ambicioso – mas mimado. Eu não tinha razão nenhuma para duvidar da história de que a mãe era riquíssima [por herança da riqueza de um avô]”, afirmou.
Outra polémica, o “escândalo Casa Pia”, que atingiu os nomes do atual presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e do porta-voz do PS na altura, Paulo Pedroso (que deixou a militância, mas é agora dirigente da campanha de Ana Gomes), é descrita pela candidata presidencial como “um choque total”.
“Eu gostava do Paulo [Pedroso], sempre acreditei nele, nunca tinha visto rigorosamente nada que indiciasse aquelas sinistras acusações. Percebi que havia uma campanha organizada nos média. Comecei a fazer perguntas a amigos no sistema de Justiça e nos média e percebo que há um tipo chamado Pedro Guerra [ex-jornalista do semanário independente e assessor do então ministro da Defesa, Paulo Portas] que é o principal divulgador da informação malévola”, acusou.
Ana Gomes contou que viveu aqueles tempos “com muita dor”.
“Dor própria e de solidariedade com aqueles dois homens [Ferro e Pedroso], e suas famílias, que estavam a ser miseravelmente vilipendiados. E dor pelo PS, atacar o PS daquela maneira, na base daquelas acusações, era atacar a democracia, porque o PS é um pilar da democracia portuguesa”, afirmou.
A diplomata, sem nunca nomear um dos seus anunciados concorrentes ao Palácio de Belém, o presidente do Chega, André Ventura, aproveitou para o atacar.
“Estamos a ver um tipo, que é um vigarista e oportunista encartado, que, ao contrário de tudo o que disse e propagandeou, está no parlamento ao mesmo tempo que está numa empresa que ajuda ricos e empresas a fugir ao fisco”, criticou.
Segundo Ana Gomes, “ele [Ventura] cavalga o sentimento popular relativamente à corrupção, mas de uma forma inconsequente e perversa”.
“Quem, no fundo, ajuda e dá gás aos populistas da extrema-direita são aqueles que, estando no poder, seja no parlamento, no Governo, na Presidência da República ou nos tribunais, desvalorizam o combate à corrupção, não facultam os meios para esse combate, não promovem as ações necessárias para combater a corrupção e a impunidade de corruptos e corruptores”, concluiu.
“Até pegava em armas” contra fascismo
“Se hoje voltássemos a estar sob fascismo e ditadura, se fosse preciso, ainda faria o mesmo ou mais. E se fosse preciso hoje, para defender a democracia e a liberdade, até pegava em armas, disto não tenho dúvida nenhuma”, afirmou.
A antiga dirigente e eurodeputada do PS recordou o seu percurso político e profissional, da militância no PCTP/MRPP à carreira diplomática e ao seu papel no processo de autodeterminação de Timor-Leste, entre muitos outros assuntos.
A frequência da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, iniciada ainda no período da ditadura, juntaram-na ao fiscalista Saldanha Sanches e à procuradora Maria José Morgado, ao advogado Garcia Pereira e ao então extremista Durão Barroso, contra o regime do Estado Novo e a Guerra Colonial, pela “revolução a todo o vapor”.
“Havia alguns professores muito abertos aos estudantes anti-regime, como o Miguel Galvão Telles e o Luís Silveira, outros simpáticos mas alinhados com o regime, como Marcelo [Rebelo de Sousa]”, descreveu, apesar do “balanço positivo” que faz do mandato do atual Presidente da República.
Após o 25 de Abril, o casamento com o advogado António Monteiro Cardoso, o nascimento da filha Joana e o trabalho afastam-na do PCTP/MRPP, seguindo-se o concurso para a carreira diplomática, a assessoria ao então Presidente da República, general Ramalho Eanes, e colocações em Genebra, Tóquio, Londres, Nova Iorque e Jacarta, até se dedicar ao Parlamento Europeu, já com cartão de militante socialista, mas só em 2002.
Na década de 1980, nos bastidores do Palácio de Belém, Ana Gomes envolveu-se com diplomata António Franco e casaram na década seguinte, permanecendo juntos até à morte recente do companheiro, numa relação atribulada pelas missões do Ministério dos Negócios Estrangeiro de que ambos nunca abdicaram.
Franco foi depois chefe da Casa Civil do Presidente da República Jorge Sampaio.
Passado o demorado e trabalhoso processo da independência timorense, a então embaixadora de Portugal na Indonésia, que tinha ganho enorme projeção mediática, voltou a cruzar-se com Durão Barroso, já instalado como primeiro-ministro antes de se tornar presidente da Comissão Europeia.
O agora presidente do banco Goldman Sachs na Europa e dirigente da Aliança Global para as Vacinas convidou Ana Gomes a ingressar no PSD, mas a diplomata contou que já se tinha comprometido com o então líder socialista, Ferro Rodrigues, atual presidente da Assembleia da República.
“Um partido é um instrumento, como outro qualquer, para chegar ao poder”, terá argumentado o também presidente não-executivo do grupo financeiro Goldman-Sachs e antigo companheiro de luta no PCTP/MRPP.
A candidata presidencial disse que lhe respondeu: “ó meu caro Zé Manel [Durão Barroso], para mim não é, para mim, é ideologia, são princípios, são valores, e eu revejo-me nos do PS”.
Ao longo das 279 páginas da obra, Ana Gomes assume-se como uma ateia que respeita quem é religioso e colecionadora inveterada de porcelana chinesa.
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