No início de 2020, não se falava de outra coisa a não ser “covid-19” e a tão almejada imunidade de grupo. Porém, só havia duas formas de a atingir: através da vacinação em massa da população ou através da imunidade natural, desenvolvida por uma grande parte da população, após contacto com o vírus. Mas, à data, não havia uma vacina para ajudar, tendo sido sugerido por alguns que se deveria deixar propagar a infeção de forma natural, sem medidas de prevenção, algo que, sabemos hoje – depois de termos visto os hospitais sobrecarregados e um número diário de mortes na ordem das centenas em Portugal –, é uma péssima ideia, até porque também não se sabe qual a duração da imunidade após infeção. Foi para evitar o descontrolo da pandemia e o disparo do número de infeções que em grande parte do mundo as populações foram sujeitas a confinamentos e se viram forçadas a adotar medidas de prevenção – como o distanciamento social e o uso de máscara.

Agora, que temos vacinas eficazes, podemos atingir a imunidade de grupo de forma segura, contudo, este objetivo arrisca-se a ser impossível e há várias razões para tal. O que é certo é que mais de um ano depois do início da pandemia, continuamos a “correr” atrás de um conceito sem compreender bem o que representa.

O que é afinal a imunidade de grupo?

A imunidade de grupo para uma doença infetocontagiosa numa determinada população é atingida quando uma parte suficientemente grande dessa mesma população fica imune ou protegida contra determinada doença.

A varíola e o sarampo são exemplos de doenças graves que, atualmente, estão controladas graças aos programas de vacinação. No entanto, foram registados nos últimos anos surtos de sarampo em vários países, devido a uma baixa cobertura vacinal. O mesmo pode acontecer, agora, em relação ao novo coronavírus.

A forma mais eficaz e segura de alcançar a imunidade de grupo é a vacinação, uma vez que, como verificamos com as várias vagas que experienciámos, a infeção natural pode levar a doença grave e à morte. Por sua vez, as vacinas dão-nos imunidade contra doenças e muitas vezes permitem desenvolver um número mais elevado de anticorpos do que ao contrair a doença em si, e sem as consequências nefastas de estarmos doentes.

Quando se atinge a imunidade de grupo, a disseminação da doença é limitada porque a maioria das pessoas têm anticorpos que permitem evitar a infeção ou desenvolver a doença de forma grave. A imunidade de grupo permite assim interromper as cadeias de transmissão e reduzir a probabilidade de alguém não imune contactar com alguém infetado.

No entanto, para atingir a imunidade de grupo é necessário que haja uma taxa de vacinação muito elevada, para que a população em geral esteja protegida. Esta era a expectativa no inicio de 2020, que agora parece estar a sugerir dúvidas.

No entanto, mesmo com a ajuda da vacina, começam a surgir dúvidas sobre a possibilidade de alcançar a imunidade de grupo global a longo prazo. De acordo com a revista científica Nature, existem cinco razões que podem impossibilitar a imunidade de grupo: a incerteza sobre a capacidade de as vacinas conseguirem definitivamente e em todos os casos evitar a transmissão do vírus, a dificuldades de produção e distribuição das vacinas por todo o mundo, a resistência à vacinação, o aparecimento de novas variantes (que possam tornar as vacinas ineficazes) e a incerteza sobre a duração da imunidade de cada pessoa vacinada ou que já teve a infeção de forma natural.

Segundo a revista, à medida que mais pessoas são vacinadas, aumentam as interações e isso muda a equação da imunidade de grupo, que depende em parte de quantas pessoas estão expostas ao vírus. No entanto, se estivermos vacinados, estaremos em grande medida “a salvo”, mesmo que a doença se manifeste.

No início do processo de vacinação, em janeiro, as autoridades de saúde portuguesas estimaram que o valor de 70% da vacinação para atingir a imunidade de grupo seria alcançado no final do verão, mas mais, recentemente, com a aceleração do processo de vacinação foi anunciado que a "meta" deveria ser atingida no início do verão. Este não se trata apenas de uma referência nacional, pois a meta oficial da Comissão Europeia é também a imunização 70% dos adultos europeus até ao final do verão.

Os 70% não são um valor fixo e podem ser alterados

Em declarações ao SAPO24, Luís Graça, imunologista, investigador do Instituto de Medicina Molecular (iMM) e membro da Comissão Técnica de Vacinação, confirma que há possibilidade de não se chegar a atingir a imunidade de grupo, mas alerta ainda para outro problema, que passa pela definição de imunidade de grupo: “A ideia de que é preciso 70% das pessoas vacinadas para atingir a imunidade de grupo é apenas uma aproximação, que não é baseada numa certeza absoluta”.

“Esses 70% são uma projeção que tem em consideração a taxa de transmissibilidade deste vírus, mas sabe-se que a imunidade do grupo depende de vários fatores que podem fazer com que essa percentagem varie, podendo ser necessária uma maior percentagem de pessoas vacinados ou não”, explica, reiterando a preocupação da comunidade científica com o facto de “a comunicação social se ter agarrado a uma percentagem fixa, quando há poucos dados para sustentar que a imunidade de grupo se atinge com uma percentagem exata da população vacinada”, algo que considera “preocupante, porque cria expectativas”.

“Acho que há uma perceção de que existe um número crítico e as pessoas acham que nos 69% toda a gente tem de andar de máscaras e toda a gente tem de ter cuidados – porque se nos desleixarmos o vírus vai outra vez explodir e ficamos numa situação como a que vivemos em janeiro -, mas que se atingirmos mais 1% e passarmos para os 70% podemos abandonar tudo [uso de máscara e distanciamento social], porque sem fazermos mais nada o vírus vai desaparecer e vamos deixar de ter infeções e isso não é assim”, alerta o imunologista.

O valor associado à imunidade de grupo está sempre relacionado com o índice de transmissibilidade de uma doença, também conhecido como Rt, que representa o número médio de pessoas a que um indivíduo infetado pode transmitir a doença num determinado momento. Num grupo de pessoas em que ninguém é imune à doença, um infetado pode transmitir a doença a todos aqueles com quem tem contacto. Mas à medida que mais pessoas na comunidade se tornam imunes, através da vacinação, cada pessoa infetada tem menos probabilidade de transmitir o vírus a outras. Quando chegamos a um ponto em que o Rt é inferior a 1, e a doença começa a extinguir-se.

O que representam os 70% de cobertura vacinal?

É verdade que várias vezes nos tem sido apresentada a ideia de que os “70%” são uma meta a atingir para alcançarmos a tal imunidade de grupo e recuperarmos alguma normalidade no dia-a-dia, mas, como tem sido verificado, com o novo coronavírus as coisas podem não ser assim tão lineares e este número pode ser mesmo apenas uma meta.

“É importante termos metas, tal como foi importante termos a meta dos 80% das pessoas com mais de 80 anos vacinadas numa determinada data para haver objetivos e estratégias para cumprir esses objetivos. Agora, essas metas devem ser para conseguirmos melhorar o estado das coisas, não para fazer com que o vírus desapareça”, destaca Luís Graça, explicando que os 70% são uma “extrapolação com base no conhecimento de outras infeções virais e de outras estratégias de vacinação" e que esta percentagem pode ser revista, de acordo com as incertezas sobre a doença.

Até porque para atingir a imunidade de grupo a vacinação também teria de ser homogénea, por forma a evitar áreas com uma elevada concentração de pessoas vacinadas e outras com pouca cobertura vacinal, tal como ocorre agora nas faixas etárias mais jovens. Ou seja, para evitar surtos seria necessária uma elevada cobertura vacinal em todas as comunidades, em todos os locais, em todos os grupos de pessoas e em todas as faixas etárias.

Se existirem pequenas comunidades que não estão vacinadas, estas podem continuar a adoecer e a transmitir a doença, mesmo depois de ser alcançada a tal “meta”. Além disso, países como o Brasil e a Índia não têm conseguido controlar a pandemia e o número de casos a nível global também continua a aumentar. Os países mais desenvolvidos também açambarcaram doses de vacinas, o que é uma abordagem terrível a uma pandemia, uma vez que o aumento do número de casos em qualquer lugar no mundo aumenta as hipóteses de surgirem ainda mais variantes, que podem ter impacto na eficácia da vacinação e colocar em causa as estratégias de imunização.

Por isso, apesar de estarmos focados nesta meta, é preciso não esquecer que o vírus vai continuar a circular e que podemos nunca chegar a estar livres do mesmo, não podendo esperar logo abandonar os comportamentos ou das medidas de prevenção.

Para Luís Graça, “mais do que tentarmos ter uma meta para chegar à imunidade de grupo numa data definida, o objetivo é ter a população mais vulnerável protegida o mais depressa possível”, para que posteriormente seja possível continuar a “proteção da população” para “ir controlando a transmissão do vírus”.

E se nunca atingirmos a imunidade de grupo?

Um outro artigo publicado na revista Nature refere a possibilidade de um futuro mais perto da normalidade sem atingirmos a imunidade de grupo.

“É possível que seja muito difícil atingir a imunidade de grupo, mas isso também não é uma calamidade porque a partir do momento em que temos uma grande população vacinada, mesmo não atingindo a imunidade de grupo, nós conseguimos retomar uma vida normal”, explica Luís Graça, acrescentando que “há muitas infeções que estão controladas na população sem que se tenha atingido a imunidade de grupo”.

Desta forma, podemos olhar para as vacinas como um poderoso aliado para dar resposta à pandemia, contribuindo assim para que, mesmo que continue a haver infeções, estas tenham consequências menos graves a curto e longo prazo. Por isso, mesmo sem imunidade de grupo, é possível ambicionar um futuro mais tranquilo, mais perto da normalidade, ainda que o novo coronavírus continue a circular. Até porque mesmo que fosse possível vacinar todas as pessoas acima dos 16 anos, o vírus não seria eliminado sem a vacinação de crianças, pelo menos, por agora.

“Não conseguindo chegar a imunidade de grupo, será possível ter a população mais vulnerável protegida e conseguir ir mantendo o funcionamento da sociedade, sem necessidade de medidas restritivas, com uma baixa taxa de transmissão em pessoas que são muito pouco suscetíveis a doenças graves, como por exemplo a população mais jovem e as crianças, que podem dessa forma e ir ganhando imunidade e, progressivamente, contribuindo para que passe a ser uma infeção endémica”, afirma o imunologista.

Quando o vírus se torna endémico, justifica Luís Graça, “há uma adaptação do vírus à população humana e da população humana ao vírus”. “É o que acontece com outros coronavírus, que temos em circulação na sociedade e que causam constipações, mas não estão associados a uma doença grave”, apesar de, ocasionalmente, “poder haver algumas situações de doença grave associadas a esses vírus endémicos”.

No entanto, este é um processo que pode levar anos, vários investigadores estimam que o vírus possa tornar-se endémico entre cinco ou dez anos.

Pode ser bastante provável que este vírus nunca seja erradicado e, nesse caso, teremos de aprender a viver com ele. Atualmente, podemos ver dois países, Israel e os Estados Unidos, que são exemplos de um ligeiro regresso à normalidade, mesmo sem imunidade de grupo.

“Israel está a voltar a uma vida mais normal em que as pessoas deixaram de utilizar máscaras, começaram a frequentar restaurantes sem as mesmas preocupações que ainda existem no nosso país - e bem! Isto não é uma consequência de terem chegado à imunidade de grupo, é uma consequência de conseguirem proteger as pessoas mais vulneráveis e de diminuir a transmissão pelo número de pessoas vacinadas e esse é que é o verdadeiro desafio”.

O expectável é que as medidas de prevenção, como a utilização de máscara e o distanciamento social, vão sendo ajustadas progressivamente, à medida que a população vai sendo vacinada.

E segundo o membro da comissão técnica de vacinação, no caso de Israel estas medidas começaram “a ser implementadas com pouco mais de 50% da população vacinada”, algo que considera que poderá estar para breve para a Europa.

“Acredito que em Portugal e nos países da Europa, à medida que o processo de vacinação vai avançando – e agora vai avançar muito depressa – será possível nós rapidamente chegarmos a situação”, refere Luís Graça.

Com o ritmo de vacinação contra a covid-19 a aumentar na Europa, começam a surgir sinais de esperança para os próximos meses. Foi nesse sentido que o o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (​ECDC) atualizou há semanas recomendações orientadoras para o controlo da pandemia, admitindo até, em alguns casos, o relaxamento nas medidas de distanciamento e no uso de máscara entre pessoas que já foram vacinadas.

Há, porém, sempre o risco de anunciarmos este tipo de medidas antes de estarem reunidas as condições favoráveis para este cenário, e, nesse caso, "o risco é sempre haver um número muito maior de infeções e termos que recuar novamente um passo para tentar voltar a colocar a transmissão sob controlo", conclui.

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