Por acórdão de 09 de novembro, a que a Lusa teve hoje acesso, aquele tribunal sublinha que, de acordo com a Constituição, “a criação de tipos de ilícitos criminais é matéria da reserva relativa da Assembleia da República (AR)”.
“Não há dúvida de que a criação de novos crimes compete à AR em primeira linha, podendo também competir ao Governo, mas apenas com autorização da AR”, acrescenta.
Conclui, assim, que “o Governo não se mostrava habilitado a definir matéria criminal”, pelo que a norma do decreto que define como crime a violação do confinamento obrigatório “está ferida de inconstitucionalidade orgânica” e “é inválida”.
Em causa está o decreto de 20 de março do Conselho de Ministros, que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Presidente da República.
No decreto, o Governo determina que ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio, os doentes com covid-19 e os infetados com SARS-Cov-2, e os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.
Diz ainda que “a violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência”.
No Tribunal de Chaves (Vila Real), um homem foi condenado, com base daquele decreto, a 120 dias de multa, a taxa diária de 15 euros, por um crime de desobediência, por ter violado o isolamento profilático que tinha sido determinado pela autoridade local de saúde.
O arguido recorreu para a Relação de Guimarães, que agora o absolveu, considerando que aquele decreto, na sua génese e no que respeita ao crime de desobediência, “não respeita a Constituição, por violar a reserva relativa de competência da Assembleia da República”.
A Relação sublinha que a preocupação em conter a propagação do vírus não pode fazer esquecer “o respeito devido pelos fundamentos democráticos da sociedade", porque “a democracia não poderá ser suspensa”.
Diz ainda que a criação de um novo tipo de crime “vai, obviamente, muito para além da competência administrativa invocada para a regulamentação do estado de emergência”.
O tribunal vinca que, olhando o teor da resolução da Assembleia da República de 18 de março que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência, “não se retira dela que contenha uma autorização para que o Governo pudesse criar um novo tipo de crime”.
“Não basta estatuir que ficam parcialmente suspensos alguns direitos, nomeadamente o direito de deslocação, para daí retirar sem mais a aceitação de que a suspensão de direitos implica automaticamente a criminalização das condutas”, lê-se no acórdão.
Comentários