Ao fim de mais de 50 minutos de atraso, Fernando Medina apresentou-se no salão dos Paços do Conselho dizendo que "a Câmara de Lisboa valoriza a gravidade daquilo que se sucedeu", considerando que o autarquia não o "diminuiu" ou "escondeu" e reiterando que "o direito à manifestação deve ser consagrado a todos". "Para a Câmara é absolutamente central a afirmação da cidade como espaço de tolerância e de democracia", frisou.
A auditoria foi anunciada depois de notícias que deram conta que a Câmara Municipal de Lisboa fez chegar às autoridades russas os nomes, moradas e contactos de três ativistas russos que organizaram em janeiro um protesto, em frente à embaixada russa em Lisboa, pela libertação de Alexey Navalny, opositor do Governo russo.
Enumerando as conclusões da auditoria, o autarca revelou que, após um levantamento das manifestações comunicadas ao município de Lisboa, foram contabilizadas 7045 manifestações entre 2012 — ano em que a competência de receção dos avisos de manifestação passou para a autarquia — e 2021, saldando-se numa média de 3 a 4 manifestações por dia.
Destas, 180 foram comunicadas a embaixadas, sendo que 122 ocorreram antes da entrada em vigor do Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia, implementado em maio de 2018. As outras 58 ocorreram depois, sendo que em 52 dos casos foram "enviados dados pessoais”. Estes resultados serão enviados à Comissão Nacional de Proteção de Dados e ao Ministério Público.
O critério aplicado para o envio de dados pessoais, segundo Medina, foi o da Comissão Nacional de Proteção de Dados, "segundo a qual a identificação do nome na qualidade do representante de uma organização também é um dado pessoal que exige proteção".
Sobre o número de processos em que foram enviados dados pessoais a embaixadas entre 2012 e 2018, Medina afirmou que esses dados ainda não foram tratados, advogando que esta auditoria preliminar foi feita “num tempo recorde de uma semana” que “mostra bem a importância” atribuída pela câmara ao assunto.
Um dos problemas identificados, referiu o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, prende-se com a aplicação do RGPD. Apesar do município ter, nas palavras do autarca, levado a cabo "um esforço substancial de adaptação das suas práticas de tratamento de dados a esse regulamento” — tendo até criado uma equipa especificamente “para acompanhar a implementação deste processo” — “o procedimento de tramitação de avisos de manifestação não sofreu alterações”.
Por outras palavras, apesar da Câmara se ter comprometido a implementar as normas do RGPD, não o fez quanto aos avisos de manifestação, sendo que o procedimento adotado pelos serviços camarários manteve-se "inalterado no essencial até abril de 2021”, até ser mudado na sequência da queixa apresentada pelos ativistas russos a 18 de março deste ano. Foi, por isso mesmo, que não se registou "a receção de dados pessoais por parte de embaixadas a partir de maio".
No entanto, Medina sublinhou também haver “documentação em suporte papel” da recolha de dados pessoais em "2012 e nos anos seguintes", ou seja, quando era António Costa o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Quanto ao legado de António Costa, Medina referiu também que o ex-presidente da Câmara determinou, através de um despacho datado de 13 de abril de 2013, que “sempre que fosse comunicado ao município a realização de manifestações, deveriam os promotores ser informados de imediato que a CML se limitava a receber a comunicação” e reencaminhá-la para o MAI e a PSP.
Entre outras consequências da "reformulação dos protocolos de procedimento", estava prevista a "supressão do conjunto de informações e comunicações, mormente a embaixadas”, devendo a informação única e exclusivamente direcionada para o MAI e a PSP. No entanto, "a prática que se seguiu a este despacho, em 2013, contemplou apenas uma alteração das minutas que eram utilizadas com as várias entidades, tendo-se mantido inalterado o elenco de entidades às quais os avisos de manifestação eram comunicados".
Esse despacho foi alvo de “reiterados incumprimentos” ao longo dos anos, ou seja, ocorreu “uma prática relativamente homogénea, mesmo quando houve instrução do presidente da câmara para alteração desse procedimento”.
As razões para não ter havido alterações não foram passíveis de identificação "no âmbito desta auditoria”, disse Medina, —confirmando-se a notícia hoje adiantada quanto à diretiva de Costa não ter sido respeitada — mas o autarca acredita que “tem a ver com uma transferência de competências que foi feita de forma insatisfatória com uma lei que precisa de adaptação e de clarificação muito precisa”.
“Esta pratica manteve-se em vigor de forma relativamente uniforme e foi aplicada aos vários pedidos de manifestação”, sendo que, em alguns casos, “a comunicação relativa à existência de uma manifestação foi não só remetida às embaixadas junto às quais se iria realizar a manifestação, mas também — essencialmente a partir de 2018 — àquelas relacionadas com o objeto da mesma”.
Na sua comunicação, Medina começou por referir que o problema começou com a extinção dos Governos Civis — ditada pela lei orgânica 1/2011 de 30 de novembro de 2011 —, o que significou que "o município de Lisboa passou a dispor das competências de receção dos avisos de manifestação" previstos na lei das manifestações de 1974.
O processo, feito em articulação com o Governo Civil e a PSP, manteve a prática já seguida anteriormente pelos Governos Civis de prestar "informação às embaixadas junto às quais as manifestações iriam ocorrer", referiu Medina.
Essa partilha de informação, segundo o autarca, foi abordada por um "protocolo para o tratamento dos avisos de manifestações" elaborado em 2012, no qual se identificava "a necessidade do município de, na sequência do recebimento do aviso, comunicar às embaixadas a ocorrência de manifestação".
"O protocolo em questão não é claro em relação ao teor do que deveria ser comunicado às embaixadas, embora tenha sido interpretado pelos serviços no sentido de que seriam os avisos propriamente ditos na integra que deviam ser remetidos", adiantou Medina.
O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa aproveitou também para contradizer António Galamba, o último Governador Civil, que disse à Agência Lusa que era "impensável” a inclusão de dados sobre os promotores dos protestos na informação transmitida a diversas entidades, nomeadamente embaixadas.
Segundo Medina, a documentação revelada pela auditoria demonstra que o Governo Civil enviou dados pessoais de ativistas para embaixadas. Quando as manifestações eram feitas a título individual, "o nome do promotor era divulgado", disse o autarca, tendo noutros casos ocorrido a prática de fazer cópias integrais do aviso da manifestação e enviá-las por fax às embaixadas. "Se havia dados pessoais nos avisos, eram comunicados às embaixadas".
Em 2019, numa resposta ao Comité de Solidariedade da Palestina, a assessora de imprensa do município referia que a Câmara reencaminhava as comunicações de manifestação às forças de segurança, ao Ministério da Administração Interna e também às embaixadas “sempre que um país é visado pelo tema”.
Questionado sobre como é que a autarquia não identificou o problema nessa altura, o chefe do executivo municipal respondeu que a resposta “refere-se à comunicação a embaixadas e não estava patente nem nenhuma assunção de qualquer violação ou consciência de violação do regime de dados pessoais”.
Ainda assim, reconheceu que “mesmo não havendo dados pessoais já há incumprimento da diretiva de 2013”.
Ativistas podem receber proteção policial, Polícia Municipal passará a ter competência sobre manifestações
Apresentando as medidas que a Câmara Municipal de Lisboa irá implementar no rescaldo deste caso e após as conclusões da auditoria, Fernando Medina começou por sublinhar que, mesmo que em muitos casos de partilha de dados não tenham resultado em "problemas críticos", esta foi "uma prática inadequada, que não devia ter acontecido e que levou a sentimento de insegurança de pessoas que já se exprimiram nesse sentido”.
No entanto, Medina disse também que este é um problema não de responsabilidade política, mas sim administrativa, já que "nenhum destes procedimentos implicava qualquer avaliação ou decisão de qualquer responsável , diretor, chefe de divisão, diretor de departamento, menos ainda vereador ou presidente da Câmara”. Não querendo "desvalorizar a importância" do caso e frisando que os procedimentos devem ser feitos “dentro do estrito respeito da legalidade e da segurança dos cidadãos”, o autarca reforçou que este é um "ato administrativo".
A Câmara vai assim implementar cinco medidas distintas quanto à receção de avisos de manifestação e quanto aos problemas já criados com a partilha feita às embaixadas:
- O município vai seguir a proposta da Amnistia Internacional, tendo Medina solicitado à Secretária-geral do Sistema de Segurança Interna “uma avaliação de segurança, assim pretendam todos os cidadãos com dados enviados a embaixadas estrangeiras” pelo município. A CML vai contactar diretamente esses cidadãos e vai prestar apoio;
- As competências sobre manifestações “serão delegadas à Polícia Municipal”, que “limitará a partilha de informação relativa aos promotores individuais de qualquer manifestação, e não só as realizadas junto a embaixadas e as relativas a países estrangeiros, única e exclusivamente à PSP e ao Ministério da Administração Interna”;
- O Gabinete de Apoio à Presidência — responsável pelos envios dos e-mails para as embaixadas — “será extinto, passando as suas competências restantes para uma nova divisão municipal” denominada “divisão de expediente”;
- Vai ser proposta “a exoneração do encarregado de proteção de dados e coordenador da unidade de projeto para a implementação do RGPD”;
- Será promovida “uma análise externa da robustez do sistema de proteção de dados da CML”.
A “CML contactará individualmente com cada cidadão, prestando o apoio necessário à realização desta avaliação, restabelecendo a confiança de todos na efetivação em segurança dos mais amplos direitos assegurados pela Constituição”, acrescentou ainda.
O presidente do município reforçou, porém, que “neste momento as medidas são estas” e que até agora “não se detetaram a existência de indícios de dolo” que motivassem a exoneração dos restantes funcionários do gabinete de apoio à presidência, um serviço administrativo.
“Com o avançar da auditoria não excluo que venhamos a tomar outras medidas”, admitiu ainda.
“Não acorri para um conjunto vasto de demissões, mas é verdade que, além da restruturação do serviço responsável por esta tramitação, que vai perder esta competência, (…) entendo que há um problema de confiança sobre a forma como o município de Lisboa tratou os dados pessoais que tem de ser encarado de frente”, acrescentou.
Sobre o impacto deste caso na sua eventual recandidatura à Câmara de Lisboa nas autárquicas do próximo outono, Medina defendeu que “este não é o momento para falar sobre recandidaturas”, mas considerou que, a quatro meses das eleições, um pedido de demissão seguido de uma recandidatura seria “um número impróprio da confiança que os cidadãos precisam”.
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