“Quando visitei o museu e estudei o astrolábio de perto, notei que não só estava coberto de inscrições árabes belamente gravadas, como também conseguia ver inscrições ténues em hebraico. Eu só conseguia distingui-las sob a luz forte que entrava por uma janela. Achei que poderia estar a sonhar, mas continuei a ver cada vez mais. Foi muito emocionante”, recorda a historiadora da Universidade de Cambridge, Federica Gigante, no artigo de apresentação da sua descoberta, publicado na segunda-feira, 4 de março, no site da instituição.
Não era um sonho, era mesmo verdade. Especialista em astrolábios islâmicos, a investigadora verificou que um lado da placa estava inscrito em árabe “para a latitude de Córdoba, 38° 30’”, enquanto o outro lado “para a latitude de Toledo, 40°, o que leva a crer que possa ter sido feito em Toledo, numa época em que aquela cidade espanhola era um próspero centro de coexistência e intercâmbio cultural entre muçulmanos, judeus e cristãos. Uma segunda placa adicionada estava inscrita para latitudes típicas do norte da África, sugerindo que, em algum momento da vida do objeto, talvez este tenha sido usado em Marrocos ou no Egito. E inscrições hebraicas foram adicionadas ao astrolábio por mais que uma mão. Um conjunto de acréscimos foi esculpido de maneira profunda e organizada, enquanto um conjunto diferente de traduções surge muito ao de leve, irregular, e mostra uma mão insegura.
“Essas adições e traduções em hebraico sugerem que em determinado momento o objeto deixou a Espanha ou o Norte da África e circulou entre a comunidade da diáspora judaica em Itália, onde o árabe não era compreendido e o hebraico era usado em seu lugar”, explica Federica Gigante.
O astrolábio apresenta ainda correções inscritas em algarismos ocidentais, os mesmos que usamos hoje na língua portuguesa. E todos os lados das placas do astrolábio apresentam marcas levemente riscadas em algarismos ocidentais, traduzindo e corrigindo os valores de latitude, alguns até várias vezes. Federica Gigante considera “altamente provável” que estas adições tenham sido feitas já em Verona por um falante de latim ou italiano.
A rete (ou aranha) que integra o astrolábio – um disco perfurado que representa um mapa do céu – é uma das primeiras conhecidas feitas em Espanha, apresentando semelhanças com as dos primeiros astrolábios europeus, feitos naquele país segundo o modelo dos islâmicos. Analisando a posição das estrelas na rete, é possível concluir que elas foram colocadas nos locais que teriam no final do século XI.
Pode dizer-se que os astrolábios “foram o primeiro smartphone do mundo”, refere o artigo. Eram como computadores portáteis que poderiam ter centenas de usos: forneciam um modelo bidimensional do universo que cabia na mão do utilizador, permitiam calcular tempo, distâncias, traçar a posição das estrelas… e até prever o futuro, através do horóscopo.
Acredita-se que este astrolábio em concreto tenha feito parte da coleção do nobre veronês Ludovico Moscardo (1611-1681) antes de passar por via do casamento para a família Miniscalchi. Em 1990, a família criou a Fondazione Museo Miniscalchi-Erizzo para preservar as suas coleções, local onde, passados mais de 30 anos, Federica Gigante descobriu o seu inestimável valor.
“Este não é apenas um objeto incrivelmente raro. É um registo poderoso de intercâmbio científico entre árabes, judeus e cristãos ao longo de centenas de anos”, conclui.
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