E se fosse possível utilizar águas residuais tratadas para cultivar peixes e vegetais? Foi este o desafio do consórcio
europeu com 20 parceiros de oito países, que conta com duas instituições de ensino superior portuguesas: o Centro de Biotecnologia e Química Fina (CBQF) da Escola Superior de Biotecnologia (ESB) da Universidade Católica Portuguesa no Porto, e o Laboratório de Engenharia de Processos, Ambiente, Biotecnologia e Energia (LEPABE) da Universidade do Porto.

O projeto em questão chama-se AWARE (Aquaponics from WAstewater REclamation) e quer criar a primeira quinta na Europa que utiliza águas residuais num sistema aquapónico, ou seja, que combina a aquacultura com a hidroponia (cultivo de plantas fora do solo). O projeto-piloto vai ser instalado na estação de tratamento de águas residuais de Castellana Grotte, em Itália, onde os investigadores esperam observar os primeiros resultados em 2026 após cultivarem legumes como a alface e tilápia no mesmo espaço em que vivem peixes.

Em entrevista ao SAPO24, as investigadoras Célia Manaia (da Escola Superior de Biotecnologia, Universidade Católica Portuguesa) e Olga Nunes (da Faculdade de Engenharia, Universidade do Porto) sublinharam que as vantagens deste tipo de culturas "são a possibilidade de fazer recircular nutrientes, em que os detritos produzidos pelos peixes podem servir de fertilizante para a produção vegetal. De uma só vez, fertilizam-se os vegetais e limpa-se a água onde crescem os peixes".

A colaboração neste projeto, segundo as investigadoras, surgiu "em torno das potencialidades de tratar as águas residuais e dar-lhes uma nova vida". "Quando falamos em tratar águas residuais para níveis de qualidade muito elevada, falamos de remover contaminantes químicos como os produtos farmacêuticos e de higiene e muitos outros, bem como de microrganismos patogénicos ou outros potencialmente perigosos, designadamente bactérias resistentes a antibióticos. Esta não é uma tarefa fácil, sobretudo porque muitos destes contaminantes podem ser problemáticos mesmo em quantidades muito baixas".

"As equipas de investigação portuguesas (Escola Superior de Biotecnologia, Universidade Católica Portuguesa e a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto), interessadas na parte da bacteriologia, juntamente com os colegas da Universidade Rey Juan Carlos (Madrid, Espanha), interessados no tratamento avançado de águas residuais, e o coordenador do projeto, Fábio Ugolini (Innova SRL, Itália), um entusiasta da inovação, andavam a discutir este tema, e quando surgiu uma chamada no Programa Horizonte Europa onde teria cabimento, avançou-se. Nessa altura, criou-se um consórcio de 20 instituições académicas e empresas que acompanham o assunto de A a Z – desde a engenharia às ciências da nutrição ou ao marketing. Os investigadores portugueses, a par de colegas da Universidade de Vigo e de Santiago de Compostela, vão estudar os perigos microbiológicos – a sua presença nas águas e possível acumulação nos vegetais e nos peixes e ainda explorar as potencialidades do microbioma do peixe", acresceram.

Sobre o consórcio internacional dizem também que "é sempre muito estimulante trabalhar em consórcios muito abrangentes, pois há muitas vezes a necessidade de clarificar a linguagem científica, de compreender a perspetiva de outras áreas do conhecimento e a oportunidade de criar algo novo".

Já sobre a presença de investigadores nacionais, neste tipo de iniciativas internacionais, dizem que" basta encontrar a oportunidade e os parceiros certos para lançar mais uma ideia inovadora ou estudar um tema relevante". Porém, "o papel do coordenador é essencial – tem que acreditar, confiar e estar disponível para ouvir os peritos de cada área".

Quais os riscos para a saúde deste tipo de produção alimentar?

Sobre esta questão parece ainda não existir resposta, daí existir a necessidade de fazer um projeto-piloto. No entanto, as investigadoras apontam que "há sempre o risco de haver acumulação quer nos peixes, quer nos vegetais de alguns contaminantes químicos e microbiológicos. E se tal acontecer pode ter implicações na saúde pública. Claro que à partida se pode pensar que os riscos podem aumentar devido à utilização de águas residuais urbanas, e é isso que queremos avaliar e reverter. Uma parte importante deste projeto é justamente focada no tratamento da água residual a níveis de elevadíssima qualidade, o que minimizará os riscos".

Quais as vantagens da utilização de água residual em projetos de alimentação?

"Vamos aprender muito sobre o modo como a qualidade da água pode influenciar a qualidade e segurança dos produtos, como se vencem barreiras da aceitação por parte do consumidor… Haverá muito legado cientifico e tecnológico a sair deste projeto", sublinham as investigadoras.

Destacam ainda que o objetivo de projetos científicos como este é explorar soluções e mostrar oportunidades. Apesar disso, sabem que podem existir potenciais interessados ou stakeholders "que podem avaliar a pertinência de implementação em contextos específicos". No caso deste tipo de cultura, estes stakeholders podem ser de "locais com escassez de água e longe de zonas costeiras. Nessas regiões a aquaponia pode contribuir para melhorar o nível de autossuficiência alimentar e tudo o que a isso se associa".

Qual a razão de escolher Itália para testar este projeto?

Podia ter sido outro local, no entanto, um dos membros do consórcio é um reconhecido especialista em tratamento avançado de águas. Por isso, tem sistemas de tratamento de águas residuais implementados naquela zona e esse foi um fator determinante.

Resultados em 2026? Qual a razão?

De acordo com as responsáveis vão existir vários resultados antes, mas "é preciso combinar muitos resultados vindos dos diferentes grupos de investigação, iterar processos, e finalmente reunir todos os elementos estudados e desenvolvidos. É uma meta realista", referem.

Como foram ultrapassadas a dificuldade dos regulamentos europeus apenas permitirem a utilização de águas residuais na agricultura, mas não na aquacultura e na aquaponia?

Tendo em conta que este é um projeto de investigação, "poderá ser implementado desde que aprovado por Comissões de Ética", referem. No entanto, ao pensar no consumo humano no futuro, vai ser necessário olhar para as legislações regionais bastante diferentes em várias partes do mundo. Ainda assim, a "a investigação se faz-se a pensar nas condições e legislações do futuro e não apenas a olhar para o passado", dizem.