Naquela que prometia ser uma entrevista tensa, a primeira após ter sido conhecida a decisão na fase de instrução da Operação Marquês na passada sexta-feira, o ex-primeiro-ministro José Sócrates foi recebido com protestos por algumas dezenas de manifestantes à entrada dos estúdios da TVI. O ambiente tenso foi transportado para a entrevista, sendo que Sócrates começou por contrariar José Alberto Carvalho, jornalista encarregado de conduzir esta conversa, logo à primeira pergunta
Confrontado com a ideia parafraseada pelo jornalista de que "foi declarado corrupto por um juiz e por um tribunal, ainda que sem demonstração do ato concreto com que o agente público pretende mercadejar com o cargo”, Sócrates pediu logo "o mínimo de rigor" e quis corrigir José Alberto Carvalho.
Referindo-se ao ato imputado ao seu amigo Carlos Santos Silva de lhe ter transferido 1,7 milhões de euros, o ex-primeiro ministro defendeu que o juiz não o declarou corrupto. "Na fase de instrução não se declara isto ou aquilo, o que se faz é definir se há ou não indícios para levar alguém a tribunal”, começou por dizer Sócrates, adiantando que o crime que lhe tem sido apontado, o de corrupção sem ato, deixou de existir no código penal — tendo sido substituído pelo de "recebimento de vantagem indevida" — e que tal crime "não consta da acusação" até porque "ainda por cima está prescrito". "Esse crime nunca me foi apresentado em sete anos", sublinhou ainda.
Considerando tal acusação "absolutamente falsa" e "injusta" para consigo e "para o engenheiro Carlos Santos Silva", Sócrates frisou que a síntese da sentença, na sua interpretação, indicou que "ao longo dos seis anos de mandato [como primeiro-ministro], nunca houve um comportamento concreto contrário aos deveres do cargo”.
Recorde-se que Sócrates é um dos cinco arguidos da Operação Marquês — de um conjunto original de 28 — que o juiz de instrução criminal Ivo Rosa decidiu levar a julgamento, em conjunto com o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva, o ex-ministro Armando Vara, o banqueiro Ricardo Salgado, todos por crimes económicos e financeiros.
Acusado de 31 crimes, José Sócrates vai a julgamento por seis: três crimes de branqueamento de capitais e outros três de falsificação de documentos em coautoria com Carlos Santos Silva. Quanto aos restantes, o juiz Ivo Rosa considerou que não havia provas suficientes na acusação e que alguns crimes já tinham prescrito para não o levar a julgamento por corrupção passiva de titular de cargo político e fraude fiscal de elevado valor.
Assim, o ex-primeiro-ministro foi despronunciado dos crimes de corrupção passiva relacionados com o Grupo Lena e o empresário e seu alegado testa-de-ferro, Carlos Santos Silva, entre 2005 e 2011, outro entre o ex-chefe do Governo e o antigo banqueiro Ricardo Salgado envolvendo o Grupo Espírito Santo e a PT, e ainda um terceiro em coautoria com o ex-ministro Armando Vara sobre o financiamento pela Caixa Geral de Depósitos do empreendimento Vale do Lobo.
"Não nutro nenhuma simpatia ou antipatia por Ivo Rosa"
Apesar de na sexta-feira ter considerado à saída do Campus de Justiça, em Lisboa que Ivo Rosa "deitou por terra as grandes mentiras" da acusação, Sócrates disse hoje que não "não faz apreciações ou reprovações" e nem nutre "nenhuma simpatia ou antipatia" pelo juiz. "Eu apenas o considero como um juiz escolhido pelas regras da lei, o que não aconteceu com o juiz Carlos Alexandre", defendeu.
No seu entender, Sócrates não vai ser julgado por grande parte dos crimes de que estava acusado porque Ivo Rosa foi forçado a tal. O juiz teve de "deitar abaixo tudo aquilo porque não tinha outra hipótese de o fazer, porque nós provámos que tudo aquilo era mentira, que as acusações eram estapafúrdias”, disse o ex-primeiro ministro.<
Por outro lado, Sócrates defende que a acusação deliberadamente ignorou provas por si apresentadas para formular a tese de corrupção. A título de exemplo, referiu que foi acusado de ter recebido dinheiro de Ricardo Salgado enquanto era primeiro-ministro para forçar o representante do Estado a vetar a OPA da Sonae caso esta tivesse sucesso na Assembleia Geral da PT.
No entanto, Sócrates mostrou haver um despacho do secretário de Estado do Tesouro a dar instruções de abstenção ao representante do Estado, tendo esse mesmo documento sido apresentado pela sua defesa durante a instrução. De acordo com Sócrates, o documento “foi escondido pela investigação".
"As decisões que ele tomou relativamente às mentiras que disseram sobre mim e que durante sete anos passaram todos os dias nas televisões não foram mais do que ele fazer o dever dele”, atirou. Sócrates, todavia, entende que Ivo Rosa foi além do seu papel enquanto juiz de instrução ao indiciá-lo dos crimes de branqueamento de capitais, considerando o ex-primeiro-ministro que o magistrado “não tem o direito de indiciar de novos crimes que não estavam na acusação".
"Ele considerou que havia indícios para levar isto a tribunal, mas eu nunca pude apresentar provas contra esta acusação. Nunca ninguém me disse que Carlos Santos Silva me corrompeu", atirou Sócrates, lembrando também que Santos Silva nunca foi considerado "corruptor ativo", no seu entender. Considerando estar a ser acusado de crimes que já prescreveram e dos quais não se pôde defender— no que caracterizou ser "o que há de mais diabólico na Justiça" — Sócrates disse que, não obstante, vai defender-se dessas acusações.
José Sócrates observou ainda que, depois de sair do cargo de primeiro-ministro, fez “algumas coisas” a pedido de Carlos Santos Silva, apontando o exemplo da Argélia.
“Fiz para ele e para empresa Lena como fiz para outras várias empresas. Julguei que era o meu próprio dever fazê-lo. Vários empresários me pediram ajuda para contactar pessoas. Isso não me parece que possa ser considerado uma atividade que possa levantar o mínimo de suspeita. Todos os antigos primeiros-ministros fazem isso e fazem isso para a defesa do interesse das empresas portuguesas”, considerou.
Da vida em Paris às heranças familiares
Uma larga porção da entrevista foi tomada pela discussão entre Sócrates e José Alberto Carvalho quanto à sua relação com Carlos Santos Silva e quanto à origem das suas finanças pessoais para, por exemplo, ter vivido em Paris.
Quanto a este último ponto, o ex-primeiro-ministro disse que não tomou "uma vida de luxo” na capital parisiense, tendo emigrado para se afastar da vida política portuguesa, para estar com os seus filhos e para fazer um mestrado. O papel que Carlos Santos Silva terá tido neste processo foi o de auxiliá-lo, fazendo "um investimento” na sua educação. "Carlos Santos Silva decidiu ajudar-me nisso, isso diz-me respeito a mim e a ele e aconteceu apenas desde 2013", defendeu Sócrates.
No entanto, José Alberto Carvalho referiu por várias ocasiões que, no entender do juiz Ivo Rosa, os empréstimos feitos por Santos Silva datam desde dezembro de 2010, período em que Sócrates ainda era primeiro-ministro, e que, ao todo, foram feitos 127 levantamentos. As perguntas enfureceram o ex-governante, considerando-as "insultuosas" e referindo que os levantamentos foram da exclusiva responsabilidade de Santos Silva, atirando que era a ele que deviam ser colocadas tais questões.
A questão do dinheiro de Sócrates, porém, também tocou na origem da sua fortuna familiar. Confrontado com o tema do cofre da sua mãe, o ex-primeiro-ministro demonstrou incredulidade por ser confrontado com essa pergunta, dizendo ser mais relevante "o escândalo da escolha do juiz Carlos Alexandre" para o processo — que, segundo fez saber hoje o Conselho Superior de Magistratura, está sob investigação.
Sócrates, todavia, apesar do desconforto, falou da fortuna familiar, defendendo que a sua mãe recebeu três heranças nos anos 80, baseando-se nas "escrituras das partilhas" que terá encontrado na Torre do Tombo, assim como num “almanaque de 1943 com uma reportagem” sobre o seu avô, que terá enriquecido com negócios de volfrâmio e terá deixado uma herança em "títulos do tesouro". Quanto a este tema, Sócrates disse que "a devassa" da sua vida privada obrigou-o a procurar por estas provas, acusando José Alberto Carvalho de conduzir "um strip-tease".
Sócrates acusa de Medina de cometer uma “profunda canalhice” e de atuar a mando do PS
Quando confrontado com as críticas feitas na terça-feira à noite pelo presidente socialista da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, José Sócrates deu troco e ainda distribuiu responsabilidades pela direção do PS.
Medina tinha acusado Sócrates no seu espaço de comentário na TVI24 de contribuir para corroer o "funcionamento da vida democrática" por ir a julgamento por crimes alegadamente cometidos "no exercício de funções" enquanto primeiro-ministro considerando tal acontecimento "da maior gravidade e singularidade".
Em resposta, Sócrates considerou tais declarações "de uma profunda canalhice". "Eu ouvi essas declarações e ouvia-as com a devida repugnância. Mas concentremo-nos no essencial, porque o essencial não é esse personagem, o essencial é quem o manda dizer isso. Falemos, portanto, do mandante", reagiu José Sócrates, que foi secretário-geral do PS entre 2004 e 2011.
De acordo com o antigo primeiro-ministro, "o mandante" de Fernando Medina "é a liderança do PS e a sua direção". "Essas declarações dizem tudo sobre o que realmente pensa a direção do PS. Portanto, a direção do PS acha que pode e deve fazer uma condenação sem julgamento, fazer uma condenação sem defesa, esquecendo até o princípio da presunção da inocência base do direito moderno", declarou José Sócrates.
"Isto para mim é penoso, mas quero responder. O PS deveria ter vergonha por desconsiderar direitos, liberdades e garantias fundamentais. Valores que fizeram a cultura política do PS quando lutou pela liberdade em 1975", disse.
José Sócrates aproveitou ainda para dizer que o fundador do PS, antigo Presidente da República e primeiro líder dos socialistas, Mário Soares, esteve sempre ao seu lado, mesmo durante o processo Operação Marquês.
"Mesmo aí, quando expressou esse companheirismo comigo, por razões não apenas pessoais, mas entendendo que era o seu dever, mesmo aí tentaram desvalorizar essa posição. Tentaram insinuar que ele [Mário Soares] valorizava demasiado a amizade", alegou.
José Sócrates, em estilo de conclusão, disse que continua a entender que fez bem em abandonar o PS em 2018.
"Já não aguentava mais o silêncio. Grande parte desses que dizem essas coisas estão a ajustar contas com a sua própria covardia moral. Não disseram uma palavra quando fui detido no aeroporto [de Lisboa], com televisões, e com base no argumento do perigo de fuga. Hoje, isso parece ridículo, mas fui preso 11 meses sem acusação", acrescentou.
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