Sexta-feira dum ano antigo. O velho Pinhal pega numa lata e a primeira coisa que faz é aperta-la com os dedos, a ver se está opada, inchada por um qualquer fio de ar que lhe tivesse entrado por falência da cravação. Afinal, passavam décadas do fim do prazo de validade da sardinha e a aferição da segurança alimentar quer-se rigorosa.
"António, abre a lata", atira ele. O filho abre-a. Depois, avalia o conteúdo: cheira-o, coloca num prato, vê os ingredientes. "Agora prova", diz novamente ao filho. “Eu pegava num bocadinho e provava. Ele olhava para o relógio e esperava cinco minutos: se eu estivesse direito, estava boa, se me tivesse dado o beribéri já não comia!"
"A lata estando em 'stock', os ingredientes vão apurando", conta António Pinhal, antes de chegar à conclusão de que o pai teve sempre razão: afinal, a boa sardinha de lata é como o vinho do Porto: quanto mais velha, melhor.
As sardinhas nascem no mar. As sardinhas enlatadas nascem nas mãos das mulheres de Matosinhos. Assim é, na conserveira Pinhais, desde 1920, fundada pelo avô de António Pinhal, que hoje encabeça a terceira geração à frente da fábrica, que se mantém como no passado: no mesmo sítio, a trabalhar da mesma forma.
Eram mais de 50 ali em Matosinhos sul, restam duas, a Pinhais e a Portugal Norte, conta António, enquanto nos leva por entre as sardinhas e as mulheres. Vieram de Peniche esta manhã, as sardinhas. Não há, a norte do cabo Carvoeiro, sardinhas com o tamanho que chegue para encher as latas. Lá foi a frota para sul, à pesca do animal mais graúdo que estas mulheres deitam agora nas pias de pedra, onde ficam em salmoura: água com sal, enquanto o gelo em que vinham embrulhadas desaparece.
A ciência nas bacias de pedra clara, que aqui estão desde os anos 20 é consoante o tamanho do animal, explica António. Ficam ali naquela imitação de oceano uns 5, 15, 40 minutos, “para dar o gosto ao peixe”. Ao fim do tempo respetivo, sai da água salgada e vai deitar-se numas mesas de pedra também clara, onde umas mãos ágeis e munidas de armas brancas decepam os animais: fica a cabeça dum lado, o corpo doutro. A tripa sai comprida agarrada à cabeça, que também nos peixes há de ser o estômago uma extensão do cérebro.
“A mulher, manualmente, tira a cabeça e a tripa. Isto vem tudo agarrado”, mostra António. “Não há máquina”, insiste, enquanto aponta para o corte e evisceração. “Aqui já está a primeira diferença em relação à concorrência: enquanto a mulher calmamente tira a cabeça e a tripa, o que é que os outros fazem? A sardinha vai à máquina, e a máquina corta a cabeça, mas pode deixar ficar a tripa lá dentro, portanto, a sardinha não é bem limpa — a limpeza é assim, este cuidado que elas têm”, descreve.
Mas qual é o problema de ficar lá a tripa dentro? “É que depois misturado com a cozedura e misturado com o azeite dá outro paladar à sardinha”, explica.
Atrás vão centenas de dedos e costas curvadas, a engrelhar o peixe, arrumando-o para ir cozer aos fornos. “Está a ver a mão de obra que isto não tem? Uma a uma”, sublinha António. Uma a uma, cada sardinha encontra o seu lugar nas grelhas, antes de ir tomar o mergulho final, numa enorme pia redonda e trabalhada, de pedra e água escura, que a limpa por fim, libertando-as do sal, antes da descida ao estômago quente dos fornos, onde o cru morre.
Levanta-se a grelha do tanque e “vai naquele tapete e vai diretamente para aqueles carros, para cozer”, resume António. Agora, são dez minutos a cem graus. “Ao fim de dez minutos sai e arrefece. Não se pode pôr a sardinha dentro da lata quente, tem de estar fria”. “Na concorrência o peixe é cozido na lata”, atira António.
“Se me disser assim, ‘a qualidade é a mesma?’ Não! E vou-lhe dar um segredo: quando a sardinha é cozida na lata, aquela gordura e aquela humidade ficam dentro da lata, ao passo que aqui na grelha, quando acaba de cozer, a humidade e a gordura escorrem”, explica. “Quando ela vai para a lata com o azeite, fica amarelinha — e as outras ficam castanhas”, distingue.
Dali, entram no carrossel. É o único elemento contemporâneo nestas naves dos anos 1920. Um carrossel onde estão postas em linha as grelhas com as sardinhas. Repetem-se em frente ao tapete muitas cadeiras, agora vazias, separadas aos pares por uma barreira de transparente acrílico — culpa da covid-19, já se imagina.
Quando as mulheres terminarem de amanhar o peixe, mudam de posto: deixam as mesas de pedra e vêm para este engenho de moderno inox e plástico. Uma a uma, fazem a cama à sardinha, três pedaços na lata, os condimentos, o que faltar. Assim segue o comboio, até, se for caso disso, ao chuveiro de azeite, antes da cravação, que Bruxelas também quis mecanizar.
Ainda assim, só somam três máquinas: o cozedor, a cravadeira e o esterilizador. “O processo foi sempre mantido o mesmo”, capaz de produzir três centenas de caixas a cada dia.
Depois dos cortes e dos arrumos nas latas, o comboio segue para a próxima estação: e há chuva adiante, uma cascata de azeite, rivalizando com os aguaceiros que vão lavando as ruas num agosto avariado. “É impossível falhar azeite numa lata”, orgulha-se António. O azeite a mais vai para refinar. O que já não o pode ser vai para a indústria dos sabonetes.
Logo depois, entra na cavadeira, máquina nova e brilhante, ali ao lado das velhinhas de 1920, que ainda funcionam. A sardinha espreita a última luz, entra na engrenagem e o pistão aperta-lhe a tampa. Segue no tapete, correndo uma língua de rolamentos, com túneis de lavagem, até cair num carro cheio de água, que quando estiver cheio entra no longo cilindro onde as latas serão esterilizadas, matando o resto que morto deve estar.
Agora, é a vez da Luzia. Uma máquina humana de embalar latas. Faz três caixas à hora, 5 mil latas por dia. Empapelar é pegar numa folha de papel, num pedaço de plástico, e pôr os dedos a dançar, numa coreografia de precisão, dedos para cima, dedos para baixo, para que nada escorregue, com os bicos para um lado, os bicos para o outro, tudo centrado e alinhado para que os bonecos fiquem na face certa.
“Para um principiante, até nem está mal”, sentenciou a Luzia, concordou o patrão, olhando para o resultado do empapelamento feito por quem escreve estas linhas — que o jornalismo, mesmo se pandémico, opta sempre pela experiência.
Sardinha boa é a de Portugal
Não tendo afetado a disponibilidade de peixe, a pandemia obrigou a "fomentar a parceria com os fornecedores, para não falharem os ingredientes", conta Patrícia. "Nós trabalhamos com os mesmos fornecedores há muito, muito, muito tempo e, portanto, tínhamos parcerias de longo prazo que se mantiveram". "A principal restrição terá sido a logística", ainda que tenha sido possível contorná-la e levar as latas da Pinhais para os mercados que as procuravam.
Todavia, a Pinhais não produz para os supermercados, não está à espera de se enfiar entre as compras da semana. É outra coisa, uma coisa de que os turistas que visitavam Portugal gostavam. Sem eles, as lojas dos aeroportos esvaziaram-se. "As vendas em território nacional pararam completamente, tirando a loja da fábrica, as vendas no mercado nacional reduziram drasticamente. O que não aconteceu com a exportação", conta Patrícia Sousa, diretora de Marketing da Pinhais & Ca.
"Comparando abril de 2019 com abril de 2020, tínhamos aumentado em 60% as nossas vendas [para o estrangeiro]. O mercado de exportação neste momento está a absorver a quebra do mercado nacional", explica.
Porém, a firma já nota a retoma, com grupos de turistas, por exemplo, do Luxemburgo ou dos Países Baixos a visitar a fábrica. "É interessante ver que as pessoas já estão, pouco a pouco, a começar a vir. A retoma virá pelo turismo, mas sobretudo também pela loja online", que abriu em novembro do ano passado.
Os norte-americanos são os grandes consumidores das marcas da Pinhais. Compram 65% da exportação. Seguem-se os britânicos, os canadianos e os singapurianos.
Sardinha gorda é a de Peniche
2020 é um ano estranho. Ano dos fenómenos, das coisas surrais. Também no mundo das sardinhas 2020 marca história. Ditou um qualquer evento na sociedade dos peixes, que as sardinhas grandes ficassem para baixo do Cabo Carvoeiro. "Este ano estamos com uma particularidade o nosso país, que como este ano nunca vimos: o peixe grande, a sardinha grande, está de Peniche para baixo", conta. "A maior parte da frota, mesmo daqui de Matosinhos, está em Peniche."
"Este ano está a ser muito atípico: a sardinha pequenina ficou cá em cima, que é uma sardinha muito miúda, que depois não enche a lata, e estamos a ir buscar peixe a Peniche." O peixe que vem lá de baixo "está ótimo, está enorme, a sardinha está com muito boa qualidade, com uma excelente percentagem de gordura", descreve Patrícia.
A sardinha é um peixe venerado pelos portugueses, ávidos consumidores destes peixinhos prateados que amarujam os mares. Patrícia lembra que "a disponibilidade do peixe é definida pela União Europeia e é definida com base na quota de pesca de sardinha que cada país pode pescar na sua costa".
"A biomassa de sardinha começou a diminuir muitíssimo, pescávamos demasiado e, então, a União Europeia implementou esta quota — nos últimos anos temos trabalhado com base nesta limitação", diz. "Como foi feito este trabalho, a biomassa duplicou, de 2019 para 2020, a sardinha resistiu, portou-se lindamente, está a multiplicar-se e, portanto, está a correr bem", refere Patrícia.
Assim, a firma pode apenas comprar sardinha entre 1 de junho até uma data variável, que normalmente calha no final de setembro, meados de outubro. Para contornar a incerteza, a Pinhais não produz à conta, a apontar para a agenda das encomendas: "neste período, produzimos o suficiente para abastecer um ano inteiro de produção e de entrega", explica.
No defeso da sardinha, ou seja, no tempo em que não se pode pescar sardinhas, a fábrica trabalha com outros peixes, como o carapau ou a cavala. E mesmo para além da receção do peixe, há sempre coisas para fazer na fábrica: "95% da nossa produção é empapelada à mão — empapelar a lata à mão demora muito tempo".
"Se queremos que os nossos netos e os nossos bisnetos possam comer uma excelente sardinha Pinhais daqui a cem anos, é fundamental garantir a biomassa. Ela tem de se reproduzir e temos de garantir que os erros do passado, que aconteceram na década de 1990, em que se pescou demasiado, em que perdemos biomassa, não se repetem."
Sardinha fresca é a do alvor
"Quem fundou isto foi o meu avô. O meu avô e o meu tio. O meu tio era o 'gentleman', era o relações públicas. Sabia falar francês, inglês, alemão... Portanto, ia à procura de mercados. Apostaram sempre nesse processo tradicional", conta António.
"O meu pai trabalhou aqui também 70 anos e o primeiro trabalho dele foi como o meu: ir para a lota comprar peixe. Acho que a base do sucesso é a escolha da matéria prima, aliado ao processo e a esta equipa feminina, que é uma família, usando só as mãos".
António passou uma década na lota de Matosinhos a comprar peixe. A ver os barcos chegar do mar, aprendeu os segredos para distinguir o peixe da noite e o da manhã, ou o do acejo e o do alvor. "Metia as mãos no cabaz e via se a de baixo era igual à de cima. Se não fosse igual, não queria. Para ter a certeza de que ela estava viva, se a atirasse à base de madeira das carrinhas e ela saltasse, tinha sido pescada há uma hora. Se não, ficava lá, porque não prestava”.
"Há muito amor por trás de uma sardinha Pinhais”, afirma Patrícia Sousa, diretora de marketing da Pinhais & Ca. "O nosso departamento de qualidade — apesar de termos ali o laboratório, com todo o mérito do diretor que adoro —, a nossa primeira triagem da qualidade, são aquelas 80 senhoras que estão ali em baixo. Quando uma sardinha não está boa, tiram-na fora, quando estão a enlatar e a lata não ficou bem, a do lado diz 'olha! isso não está bem feito, faz outra vez'. Há um amor muito grande pelo que se faz", garante.
O trabalho é mais vagaroso, com menos fartura que noutras fábricas. Mas também não é isso que importa, aqui, ninguém está “na competição com essas empresas — nós trabalhamos para um nicho de negócio", conta Patrícia. “Acreditamos que tem de haver, até por uma questão de disponibilidade, uma conserva de sardinha a custar 89 cêntimos no supermercado, mas depois há as nossas conservas, que, por exemplo, a preço de fábrica são 2,50 euros, na loja online custam ao consumidor cerca de 4,45 euros", explica.
"A partir da Segunda Guerra Mundial, quando houve um pico da procura, havia mais de cinquenta empresas só aqui em Matosinhos Sul, em Portugal éramos 600. O que acontece é que as empresas optaram por mecanizar — e foi aí que fizemos a grande diferença", diz Patrícia. "O pai deste senhor foi fundamental", conta, apontando para António Pinhal, "porque ele optou por, enquanto toda a indústria estava a ir no caminho da mecanização, dizer não: 'não vamos por esse caminho, não nos vamos endividar', o que também foi muito importante e nos manteve a trabalhar mais tempo".
E é aí, nos anos 1940, que está "o grande ponto de separação", em que a grande indústria descola para as máquinas, ao passo que num canto de Matosinhos continuaram a ser as mãos das mulheres a enlatar o peixe.
"Dei-lhe alguns segredos que não devia dar", confessa-nos António. Mas fica aliviado: "os concorrentes também os sabem, não põem é em prática".
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