Durante um longo período, frequentar o ensino superior em Portugal era praticamente gratuito, sendo o valor da propina de 1200 escudos, o equivalente a seis euros. No entanto, o Governo liderado por Aníbal Cavaco Silva decidiu colocar um fim a este cenário no início da década de 1990, com um aumento do valor das propinas, sendo este diferente consoante o contexto socioeconómico do estudante. O aluno podia assim não pagar propinas, ter uma redução de 30% ou de 60% do valor total ou, em último caso, pagar integralmente a verba, sendo a base para a definição do escalão a declaração de IRS.
O modelo de Cavaco Silva não vingaria, pelas vulnerabilidades inerentes à própria decisão se basear na declaração de rendimentos, mas o ensino superior público nunca mais voltaria a ser gratuito. O tema passou pelas mãos de governos PS e PSD, mas o valor nunca parou de aumentar, tendo chegado mesmo a ultrapassar os mil euros, para um aluno não bolseiro. O ano letivo 2018/19, marcou uma inversão deste crescimento, com uma redução do teto máximo do valor da propina para 697 euros.
O tema voltou a debate recentemente, seja porque frequentar o ensino superior em Lisboa ou no Porto comporta para muitos associar à propina um valor de renda que não pára de aumentar, seja porque um relatório da OCDE, divulgado no final de 2022, e que ao longo deste ano será discutido e analisado pelo Governo, propõe o regresso a um modelo parecido com o proposto há 30 anos por Cavaco Silva.
O estudo foi solicitado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, que pretende rever o seu modelo de financiamento, e entre as mais de 30 sugestões, os peritos fazem referência às propinas, defendendo alterações ao modelo vigente.
Atualmente, o valor máximo das propinas para o 1.º ciclo do ensino superior está fixado em 697 euros e todos os estudantes pagam o mesmo. Em vez disso, o relatório propõe um sistema diferenciado, em que o nível de propinas é associado a critérios socioeconómicos. Nesse caso, os alunos bolseiros pagariam um valor mais baixo, enquanto os estudantes com baixos níveis de rendimento, mas não elegíveis para bolsa, pagam um nível médio, fixando-se um valor mais elevado para os restantes.
Ao SAPO24, a ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior relembra que o modelo proposto no relatório "corresponde, em traços largos, a um sistema que já existiu em Portugal no início dos anos 90 do século passado e que foi abandonado no final dessa década, após muitas criticas, quanto à sua ineficácia, complexidade e vulnerabilidade a abusos".
"Esse sistema foi substituído em 1997 por um sistema muito mais consensual e flexível, o qual foi mantido por sucessivos governos ao longo dos últimos 25 anos. A implementação de uma medida deste teor, com um relevante impacto no sistema, seja em termos burocráticos ou financeiros, só poderá ocorrer se existir evidência quanto aos benefícios sobre a sua implementação", diz Elvira Fortunato, acrescentando, no entanto, que a "área governativa da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior considera prioritário concentrar a atenção nos estudantes mais vulneráveis e na ação social do que num modelo mais complexo e menos eficaz que o atual, onde os estudantes carenciados já são apoiados integralmente pelo Estado para pagar as respetivas propinas".
Para a ministra "o atual sistema de propinas está devidamente articulado com a ação social do ensino superior de modo a garantir que esta não representa um acréscimo de custo para os estudantes carenciados".
Assim, reitera, "os estudantes carenciados já são apoiados integralmente pelo Estado para pagar as respetivas propinas [montante que lhe é transferido como uma das componentes da sua bolsa de estudo] pelo que qualquer redução adicional de propinas apenas beneficia outros estratos sociais menos carenciados", sublinha.
Como é que os partidos olham para a proposta do relatório da OCDE?
Em conversa com o SAPO24, Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, é rápida a afirmar que aquela que é a principal recomendação do relatório da OCDE sobre o modelo de financiamento do ensino superior em Portugal representa "a proposta histórica da direita".
"É a proposta que eu sempre ouvi do PSD e à direita. É uma proposta que arrasa o sentido constitucional dos serviços públicos e da educação que, constitucionalmente, são tendencialmente gratuitos e universais. Ou seja, as pessoas acedem a esses serviços em condições de igualdade, portanto aquilo que pagam no SNS ou numa universidade é uma propina de frequência, mas com base no pressuposto de que as universidades são financiadas pelo Orçamento de Estado e que são os nossos impostos que financiam o ensino superior público, da mesma maneira que são os nossos impostos que financiam a escola pública, precisamente para que os estudantes depois não sejam diferenciados, porque essa diferenciação é feita, à partida, na carga fiscal que cada um de nós paga para acedermos aos serviços públicos em condições de igualdade", explica a deputada.
Para Joana Mortágua, aquilo que a OCDE propõe vai contra esta ideia e "instala um princípio de utilizador-pagador" que levará, na sua perspetiva, "a breve trecho, à segmentação das faculdades entre faculdades de ricos e faculdades de pobres; faculdades que procuram atrair os alunos que têm maior capacidade de pagar propinas e faculdades que se submetem a receber os alunos que têm menos possibilidade de pagar propinas e que por isso têm menos capacidade financeira".
"Aquilo que tem vindo a acontecer é que as propinas ganharam peso nas instituições por falta de financiamento público. A solução para isso é mais financiamento público para as instituições de ensino superior e não mais propinas, porque isso é uma forma de pôr os estudantes a pagar o dinheiro que falta no ensino superior", conclui a deputada bloquista.
Na mesma senda, em respostas enviadas ao SAPO24, o PCP defende que a "solução não passa pela progressividade das propinas, mas pela sua eliminação".
"O ensino superior público tem de ser um investimento nacional coletivo e não um investimento individual do estudante que o frequenta, sendo a gratuitidade a única garantia de que ninguém fica excluído". Para os comunistas, a "única forma de garantir um ensino superior realmente democrático e de qualidade é através de um forte financiamento público assumido pelo orçamento do estado para acautelar as necessidades concretas de cada instituição de ensino superior público, quer em matéria de funcionamento, quer em matéria de investimento e desenvolvimento".
Já o LIVRE, remeteu a questão para o programa eleitoral, onde o partido defende o financiamento das instituições do ensino superior "de forma estável e transparente, através de financiamento público, num regime plurianual e contratualizado por objetivos". "O financiamento deve assentar numa fórmula baseada em indicadores de estrutura e de desempenho, destinada a suportar as despesas de funcionamento e infraestrutura, com dotações atribuídas por concurso, destinado a implementar projetos e estratégias locais alinhadas com o perfil institucional e com as necessidades de desenvolvimento do país e da região", pode ler-se.
O partido que na Assembleia da República é representado por Rui Tavares defende ainda a eliminação das "propinas no 1º ciclo do ensino superior e regulamentar o valor das propinas relativas ao 2º ciclo", assim como a revisão dos mecanismos de atribuição de apoios sociais diretos e indiretos aos estudantes do ensino superior, através da criação de "um Fundo de Apoio ao Estudante do Ensino Superior, financiado em parte por impostos de beneficiários do mesmo com altos rendimentos; eliminando os constrangimentos e as assimetrias das normas atuais, devendo os apoios aos estudantes ser atribuídos independentemente da situação de dívida do seu agregado familiar à segurança social ou à autoridade tributária".
Já o Partido Socialista afirmou ao SAPO24 que o relatório da OCDE é o ponto de partida para uma discussão e que "não se pronuncia antes do debate ter lugar, por forma, a também não condicionar esse mesmo debate". PAN, Chega, Iniciativa Liberal e Partido Social Democrata não responderam às questões enviadas.
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