As regras eram claras: a circulação entre concelhos estava vedada e o dever geral de recolhimento domiciliário impunha-se, de forma a tentar travar possíveis contactos na quadra festiva. No entanto, de acordo com um relatório elaborado pelo Painel PSE, de Sexta-Feira Santa a Domingo de Páscoa, apenas 54% dos portugueses permaneceram em casa — menos 27% em comparação com o mesmo período do ano passado. E, olhando para todo o período pandémico, o Domingo de Páscoa de 2020 foi mesmo aquele mais se cumpriu o confinamento: 79% dos portugueses mantiveram-se em casa, num rigor pascal que já não se verificou em 2021.

No passado sábado, o confinamento foi de 49,2%, de acordo com a análise do PSE. Se este valor for comparado com os quatro sábados anteriores — também eles com restrições de circulação —, o valor médio do confinamento foi de 51,8%. Já no Domingo de Páscoa, a percentagem ficou nos 56,5% — nos quatro domingos anteriores a média de confinamento foi de 58,0%.

Ou seja: em termos gerais, o fim-de-semana de Páscoa revelou uma mobilidade em linha com o que têm sido os últimos fins de semana. No entanto, a questão central está nos dias que antecederam a Páscoa.

Ao SAPO24, Nuno Santos, responsável pelo estudo de mobilidade, explica estes valores. "Com estes dados, procuramos dar informação factual, sem fazer grandes interpretações. O que efetivamente podemos dizer é que esta Páscoa acabou por ser de mobilidade elevada porque se assistiu a grande mobilidade durante a semana, seguido de um fim de semana normal face ao que têm sido os últimos com restrições."

Olhando para os números, é inevitável questionar a diferença no índice de mobilidade entre 2020 e 2021. Nuno, que refere que "os comportamentos são uma realidade relativamente complexa", não tem, neste caso, dúvidas de que "aconteceu uma coisa muito simples" e facilmente justificável.

"Nós acompanhamos a mobilidade desde 2019 e, numa Páscoa normal, as pessoas fazem duas coisas: umas vão celebrar para a terra e outras fazem mini férias — se o tempo está bom vão para o Algarve", começa por dizer. "A Páscoa é sempre uma altura em que toda a gente circula. Em tempo normais, chega-se à Quinta-feira Santa, antes do fim de semana grande, e vai-se de viagem. No Domingo de Páscoa, depois de almoço, as pessoas regressam a casa".

"Ora, o ano passado ninguém foi para lado nenhum. Foi a primeira vez que tivemos restrições de circulação entre concelhos. Estávamos na altura do 'fique em casa, vai ficar tudo bem'. E toda a gente cumpriu: saíram na quarta-feira para fazer compras e fecharam-se depois em casa", relembra.

Todavia, esta Páscoa foi diferente. "Este ano, como tivemos um período de inibições que durou a semana inteira, as pessoas que tiveram de sair foram na semana anterior de viagem e o regresso foi espaçado ao longo dos dias. As pessoas acabam por se adaptar ao quadro de restrições, o que é normal", reflete.

Olhando somente para o Domingo de Páscoa de 2021, 12,2% da população fez mais de 20 km nesse dia (representadas a vermelho no grupo de mobilidade elevada) valor que tinha ficado nos 4% em 2020.

Se somarmos os portugueses que fizeram entre 10 e 20 km (no grupo de média mobilidade, a laranja no gráfico), ascende a 21,9% a população circulou nesta data, "um valor significativo que se compara com os 7% que tiveram o mesmo comportamento no ano passado".

Todavia, estes números continuam a estar muito longe dos 47% de 2019 quando ainda não imaginávamos a hipótese de viver uma pandemia.

De forma simples: "o confinamento deste ano ficou a meio caminho, entre a situação pré-pandémica e o pico do primeiro lockdown, que foi a Páscoa do ano passado".

"A perceção do risco, neste momento, é muito baixa"

Para Nuno Santos, a análise a estes factores é lógica: "depois de um ano de pandemia, a população nunca mais vai reagir como reagiu o ano passado, a menos que seja obrigada, que se imponha quase uma lei marcial".

"A população já percebeu o quadro e decidiu que o confinamento é, neste momento, aquele que a população quiser. Com esta segunda fase do desconfinamento, o que vai acontecer é que vamos ter uma mobilidade normal, dentro do que é hoje o contexto do país. Vamos ver filas de trânsito, particularmente nas grandes cidades, e vamos ver uma intensidade que mostra um cenário em que está tudo 'normal'. Com as aberturas [das atividades] e com os diferentes avanços [no desconfinamento], a mobilidade vai ser influenciada", garante.

Contudo, deixa um alerta: "Sabemos desde sempre que se tivermos 10 milhões de pessoas a circular temos mais hipótese de contágio do que se tivermos 5 milhões", diz. Isto porque associado à mobilidade vêm outros dois factores importantes para a pandemia: "incidência e transmissibilidade".

Curiosidades sobre a mobilidade em tempo de pandemia

Exercício físico, mas "sol de pouca dura"

Em 2020, uma pequena franja da população portuguesa apostou no exercício físico assim que começou o confinamento. "Houve um aumento da percentagem de quem o fazia, mas isto foi sol de pouca dura, porque depois fartaram-se", explica Nuno Santos. Mais à frente, imediatamente depois da Páscoa, registou-se "um outro pico de corridas e de bicicletas", que "depois também passou depressa."

O perfil dos utilizadores de transportes públicos

"A pandemia veio alterar o perfil dos utentes dos transportes coletivos", diz Nuno. Desta forma, os idosos tiveram uma redução na utilização de transportes públicos e o mesmo se verificou quanto aos mais jovens. "Mesmo em épocas em que temos aulas — porque os jovens são um utente clássico deste tipo de transportes —, parte dos estudantes continuou a utilizar os transportes públicos e a outra metade passou a usar transporte individual, com os pais".

O confinamento já existia

"Até existir uma pandemia, nunca ninguém tinha perguntado se, na verdade, já existiam pessoas que estivessem em 'confinamento'. Não se olhava para isto, mas o que é verdade é que já existiam pessoas que todos os dias ficavam em casa", explica. "É o retrato da nossa população. Em Portugal, neste momento, 30% da população tem mais de 60 anos e até aos 19 anos estão outros 20% da população", o que significa que metade da população está nestes extremos. Assim, "antes da pandemia, tínhamos, nos dias úteis, cerca de 26% da população em casa, mesmo que não fossem sempre os mesmos". Ou seja, dizer agora que cerca de 33% da população está confinada "pode não ser assim uma diferença tão grande".

O processo de desconfinamento "é uma situação muito difícil de gerir, como é evidente", explica. "Este equilíbrio entre gerir a pandemia e fazer com que a atividade continue é muito complexo. Mas, ao mesmo tempo, há uma coisa que a população tem de saber e que às vezes acho que já se esqueceu: já morreram quase 17 mil pessoas", lembra Nuno Santos.

"As pessoas olham para os números e já não os estão a ver. Estamos a falar de uma banalização do que são os números — e eu não estou a dizer isto só porque a minha vida são números, não o digo de forma gratuita. É mesmo evidente: a perceção do risco, neste momento, é muito baixa", remata.

A mobilidade acelera ao mesmo ritmo do desconfinamento

Depois da Páscoa, arrancou a 5 de abril a segunda fase do desconfinamento, o que tem reflexos na mobilidade geral.

Segundo a análise do Painel PSE, a mobilidade da população continua a acelerar na mesma medida em que assistimos à reabertura das escolas e das atividades comerciais. Assim, para além do confinamento no primeiro dia desta segunda fase de desconfinamento se ter fixado em 37,8%, cerca de 42% da população teve destinos de deslocação a mais de 10km da sua residência. Ou seja, quem circulou, circulou mais.

Como resultado, a mobilidade registada no dia 5 de abril atingiu os 90% de um dia normal, anterior à pandemia.

Para chegar a estes valores, o PSE recolhe continuamente dados através de "monitorização de localização e meios de deslocação via aplicação móvel de um painel de 4.992 indivíduos representativos do Universo da população com mais de 15 anos, residente em Portugal Continental", de acordo com nota no relatório sobre a mobilidade na Páscoa.

Assim, através de uma app instalada nos telemóveis da amostra, é monitorizada via GPS a deslocação real da população, em cada hora do dia, 24 horas por dia. "Para um universo de 8.883.991 indivíduos residentes nas regiões estudadas, a margem de erro imputável ao estudo é de 1,4% para um intervalo de confiança de 95%", é referido.

Nuno Santos explica ainda que este "é um estudo pioneiro a nível mundial", uma vez que habitualmente são feitos apenas com entrevistas. "Neste caso, estamos essencialmente a falar de um estudo baseado numa amostra representativa da população, que é estratificada por sexo, idade, região, atividade, classe socioeconómica, perfil de mobilidade. Com base nessa amostra, o que fazemos é recolher a informação dos participantes que fazem parte do painel de mobilidade para poder extrapolar dados para o universo de Portugal", clarifica.