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NOTA DO AUTOR
Talvez menos do que qualquer outro livro escrito por mim, ou por qualquer outra pessoa, este volume requeira um prefácio. No entanto, já que todos os outros – incluindo mesmo o A Personal Record (1), que não é mais do que um fragmento de biografia – devem ter as suas Notas de Autor, não o posso deixar sem a sua, para evitar que seja criada uma falsa impressão de indiferença ou lassitude. Sei muito bem que não vai ser uma tarefa fácil. Sendo a necessidade – a mãe da invenção – até mesmo impensável neste caso, não sei o que inventar como forma de discurso: e sendo também a necessidade o maior incentivo possível ao esforço, nem consigo saber por onde começar a encetar o meu esforço. Também aqui, entra a inclinação natural. Durante toda a minha vida fui averso ao esforço.
Sob estas circunstâncias desencorajadoras, estou, contudo, obrigado a proceder partindo de um sentido de dever. Esta Nota é uma coisa prometida. Em menos de um minuto estabeleci, por meio de algumas palavras incautas, um vínculo que desde então se instalou pesarosamente sobre o meu coração.
Pois este livro é uma revelação muito íntima; e que podem acrescentar de revelador mais algumas páginas a cerca de trezentas outras das mais sinceras revelações? Tentei pôr aqui a descoberto, com a falta de reserva de uma confissão de última hora, os termos da minha relação com o mar, que, tendo começado misteriosamente como qualquer outra grande paixão que os inescrutáveis Deuses enviam aos mortais, continuou irreflectida e invencível, sobrevivendo à prova da desilusão, desafiando o desencantamento que espreita a cada dia de uma vida extenuante; prosseguiu prenhe do prazer do amor e da sua angústia, enfrentando‑os numa exultação realista, sem amargura nem queixume, da primeira à última hora.
Subjugado, mas nunca abatido, rendi o meu ser a essa paixão que, variada e grandiosa como a própria vida, teve também os seus períodos de maravilhosa serenidade, que até uma amante volúvel pode por vezes proporcionar sobre o seu peito apaziguado, inçado de ardis, inçado de cólera, e, ainda assim, capaz de uma doçura arrebatadora. E se alguém sugerir que esta deve ser a ilusão lírica de um coração velho e romântico, posso responder que durante vinte anos vivi como um eremita com a minha paixão! Para lá da linha do horizonte do mar, o mundo para mim não existia, tão indubitavelmente como não existe para os místicos que se refugiam nos cumes de montanhas altas. Falo agora dessa vida mais íntima, que contém o melhor e o pior do que nos pode acontecer nas profundezas temperamentais do nosso ser, onde um homem deve de facto viver sozinho, mas não precisa de desistir de toda a esperança de manter relações com os da sua espécie.
Talvez seja suficiente para mim dizer isto, nesta ocasião particular, acerca destas minhas palavras de despedida, acerca desta minha última disposição na minha grande paixão pelo mar. Chamo‑lhe grande porque foi grande para mim. Outros talvez a chamem de paixão insensata. Estas palavras já foram aplicadas a todas as histórias de amor. Mas, seja como for, o facto é que foi algo demasiado grandioso para palavras.
Isto é o que sempre senti vagamente; e, por conseguinte, as próximas páginas repousam como a verdadeira confissão dos factos reais que, para uma pessoa amistosa e caridosa, talvez possam transmitir a verdade interior de quase uma vida inteira. Não se pode dizer que dos dezasseis aos trinta e seis transcorra uma eternidade, no entanto, é um hiato bastante longo desse tipo de experiência que ensina lentamente um homem a ver e a sentir. É para mim um período nítido; e quando dele emergi para uma nova dimensão, por assim dizer, e disse para mim mesmo «Agora tenho de falar destas coisas ou permanecer desconhecido até ao fim dos meus dias», foi com a esperança não erradicável que nos acompanha tanto pela solidão como pela multidão de, em última instância, algum dia, em algum momento, ser compreendido.
E tenho sido! Tenho sido compreendido tão cabalmente quanto é possível ser compreendido neste nosso mundo, que parece ser essencialmente composto de enigmas. Foram ditas coisas sobre este livro que me comoveram profundamente; tanto mais profundamente porque foram proferidas por homens cuja ocupação era manifestamente compreender e analisar e expor – numa só palavra, por críticos literários. Eles manifestaram‑se de acordo com as suas consciências, e alguns deles disseram coisas que me fizeram sentir igualmente alegre e arrependido, por alguma vez ter iniciado esta minha confissão. Vaga ou distintamente, captaram o carácter da minha intenção e acabaram por me julgar digno de ter feito tal tentativa. Viram que era de um carác‑ ter revelador, mas em alguns casos consideraram que a revelação não estava completa.
Um deles disse: «Ao ler estes capítulos, estamos sempre à espera da revelação; mas a personalidade nunca é inteiramente revelada. Podemos apenas dizer que isto aconteceu ao Sr. Conrad, que ele conhecia tal homem, e que a vida assim passou por ele, deixando‑lhe estas memórias. São os registos dos acontecimentos da sua vida, nem sempre acontecimentos marcantes ou decisivos, mas antes aqueles acontecimentos fortuitos que, sem razão aparente, ficam estampados na mente e se repetem na memória muito tempo depois como símbolos, de não se sabe que ritual sagrado celebrado por trás do véu.»
Perante isto, posso apenas dizer que este livro escrito com absoluta sinceridade não oculta nada – a não ser a mera presença corpórea do escritor. Ao longo destas páginas faço uma confissão completa não dos meus pecados, mas das minhas emoções. É o melhor tributo que a minha piedade pode oferecer aos derradeiros modeladores do meu carácter, convicções e, num certo sentido, do meu destino – ao imperecível oceano, aos navios que já não existem e aos homens simples que já tiveram os seus dias.
J. C.
1919
(1) Obra autobiográfica escrita por Joseph Conrad e publicada em 1912. (N. dos T.)
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