DESTRUÍDAS

(1945)

Westen

«Chegou ao final da tarde, o inglês», diz Heinrich Röpe, um robusto agricultor da Baixa Saxónia com um rosto cor de ruibarbo. Enquanto caminhamos ao longo das margens calmas e cobertas de erva do rio Aller, ele mostra-me o local perto da casa da sua família com estrutura de madeira onde os soldados britânicos lançaram uma ponte metálica temporária, para cruzar as águas, num dia de abril de 1945. «Montgomery atravessou aqui!», exclama, com um certo tom de orgulho local. O pequeno Heini, que então contava cinco anos, pôs-se em bicos de pés para espreitar pela janela, observando a passagem do exército fardado de cáqui.

Vim à agora próspera aldeia de Westen (o nome significa «Ocidente»), no meio da planície da Alemanha setentrional, por causa de três fotografias a preto-e-branco, cheias de grão, que mostram um grupo de oficiais do Exército britânico a assistir a um jogo de críquete. Um deles é o meu pai, que contava vinte e seis anos. Ele anotou no verso, com a sua caligrafia característica inclinada para a frente, que as fotografias foram tiradas em junho de 1945, em Westen, que a sua bataria de artilharia ocupou no final da Segunda Guerra Mundial. Para o meu pai, que passara a maior parte de um ano, desde o Dia D, a combater através da França, Bélgica, Países Baixos e Alemanha, vendo os seus camaradas serem feridos e mortos à sua volta, um jogo calmo de críquete deve ter sido tudo menos vulgar. Estudo o rosto tenso de um jovem que nunca conheci e viria a ser o velho que amei. Que lhe passava pela mente?

Olhando com mais atenção, apercebo-me da existência, em segundo plano, de uma mulher com uma criança de tenra idade sobre o joelho e, por detrás dela, de outras crianças vestidas à civil. Um rapaz tem cabelo louco-claro e calças de cintura subida presas a uns suspensórios. Alemães. Que lhes parecia aquilo, enquanto deambulavam entre os estranhos soldados estrangeiros que disputavam aquele estranho jogo estrangeiro? Conseguiria eu encontrar alguém, em Westen, que se lembrasse de alguns pormenores desse tempo?

E aqui estou, portanto, num dia soalheiro de primavera, sentado num belo edifício do século xviii, em tijolo vermelho, que hoje funciona como museu comunal e ponto de encontro. Em redor de uma grande mesa de madeira, à minha frente, encontram-se dez idosos e idosas e eles lembram-se de... tudo. Tudo — e talvez um pouco mais.

«Para mim, como membro da Juventude Hitleriana», começa Albert Gödecke, de uma forma surpreendente, «era perfeitamente claro que Adolf Hitler iria ganhar a guerra». Acreditou nisso até ao momento em que viu o primeiro Tommy. (Todas as pessoas de bem de Westen falam das forças britânicas no singular, como «o inglês» ou «o Tommy»). Felizmente, Albert falava um pouco de inglês e, por isso, disse ao inglês, «Por favor, senhor...».

Heinrich Müller, um velho agricultor atarracado com uma cabeça que lembrava uma abóbora gigante, fora mesmo soldado da Wehrmacht e combatera na frente oriental até ser ferido. Agora, o Tommy invadia a quinta da sua família, em Westen, e perguntava, num alemão macarrónico, «Warum Du nicht Soldat?» («Porquê tu não soldado?»). O veterano da Wehrmacht arregaçou a perna das calças e mostrou o ferimento.

Cerca de trinta jovens alemães morreram numa defesa sem esperança da linha da frente de Hitler, na margem oriental do Aller. Percorro as fileiras de pequenas lápides retangulares, no cemitério da aldeia, vendo os nomes e datas de nascimento: Gerd Estemberger, de dezassete anos; Wilhelm Braitsch, dezassete; Paul Jungblut, dezassete. Vem-me à mente o epitáfio de Rudyard Kipling para um recruta inexperiente:

Na primeira hora do meu primeiro dia
Na primeira trincheira tombei.
(Crianças em caixas a brincar
Erguei-vos para verdes bem.)

Entretanto, os refugiados alemães haviam duplicado a população de Westen de cerca de seiscentas para mais de mil e duzentas pessoas. Alguns tinham vindo de Hamburgo depois dos terríveis bombardeamentos anglo-americanos conhecidos como Operação Gomorra, que fizeram com que pelo menos novecentas mil pessoas fugissem da cidade pulverizada. Outro grupo fora transferido — «no tempo de Adolf», como diz Albert — da Bessarábia para a Pomerânia e, subsequentemente, fugira perante a avançada do Exército Vermelho «com cento e quarenta cavalos». Gosto da precisão, própria de agricultor, do número de cavalos. E depois houvera um conjunto ainda maior de alemães que tentavam salvar as vidas fugindo da Silésia e que Estaline, Churchill e Roosevelt haviam decretado que deveriam ser entregues à Polónia.

Dos Moonspell para a literatura. Fernando Ribeiro traz "Café Kanimambo" ao É Desta Que Leio Isto de junho

Fernando Ribeiro junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 22 de junho, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "Café Kanimambo", que chegou às livrarias a 29 de maio e assinala o regresso do vocalista dos Moonspell à literatura, depois de publicar o seu primeiro romance, "Bairro sem saída", em 2021.

Além da análise da obra, esta conversa permitirá também traçar a relação entre música e literatura, aproveitando a experiência do músico em palcos por todo o mundo, com a banda portuguesa de heavy metal.

"Entre o thriller e a narrativa hardcore, 'Café Kanimambo', segundo romance de Fernando Ribeiro, é a confirmação do autor como uma das vozes mais acutilantes da nova ficção nacional, num livro perturbante que não deixará ninguém indiferente", pode ler-se na apresentação da obra.

Pode ler também um excerto deste livro aqui.

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Helga Allerheiligen é uma dessas refugiadas da Silésia, uma mulher bem arranjada e pequena que parece muito mais nova do que os seus oitenta anos, e continua a história, ajudada pelo marido, Wilhelm. Sim, veio de Breslau (a atual Wrocław), «numa pequena carroça de bois, com apenas três malas». A sua família ficou alojada na aldeia vizinha de Hülsen, num campo que antes fora usado para trabalhadores forçados polacos. «Devia ter visto o estado terrível em que os polacos deixaram aquelas casernas», confidencia-me, mais tarde, com um ligeiro vestígio de preconceito antigo.

Essas refugiadas alemãs não foram bem-recebidas pelos habitantes locais e, certamente, não como parceiras para os seus filhos: «Os homens de Westen deviam casar com raparigas de Westen». Mas, felizmente, os soldados britânicos organizaram serões de dança. Os soldados britânicos «queriam encontrar-se com raparigas alemãs», explica Helga. Num desses bailes, numa taberna em Hülsen, ela conheceu um jovem simpático de Westen chamado Wilhelm Allerheiligen. O pai de Wilhelm ficou horrorizado: «Ela não traz nada consigo!». Mas o amor tudo vence e aqui estão eles, toda uma vida depois, a recordar aqueles bons e maus velhos tempos.

A sua referência a os soldados britânicos organizarem bailes para «se encontrarem com raparigas alemãs» leva-me a uma nova pergunta: será que se geraram relações com soldados britânicos? Uma longa pausa e depois um dos homens inquire, numa provocação: «Está à procura de parentes em Westen?».

Quando fazemos uma pausa para tomar café com bolos caseiros, mostro as fotografias do críquete do meu pai aos dois Heinrichs. Fazem alguma ideia de onde poderão ter sido tiradas? Juntam as cabeças robustas. Claro, exclamam, essa é a estrada para Wahnebergen, e veja aqui, esse é o poste telegráfico em Nocke.

Alguém poderia mostrar-me o local? Jan Osmers, o mais jovem do grupo, oferece-se para ajudar. Metemo-nos no meu Volkswagen alugado e, daí a pouco, ali está: é insofismavelmente o prado das fotografias, com o poste telegráfico no mesmo lugar. Estou de pé com a longa erva de cheiro doce a chegar-me aos tornozelos e oiço, nos ouvidos da minha mente, os sons daquela partida de críquete, numa tarde quente de verão, há todos aqueles anos: «Boa tacada, senhor!», «Howzat!».

Jan, uma personagem esguia com um cabelo grisalho desgrenhado e óculos com lentes de cor, é o historiador local. Orgulhoso herdeiro de um moinho de vento que está na sua família há cinco gerações, escreveu uma crónica pormenorizada e com uma pesquisa cuidada da história de Westen. Tem apenas mais alguns anos do que eu e damo-nos bem de imediato.

Do campo de críquete, dirigimo-nos ao Steinlager, o campo onde os trabalhadores forçados estavam instalados, na aldeia vizinha de Döverden. No que agora é conhecido como Steinsiedlung (o campo do tempo de guerra tornou-se uma urbanização no pós-guerra), casernas de construção sólida foram transformadas em modestos bangalôs unifamiliares, com relvados bem tratados e carros pequenos nos caminhos de acesso. Num deles, ondula ao vento a bandeira americana, num mastro alto.

Muitos dos trabalhadores forçados dos nazis viviam com os agricultores para quem trabalhavam, enquanto os filhos destes iam matar os parentes desses trabalhadores na guerra de Hitler, mas os polacos, russos, franceses e belgas aboletados no Steinlager trabalhavam na vizinha fábrica de pólvora Eibia que, entre outras coisas, fabricava uma arma química primitiva. Jan e eu penetramos numa floresta densa de coníferas em Barme, onde os restos desta fábrica de morte ainda podem ser avistados no meio dos abetos e pinheiros. Uma via-férrea de serviço abandonada conduz diretamente à fábrica e um ramal ainda operacional passa perto. Vias-férreas — essas veias varicosas da maldade nazi que transportaram veneno, escravatura e morte para todos os cantos da Europa ocupada.

Na floresta de Barme já estamos perto do coração das trevas, mas ainda nos aproximaremos mais se sairmos da estrada principal de regresso a Hanover e seguirmos a sinalização até Bergen-Belsen. Aqui, apenas alguns dias depois da travessia do Aller, soldados camaradas do meu pai foram confrontados com horrores que poucos britânicos teriam sequer imaginado vagamente. Em seu redor, viram «esqueletos vivos com rostos descompostos e amarelados» e cheiraram o «fedor de carne em putrefação».

Os maus-tratos, a inanição e a doença privaram os sobreviventes dos últimos resquícios de dignidade humana. Alan MacAuslan, um estudante de medicina que trabalhava para as forças britânicas, recordou:

Olhei para baixo, na penumbra, e vi uma mulher agachada a meus pés. Tinha um cabelo negro emaranhado, bem povoado [de piolhos] e as suas costelas sobressaíam como se não houvesse nada entre elas... Estava a defecar, mas a sua fraqueza era tal que não conseguia levantar as nádegas do chão e, como tinha diarreia, as fezes líquidas amarelas borbulhavam sobre as suas coxas. Os seus pés estavam brancos e inchados devido ao edema da fome e tinha sarna. Enquanto se agachava, coçava as partes genitais, que também estavam sarnentas.

Um prisioneiro checo, Jan Belunek, contou aos seus libertadores que vira cadáveres cujos corações haviam sido retirados e observara outro prisioneiro «sentado ao lado de um desses cadáveres... a comer carne que não tenho qualquer dúvida de que era carne humana».

Os corpos dos mortos estavam agora a formar grandes pilhas, uns sobre os outros, exibindo, como registou um oficial britânico, «todas as habilidades que o rigor mortis pode fazer com a expressão humana, todas as posições bizarras que um esqueleto humano esparramado, atirado ao chão de uma forma aleatória, pode assumir». Se visitarmos, hoje, o monumento em memória de Bergen-Belsen, podemos ver o documentário original com os guardas do campo que foram capturados aos quais é ordenado que saquem esses cadáveres nus e rígidos de camiões e os levem até valas comuns, enquanto os sobreviventes lhes gritam insultos em todas as línguas da Europa.

Em apenas um dia passado a viajar de carro pelo que hoje é um recanto próspero e pacífico do noroeste da Europa, fui levado de volta à hora mais sombria do nosso continente. Aqueles fantasmas estão lá à nossa espera, à distância de apenas uma conversa. Por cada Helga, Albert e Heinrich, por cada soldado britânico como o meu pai, por cada trabalhador forçado francês, polaco ou russo do Steinlager, por cada prisioneiro de Bergen-Belsen, houve mais uns milhões.

O Inferno

Os seres humanos nunca conseguiram construir o paraíso na terra, mesmo —talvez em especial — quando tentaram, mas construíram repetidamente o inferno na terra. Na primeira metade do século XX, foi o que os europeus fizeram ao seu próprio continente, tal como haviam feito, em séculos anteriores, aos continentes de outros povos. Não foram outros que o fizeram por nós. Foi a barbárie europeia, cometida por europeus contra europeus — e amiúde em nome da Europa. Não podemos começar a perceber o que a Europa tentou fazer desde 1945 se não tivermos conhecimento desse inferno.

«Uma morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística.» Mesmo pondo de lado a dificuldade de determinar totais precisos, a mente fica paralisada rapidamente pelos números. Terei eu de lhe dizer que cerca de dezoito mil pessoas morreram em Bergen-Belsen em apenas um mês, março de 1945? Ou que havia quase oito milhões de trabalhadores forçados na Alemanha, no final da guerra? Ou que cerca de 93 por cento do espaço habitável em Düsseldorf ficou inabitável depois de os Aliados terem bombardeado a cidade? Ou que a Bielorrússia perdeu cerca de dois milhões de pessoas de uma população anterior à guerra de cerca de nove milhões, a que se juntaram três milhões ou mais de deslocados?

Num livro que inquietantemente apõe à Europa do século XX o rótulo que os imperialistas europeus do século xix aplicaram a África, O Continente das Trevas, Mark Mazower estima que «perto de noventa milhões de pessoas foram mortas ou deslocadas na Europa entre 1939 e 1948». Isto significa que mais ou menos um em cada seis europeus foi morto ou deslocado, e isso ainda antes de chegarmos aos milhões suplementares que simplesmente morreram de inanição, sofreram de doenças, foram violados, torturados, aleijados, lançados na pobreza, congelados, reduzidos à prostituição, deixados órfãos, humilhados, degradados, que enviuvaram ou que ficaram com cicatrizes psicológicas para toda a vida — para não falar nos efeitos a longo prazo sobre os seus filhos e netos.

Como diz o Antigo Testamento, a iniquidade dos pais é castigada nos filhos «até à terceira e à quarta geração». Quando investiguei as vidas dos agentes da Stasi que me tinham espiado na Alemanha Oriental, no final da década de 1970 e início da de 1980, primeiro lendo os seus dossiês de funcionários da Stasi e depois fazendo-lhes entrevistas exaustivas, impressionou-me muito o facto de todos menos um terem crescido sem um pai. Os pais tinham morrido ou desaparecido na guerra. Enquanto falava com eles, foi ficando claro para mim como isso os tinha tornado vulneráveis, em termos psicológicos, ao apelo do Estado pai. Dezenas de milhões de crianças por toda a Europa cresceram sem um pai depois de 1945, e as suas mães, sem marido.

Livro: "Pátrias"

Autor: Timothy Garton Ash

Editora: Temas e Debates

Data de lançamento: 1 de junho

Preço: € 24,90

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Este inferno tinha círculos diferentes. Os ricos não costumavam morrer de fome, mas um passado aristocrático não era uma defesa contra a indigência. Consoante a data, era melhor ser alemão ou húngaro do que francês ou neerlandês, e depois vice-versa, mas, de um modo geral, era pior ser eslavo e, ainda pior, ser cigano ou judeu. O inferno tinha uma geografia distinta. Os que estavam num país neutro, como a Suíça, a Suécia ou a Irlanda, evitavam os piores horrores. As baixas entre os militares, os bombardeamentos durante o conflito e a austeridade do pós-guerra impuseram um grande sofrimento à Grã-Bretanha — o segundo nome do meu irmão, Brian, presta honras ao melhor amigo do meu pai, morto na guerra. Os horrores mais terríveis ocorreram na metade oriental do continente, naquelas a que Timothy Snyder chamou, memoravelmente, as terras sangrentas.

No cemitério da aldeia de Westen, ao lado das pequenas lápides quadradas daquelas crianças-soldados alemãs que morreram nas margens do rio Aller, em abril de 1945, encontra-se uma placa comemorativa onde se lê:

Ihr Findet Sie
Wo Ihr Nach Ihnen Fragt
Im Osten Gefallen
Im Westen Beklagt
(Encontrá-los-ão
Onde perguntarem por eles
Caídos no Leste
Chorados no Ocidente)

Chorados no Ocidente — e nesta aldeia chamada Ocidente. Uma vez que se tratava de uma povoação agrícola bem fornecida de lenha para queimar, não houve a fome e o frio por que passaram a maior parte das cidades grandes, sobretudo no Leste. Durante a libertação da Europa Ocidental, alguns soldados britânicos cometeram atrocidades, incluindo execuções sumárias e espancamentos cruéis, mas não houve nada como as violações maciças e a brutalidade que o Exército Vermelho descarregou sobre os civis alemães. Albert, o antigo membro da Juventude Hitleriana, garante-me, gentilmente, que em Westen os ingleses foram «muito calmos e práticos». Mas, por outro lado, os britânicos não tinham sofrido o que russos, ucranianos, bielorrussos e outros europeus de Leste que pertenciam ao Exército Vermelho haviam sofrido às mãos dos alemães.

Osten

Depois de um acidente da história pessoal me ter levado à aldeia de Westen, dei por mim a perguntar-me se haveria uma aldeia chamada Osten, que quer dizer Leste. De facto, havia três no Reich alemão de antes de 1914, e uma delas é agora Przysieczyn na Polónia ocidental. E assim, estou aqui sentado em Przysieczyn, a uma outra mesa de madeira com outro grupo de idosos de ambos os sexos que, tal como os seus homólogos de Westen, se lembram de tudo (e talvez de um pouco mais).

Um professor primário polaco reformado mostra, com um gesto teatral, um cantil metálico, amolgado e enegrecido, do Exército francês, presente de um soldado francês para um prisioneiro polaco seu colega num campo alemão para prisioneiros de guerra. Um velho agricultor lembra-se de ter visto os corpos de alemães mortos espalhados pelos bosques no início de 1945. A cavalaria cossaca do Exército Vermelho fora caçá-los. Mas, antes disso, houvera o assassínio de cento e três polacos pelas SS nesses mesmos bosques, na sequência da invasão alemã em setembro de 1939. E a deportação maciça de polacos para leste.

O edifício baixo, de paredes amarelas, onde estamos sentados em Przysieczyn fora a Polenschule (escola para polacos) sob a ocupação nazi. Só as crianças alemãs haviam sido autorizadas a frequentar as escolas primária e secundária normais na cidade da zona, Wągrowiec. As crianças polacas eram obrigadas a deslocar-se até escolas primitivas como esta nas aldeias circundantes, e não lhes era permitido falar polaco e recebiam apenas uma educação elementar em alemão até aos doze anos, momento em que tinham de ir trabalhar. Afinal, deveriam ser uma raça de súbditos.

Conheci Zbigniew Orywał, um robusto e caloroso antigo atleta olímpico, na casa dos noventa, que fora aluno na «escola para polacos» nazi. Recorda que, durante a ocupação alemã, não era permitido que mais de dois polacos caminhassem juntos na rua. O pai costumava escapar-se durante a noite, apesar do recolher obrigatório, para comprar comida aos agricultores locais. Se os alemães o tivessem apanhado, teria sido abatido de imediato. A maior parte dos alemães fugiu à medida que o Exército Vermelho se foi aproximando no início de 1945, levando as carroças e os cavalos. (Aqui, tal como em Westen, os cavalos têm um lugar proeminente na conversa.) E também se lembra dos soldados do Exército Vermelho a matarem os poucos alemães que restavam.

A zona de Wągrowiec exemplifica a loucura desses anos, em que não só milhões de homens, mulheres e crianças mas também países inteiros foram atirados de um lado para o outro, contra a sua vontade, como gado. A região fora polaca durante séculos até a Prússia a ter tomado pela força, na última partilha da Polónia, em 1772. Por conseguinte, passou a fazer parte de uma Alemanha unida após 1871. Depois da Primeira Guerra Mundial, voltou a ser Polónia; em 1939, Alemanha, de novo; em 1945, voltou à Polónia. No fim da nossa conversa à volta da mesa em Przysieczyn, o antigo edil da aldeia, um camponês vigoroso e encantador chamado Jan Kaniewski, mostra-me um grande rolo de cartão. Ao abri-lo, encontro um mapa alemão da região, do tempo da guerra, que foi preservado pelo seu pai e em que os nomes de todos os locais estão em alemão: Wągrowiec é Eichenbrück e Przysieczyn, Osten. Diz-me que o seu pai nunca referiu a existência deste mapa até ao final do regime comunista, em 1989.

Durante a ocupação alemã, metade da população polaca de Wągrowiec foi deportada, sobretudo para o território polaco ocupado pelos nazis mais para leste, mas também para executar trabalhos forçados em lugares como Westen. Os estabelecimentos comerciais e quintas dos polacos foram geralmente ocupa- dos por alemães, muitos deles das zonas orientais do Reich alemão. Adam Mesjasz, por exemplo, filho de um velho agricultor loquaz, lembra que, quando tinha três anos, a 11 de fevereiro de 1941, toda a sua família foi expulsa da sua quinta e enfiada num comboio gelado para ser transportada para leste. A sua quinta foi ocupada por um «alemão do Báltico». Quando a família de Adam regressou, no Domingo de Páscoa de 1945, os alemães do Báltico tinham fugido para ocidente — levando todos os cavalos, sublinha.

Mesjasz também tem uma coisa para me mostrar, um livro grande embrulhado em papel pardo. Verifico que se trata de um álbum de fotografias intitulado «Adolf Hitler: Fotografias da Vida do Führer» — o Führer a ler o jornal, o Führer a acariciar as cabeças de umas encantadoras crianças louras, o Führer rodeado por adoradoras —, cada fotografia retirada cuidadosamente de uma qualquer coleção por assinatura e colada, por um agricultor alemão local, no lugar a ela destinado no volume impresso. Adam e os seus colegas tinham-no encontrado escondido sob as tábuas do soalho de uma casa de quinta quando estavam a realizar trabalhos de renovação na década de 1970. Um fantasma doméstico.

Esses alemães locais, alguns deles pertencentes a famílias que lá haviam vivido durante gerações, também fugiram no início de 1945 e a maior parte deles instalou-se na zona de Luneburgo, na Alemanha setentrional, não muito longe de Westen. Muitas das suas quintas naquela que era agora de novo a zona de Wągrowiec foram ocupadas por polacos que, por sua vez, haviam sido retirados à força dos territórios orientais da Polónia, incorporados agora na União Soviética de Estaline. Alguns dos polacos que expulsaram Helga Allerheiligen, a idosa de Westen, da antiga cidade alemã de Breslau (a atual Wrocław) haviam sido, também eles, expulsos «com apenas três malas» das suas também antigas e amadas terras natais no que hoje são a Ucrânia ou a Bielorrússia. Foi assim o louco carrossel europeu da deslocação involuntária.

A vingança exercida sobre os alemães, tanto inocentes como culpados, pelos soldados alemães que avançavam não se limitou a execuções sumárias e pilhagens. Uma testemunha ocular relatou que quando o Exército Vermelho chegou ao porto báltico de Danzig (a atual Gdańsk), «Quase todas as mulheres foram violadas — entre as vítimas havia mulheres de sessenta e setenta cinco anos e raparigas de quinze e até de doze. Muitas foram violadas dez, vinte ou trinta vezes». Amiúde, os homens foram obrigados a assistir. «Hoje, todos os homens parecem ter encolhido», afirma Maria no filme O Casamento de Maria Braun, de Rainer Werner Fassbinder. Isto é, os homens alemães.

Na cidade natal de Immanuel Kant, Königsberg, então transformada à força na cidade soviética de Kaliningrado, um jovem médico, Hans von Lehndorff, ouviu mulheres que estavam a ser submetidas a violações brutais sem fim gritar aos soldados do Exército Vermelho: «Dá-me um tiro! Dá-me só um tiro!». «Oh», exclama Lehndorff, «quantos olhares invejosos têm de aguentar os mortos!». Por toda a Europa destruída, houve inúmeros suicídios.

Quando Lehndorff e o resto dos seus compatriotas foram expulsos finalmente da sua terra natal próxima, na Prússia Oriental, pelas novas autoridades polacas, o nobre médico disse aos seus compatriotas alemães: «O vereador local [polaco] daqui diz que lamenta muito que tenhamos de deixar a nossa terra natal desta forma. Mas não pode mudar as coisas, porque antes o nosso povo fez o mesmo aos polacos — e isso é verdade, infelizmente».

É inútil tentar avaliar esses sofrimentos contrapondo-os uns aos outros, numa espécie de contabilidade moral de entradas duplas. O poeta W. H. Auden capta a verdade essencial:

Eu e o público sabemos
O que todos os alunos da primária aprendem.
Aqueles a quem é feito o mal
Fazem o mal, por sua vez.

Em todo este panorama de horror, com as suas infinitas variações de tormentos a lembrar mais do que tudo as representações do inferno por Hieronymus Bosch, o que mais trespassa o coração são as crianças: órfãs, abandonadas, maltratadas, traumatizadas. Nas imediações de Westen, os bebés dos trabalhadores forçados foram retirados às mães durante a guerra e encerrados em orfanatos rudimentares — dois deles eram pocilgas reconvertidas e outro um estábulo. Os que sobreviveram ficaram com cicatrizes psicológicas para toda a vida. Logo a seguir à guerra, as enfermeiras inglesas ficaram espantadas com o comportamento das crianças judias que tinham sobrevivido aos campos de concentração. Se uma delas não se encontrasse no grupo, as outras diziam, sem qualquer emoção: «Oh, morreu». Para elas, isso era a normalidade.

Zero, recorrente

A ideia de que 1945 foi o Ano Zero para a Europa contém uma verdade e duas armadilhas. A verdade importante é que, para a maioria dos europeus, houve um momento em que disseram: «Aquele horror terminou, por fim; comecemos a reconstruir, dos escombros, um lugar melhor».

A primeira armadilha é tomá-lo como um ponto de partida sem tomar em consideração o Ano -1 ou o Ano -10, os anos que conduziram a este ponto. Não conseguimos perceber os horrores infligidos a alemães inocentes em 1945 se não soubermos o que foi feito por alemães a outros alemães, a partir de 1933, e depois a outros europeus, começando com a anexação da Áustria e de partes da Checoslováquia, em 1938. Para os povos da União Soviética, a brutalidade esteve presente logo desde o início do regime soviético, em 1917. Pelo menos oito milhões de pessoas morreram na guerra civil russa, que durou até aos primeiros anos da década de 1920, e perto de quase mais quatro milhões durante a Grande Fome na Ucrânia, no início da década de 1930. Por outro lado, para compreendermos estes acontecimentos temos de recuar pelo menos até 1914 e às causas, curso e herança da Primeira Guerra Mundial. Algumas das disputas entre Estados e povos que ressurgiram no período posterior a 1989 tinham origens que podem ser seguidas até à dissolução dos Impérios Otomano e Austro-Húngaro anteriores a 1914 e ao acordo de paz imposto, no final dessa guerra, pelos Aliados vitoriosos.

A segunda armadilha é partir do princípio de que todos os europeus tiveram o mesmo Ano Zero — isto é, 1945. Para a Itália meridional, o Ano Zero foi 1943, na sequência da invasão aliada. Para grande parte da Europa Oriental, começou em 1944, enquanto o Exército Vermelho avançava, mas não terminou, de modo algum, em 1945. Na Polónia e na Ucrânia houve combates ferozes entre forças comunistas e anticomunistas, e entre polacos e ucranianos, até ao final da década de 1940. A Jugoslávia e a Grécia também assistiram a combates ferozes, com as forças britânicas a apoiarem os guerrilheiros comunistas na Jugoslávia enquanto outras forças britânicas esmagavam os guerrilheiros comunistas na Grécia.

Não houve nenhuma linha definida a separar a guerra quente da guerra fria. A Áustria só se tornou definitivamente parte do Ocidente com o seu tratado do Estado, em 1955. Na Estónia, os extraordinários «Irmãos da Floresta» continuaram a lutar contra a ocupação russa, a partir dos seus esconderijos camuflados nos bosques, até bem entrada a década de 1950. O último sobrevivente do Irmãos da Floresta, August Sabbe, morreu quando o KGB tentou prendê-lo em 1978. Por toda a União Soviética, a ampla rede de campos que veio a ser conhecida como Gulag (do acrónimo russo de Administração Central dos Campos) continuou a infligir os tormentos descritos por Soljenítsin em O Arquipélago Gulag. O Gulag foi encerrado oficialmente em 1960, mas os centros especiais de detenção para prisioneiros políticos sobreviveram até bem entrada a década de 1980.

A partir de meados dos anos 1950, a opressão e brutalidade sofridas pela maior parte das pessoas no bloco soviético foram menos extremas do que haviam sido nos anos de 1930 e 40. Mas como o dramaturgo checo dissidente Václav Havel não parou de fazer notar, a «paz» vivida pelas pessoas que viviam num país como a Checoslováquia não era comparável àquela de que gozavam os cidadãos de França, dos Países Baixos ou da Bélgica. Ela foi marcada pelas invasões, pelos soviéticos, da Hungria, em 1956, e da Checoslováquia, em 1968, bem como pela imposição da «lei marcial» na Polónia, em 1981, e foi esburacada pela repressão policial quotidiana.

Nem foi pura e simplesmente um fosso Leste-Oeste. Portugal e Espanha continuaram a viver sob ditaduras fascistas e, por isso, o seu Ano Zero só aconteceu com o fim dessas ditaduras, em meados da década de 1970. De uma forma talvez mais correta, eles tiveram dois Anos Zero. A Grécia ficou sob o regime militar dos Coronéis em 1967 e só voltou a sair em 1974.

Enquanto subia a pé a parte alemã oriental da Friedrichstrasse, poucos dias depois de o Muro de Berlim ter sido derrubado a 9 de novembro de 1989, encontrei um homem que afirmou euforicamente «vinte e oito anos e noventa e um dias!» — o tempo preciso que a sua família estivera encerrada atrás do Muro. Disse-me que acabara de ver um cartaz manuscrito que dizia: «Só hoje é que a guerra terminou realmente». Para as sociedades da metade da Europa dominada pelos soviéticos, 1989 foi o seu segundo Ano Zero.

Mal tínhamos dito «adeus a tudo isso», tudo isso regressou com uma vingança na ex-Jugoslávia. Guerra. Limpeza étnica. Violação como arma. Campos de concentração. Terror e mentiras. Nunca me esquecerei de estar sentado em Sarajevo, em 1995, com um diretor de uma revista que falava de forma expansiva do período «depois da guerra», virando-se de vez em quando para alimentar um fogão primitivo com pedaços serrados de móveis antigos. Por uns momentos, pensei que estava a referir-se ao pós-1945; depois, apercebi-me de que, para ele, «depois da guerra» queria dizer pós-1995.

Enquanto escrevo, prossegue na Ucrânia uma guerra terrestre importante, lançada por Vladimir Putin com uma invasão em grande escala, em fevereiro de 2022, e levada a cabo pelas Forças Armadas russas com uma brutalidade indiscriminada. Quando, por fim, as pessoas que lá vivem puderem dizer «depois da guerra» quererão referir-se ao pós-2023, ou ao momento em que a guerra chegue ao fim. Será mais um Ano Zero. Na Europa, zero é um número recorrente.

Dos pais e das pátrias

Enquanto nos deslocamos de carro entre o campo de críquete em Westen e a floresta de Barme, Jan e eu falamos dos nossos pais. O pai de Jan serviu nas Waf­fen-SS, o braço de combate das temidas SS nazis. Depois, Hartmut Osmers raramente falava da guerra, a não ser para dizer «foi um tempo difícil». Odiava os britânicos, que o haviam mantido preso durante mais de dois anos, depois de 1945, num campo onde não foi tratado de uma forma benévola. Com uma certa dose de tragicomédia, a sua antipatia em relação a tudo o que fosse britânico abrangia inclusive os Beatles. Uns anos mais tarde, ficara horrorizado quando, num dos grandes gestos da Europa do pós-guerra, o chanceler da Alemanha Ocidental, Willy Brandt, se ajoelhou em Varsóvia, em 1970, diante do monumento aos heróis da revolta do gueto de Varsóvia. «Aquele curva-se diante dos Polacos!», exclamara o antigo membro das Waffen-SS.

Depois de ter combatido na frente oriental, Hartmut Osmers estivera colocado na Normandia com a 10.a Divisão Panzer, que lutou ferozmente para suster o avanço britânico, após os desembarques do Dia D. Contou uma vez ao filho que dos cento e vinte homens da sua companhia, apenas haviam sobrevivido trinta. Assim, o pai de Jan poderia facilmente ter matado o meu pai, ou o meu o dele. Um veterano dos combates corpo a corpo no bocage, os campos densamente florestados e cercados com sebes da Normandia, recordou ter visto o cadáver de um soldado britânico que fora atravessado a meio do corpo por uma espingarda com baioneta alemã que o pregara a uma árvore. Ao mesmo tempo, [o soldado britânico trespassado pela baioneta] estendera o braço... e enterrara o seu punhal no meio das costas do seu adversário. Os dois tinham morrido em simultâneo durante a noite, mas, à luz do dia, podiam ser vistos mantendo-se um ao outro de pé.

Podiam ter sido os nossos pais. Um dos episódios do tempo de guerra contados pelo meu pai era sobre como, algures no bocage não muito longe de Bayeux, deu consigo separado de um carro de combate alemão por apenas uma sebe espessa e alta. Podia ouvir nitidamente o comandante do carro de combate a ladrar ordens em alemão, mas felizmente nenhum dos dois conseguiu ver através da sebe. Recordava sempre esse momento em que esteve perto da morte.

O meu pai teve aquilo a que na Grã-Bretanha da minha infância se chamava «uma boa guerra». (Há mais algum país europeu onde as pessoas falassem de «uma boa guerra»?) Cerca das sete e meia da manhã do Dia D, 6 de junho de 1944, o capitão John Garton Ash desembarcou, com a primeira vaga de assalto dos Green Howards, na secção King da praia Gold e trepou em direção a um ponto de referência, na pequena casa normanda de Ver-sur-Mer, a que chamavam «casa da retrete» por causa da forma que o seu caminho de acesso tinha nas fotografias de reconhecimento aéreo, avançando daí para tomar a bataria de artilharia alemã que ficava mais adiante. Seguiram-se meses de árduos combates. Cadáveres e vacas mortas jaziam espalhados pelos campos.

Como oficial de reconhecimento de artilharia, ele avançaria com a vanguarda da infantaria e treparia ao posto de observação mais elevado — amiúde, a torre de uma igreja — para transmitir por rádio as instruções de fogo mais precisas aos canhões que se encontravam atrás. O inimigo logo se aperceberia de que havia alguém lá em cima. Em novembro de 1944, após uns combates particularmente ferozes, ele escreveu aos pais:

Sei que, quando íamos de férias, visitávamos muitas igrejas, mas um conselho para o futuro, nunca me peçam para visitar uma torre de uma igreja. Têm um hábito infeliz de serem derrubadas de forma violenta e com frequência.

Este hábito infeliz das torres das igrejas foi referido inclusive no louvor da sua Cruz Militar.

A guerra foi a experiência determinante da vida do meu pai. Tal como os veteranos de Agincourt evocados pelo rei Henrique V, de Shakespeare, («O homem bom ensinará esta história ao seu filho»), ele contava-nos amiúde episódios do tempo de serviço na guerra: a do carro de combate alemão, por exemplo, ou como, enquanto estiveram a ocupar a pequena aldeia de Westen, os seus soldados receberam ordens para procurar e confiscar todos os uniformes. No dia seguinte, uma delegação da aldeia bateu-lhes à porta: Seria possível devolverem-lhes os uniformes dos bombeiros locais? Talvez o meu pai tenha sido o oficial que ordenou que o pai de Jan — no verão de 1945, Hartmut Osmers estava escondido no moinho da família, em Westen, depois de ter queimado, com ácido clorídrico, a tatuagem das SS que tinha na parte superior do braço — fosse preso e enviado para um campo de detenção, gerando a anglofobia que se manteve durante toda a sua vida. Mas o meu pai nunca me contou essa história.

Enquanto esperavam com impaciência o início do resto das suas vidas, os artilheiros britânicos ocuparam o tempo nos dias monótonos em Westen transformando os cartuchos dos obuses de vinte e cinco libras em cinzeiros de metal pesados. O meu pai guardou cuidadosamente o seu, que agora ocupa um lugar de honra na cornija da lareira do meu escritório. «Cartuchos de artilharia transformados em cinzeiros!» pode ser menos poético do que «Espadas transformadas em relhas!», mas este cinzeiro tem a vantagem insuperável da realidade.

Os episódios narrados pelo meu pai inseriam-se decididamente numa veia muito inglesa de relatos semi-humorísticos que ficam aquém da realidade. Tal como aconteceu com muitos homens ingleses da sua geração, houve tantas coisas das quais ele simplesmente nunca falou, mesmo quando, perto do final da sua vida, me sentei ao seu lado para o interrogar sobre a sua experiência na guerra. Mas, por vezes, nesses últimos anos, quando já tinha mais de noventa anos, ele referia que tinha dormido mal.

Porquê?

«Oh, sabes, a pensar nas coisas que vi na guerra.»

Que eram, realmente, essas «coisas»? Como era inglês, antiquado, de aguentar sem se queixar, nunca o disse, mas entre os papéis pessoais que encontrei quando da sua morte, em 2014, havia uma cópia a papel químico em papel muito fino, uma das muitas reminiscências de operações em conjunto partilhadas por antigos camaradas de armas. «Neve — neve vermelha de sangue —», é como começa este relato de um oficial irlandês, «uma Companhia e meia do 13.º Batalhão de Paraquedistas obliterada na linha de partida...». Amigos mortos. Cadáveres nos campos. Partes retalhadas de corpos presas nas sebes. Talvez também tenha havido decisões tomadas em frações de segundo pelas quais o meu pai ainda se censurava. Porque não ajudou aquele homem que estava ali? Se ao menos. Na mesma pasta, guardou devotamente a correspondência com as viúvas e mães de soldados que tinham tombado enquanto estavam ao serviço na sua bataria de artilharia.

Quase setenta ano depois, na segunda década do século XXI, essas recordações ainda o impediam de dormir. Tal como o meu pai ficava acordado de noite em Roehampton, um recanto frondoso do sudoeste de Londres, estou certo de que idosos de outras nações ficavam acordados em Nápoles, Marselha, Cracóvia e Dresden, afligidos por recordações cognatas e fantasmas seus primos. Tal como a radiação, o mal tem uma semivida muito longa.

O motor da memória

As recordações pessoais, a começar por aquelas do inferno que os europeus fizeram para si mesmos na Terra, contam-se entre os propulsionadores mais fortes de tudo o que a Europa fez e de tudo aquilo em que ela se tornou desde 1945. Chamo-lhe o motor da memória. Tomemos Bronisław Geremek, por exemplo, uma figura fundamental na luta pela liberdade da Polónia nas últimas décadas do século XX e um dos maiores europeus do nosso tempo. Ele trazia bem no fundo de si recordações de três vidas, incluindo uma experiência precoce dos círculos mais baixos do inferno. Perto do final da sua vida, Bronek — como era conhecido pelos amigos próximos — recordou, com pormenores próprios de um filme, a cena seguinte dos primeiros tempos da sua vida.

Estamos em 1942. Num elétrico que atravessa ruidosamente as ruas de Varsóvia ocupada pelos nazis está sentado um rapaz de sete anos, emaciado e semimorto de fome. Bronek. Tem quatro camisolas vestidas e, mesmo assim, ainda treme apesar do calor de agosto. Todos o olham com curiosidade. Todos, tem a certeza, veem que é um miúdo judeu que se esgueirou do gueto de Varsóvia através de um buraco no muro. Felizmente, ninguém o denuncia, e um passageiro polaco alerta-o para ter cuidado com um alemão que está sentado numa secção assinalada como «Nur für Deutsche» («Só para alemães). Por estranho que pareça, depois de ter recuperado a saúde aos cuidados de amigos da família, regressa para junto de seus pais no interior do gueto, e depois foge pela segunda vez esgueirando-se de um cortejo fúnebre que se dirige para o cemitério judaico. E assim Bronek sobreviveu, enquanto o seu pai foi assassinado num campo de extermínio nazi e o seu irmão enviado para Bergen-Belsen, o campo libertado por soldados britânicos.

Tendo fugido dos horrores do gueto («o mundo ardeu diante dos meus olhos»), foi criado pela mãe, que também conseguira fugir, e um padrasto católico polaco, cujo apelido adotou — Geremek, em vez do Lewertow judaico. O adolescente Bronek foi acólito e foi ensinado por um padre inspirador na Congregação Mariana. Assim, ele também tinha nos seus ossos a profunda herança cristã da Europa, definidora deste continente. Depois, aos dezoito anos, entrou para o partido comunista, acreditando que este iria construir um mundo melhor. Dezoito anos depois, despojado das suas últimas ilusões pela invasão soviética da Checoslováquia em 1968, demitiu-se do partido em protesto e regressou à sua vida profissional como historiador medieval. Mas a política não o abandonou.

Encontrei-me com ele pela primeira vez durante uma histórica greve de ocupação no Estaleiro Lenine, de Gdańsk, em agosto de 1980, quando o líder dos trabalhadores grevistas, Lech Wałęsa, pediu a Geremek para ser conselheiro do movimento de protesto que acabara de receber o nome de Solidariedade. Durante a década seguinte, visitei-o sempre que me foi possível. Enquanto lançava baforadas de fumo do seu cachimbo professoral, partilhou comigo a sua análise fundamentada do ponto de vista histórico do declínio do império soviético, no preciso momento em que ele e os seus camaradas do Solidariedade ajudaram a transformar esse declínio em queda, em 1989.

Dez anos depois, Geremek era o ministro dos Negócios Estrangeiros que assinou o tratado pelo qual a Polónia se tornou membro da OTAN. Quando o visitei, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, avistei na cornija da sua lareira uma garrafa de uma vodca checa chamada Lágrimas de Estaline. «Tem de ficar com ela», exclamou. «Um ministro dos Negócios Estrangeiros polaco não pode ter Estaline no seu gabinete!»

Depois de ter sido determinante na condução do seu querido país para a União Europeia, foi deputado ao Parlamento Europeu. Trágicamente, mas de uma certa forma simbolicamente, morreu num acidente rodoviário a caminho de Bruxelas. Bronisław Geremek acreditava, com todas as fibras do seu ser, no projeto de construção de uma Europa melhor.

A história de Geremek é única, mas a forma básica do seu europeísmo é típica de várias gerações de construtores da Europa que fizeram do nosso continente o que ele era no início do século XXI. Quando vemos como a tese da integração europeia foi apresentada em diversos países, desde a década de 1940 até à de 1990, cada história nacional parece muito diferente, à primeira vista, mas, se escavarmos um pouco, encontramos o mesmo pensamento subjacente: «Estivemos num lugar mau, queremos estar num melhor e esse lugar melhor chama-se Europa».

Os pesadelos de que as nações da Europa estavam a tentar acordar eram muitos e variados. Para a Alemanha, eram a vergonha e a desonra do regime criminoso que assassinou o pai de Bronek. Para a França, era a humilhação da derrota e da ocupação; para a Grã-Bretanha, o declínio económico e político; para a Espanha, uma ditadura fascista; para a Polónia, uma comunista. A Europa não tinha falta de pesadelos, mas para os povos de todos estes países, a forma básica da tese pró-europeia era a mesma. Essa forma era um sinal de visto alongado e traçado de uma forma exuberante: uma descida abrupta, uma mudança de direção e depois uma linha ascendente que conduzia a um futuro melhor. Um futuro chamado Europa.

Entre os fundadores do que agora é a União Europeia contavam-se aqueles a que poderíamos chamar os de 14, que ainda recordavam de uma forma vívida os horrores da Primeira Guerra Mundial. Entre eles, contava-se o primeiro-ministro britânico Harold Macmillan, que falaria, com voz trémula, na «geração perdida» dos seus contemporâneos. Depois dele, vieram os de 39, como Geremek, moldados indelevelmente pelos traumas da guerra, do Gulag, da ocupação e do Holocausto. Como não poderia ser assim também no caso da política francesa Simone Veil, que sobreviveu a Auschwitz e Bergen-Belsen?

E depois vieram os de 68, revoltando-se contra a geração dos seus pais e as suas cicatrizes de guerra, embora muitos deles tivessem conhecimento em primeira mão de ditaduras, na Europa Meridional e Oriental. Cada geração teve os seus prolongamentos: os do pós-39 como Helmut Kohl, por exemplo, demasiado jovens para lutar na Segunda Guerra Mundial, mas definidos mesmo assim por ela, e os do pós-68, como eu. Depois dos de 68 vieram os de 89, que estavam no final da adolescência ou início da idade adulta quando testemunharam as revoluções de veludo de 1989 que puseram termo ao comunismo na Polónia, Hungria e Checoslováquia, a queda do Muro de Berlim e a dissolução subsequente da União Soviética.

Temos, é certo, de ter cuidado para não transformarmos a história da Europa do pós-guerra num conto de fadas em que heróis sábios e virtuosos aprendem com a suas experiências do inferno para criarem o paraíso. A história verdadeira está cheia de Estados a prosseguirem os seus interesses nacionais, impérios decadentes, jogos de poder tortuosos, lóbis empresariais agressivos, compromissos diplomáticos, ambições pessoais e, por último, mas de modo algum menos importante, a sorte histórica que Maquiavel afirma ser metade da explicação da maior parte das coisas que ocorrem em política. Mas algures por ali, ao longo de quatro gerações, encontrava-se o motor da memória, a trabalhar intensamente em milhões de mentes e corações europeus.

E assim avançámos com esperança para esse futuro melhor chamado «Europa». Os problemas começam a partir do momento em que chegamos à terra prometida. Na segunda década do século XXI tínhamos, pela primeira vez na história, uma geração de europeus que não tinham conhecido nada para além de uma Europa pacífica e livre constituída por muitas democracias liberais. Sem surpresa, tinham tendência para considerar que se tratava de um dado adquirido. (Aqueles que cresceram na ex-Jugoslávia, ou em países como a Ucrânia, a Bielorrússia e a Rússia, eram exceções importantes.) Esta nova geração pode ser chamada a do pós-89 ou, pedindo emprestada uma expressão vívida da África do Sul pós-apartheid, os Nascidos Livres.

As recordações do que individualmente vimos e ouvimos, gozámos ou suportámos, são uma força motivadora de um poder incomparável, mas a memória pessoal direta não é a única forma pela qual o conhecimento das coisas do passado pode ser transmitido. Assim, por exemplo, o Dia D foi um momento importante para mim, apesar de ter ocorrido onze anos antes do meu nascimento. Um mero encontro pessoal com um veterano ou um sobrevivente pode mudar uma vida. E depois há o trabalho de historiadores, romancistas, jornalistas e cineastas, que tentam ressuscitar os mortos para bem dos vivos. Elie Wiesel, sobrevivente de Auschwitz, chamava a este processo «uma transfusão de memória». O que está em jogo na civilização é que podemos aprender com o passado sem termos de passar de novo, pessoalmente, por tudo o que aconteceu.