Isabel II, 1926—2022
Este livro é dedicado à Rainha,
com amor e gratidão

PARTE UM

A mão do destino

Não herdamos a terra dos nossos antepassados;
pedimo-la emprestada aos nossos filhos.
Provérbio dos nativos americanos

DEZEMBRO DE 2016

A rapariga na praia saiu para a luz e fitou o horizonte sobre o lodo exposto pela maré baixa. Tinha verificado os esconderijos no fim do trilho até à reserva de vida selvagem de Snettisham, na costa de Norfolk, para ver como tinham resistido à intensa tempestade da noite. Durante o dia, as cabanas eram ocupadas por observadores de aves que percorriam quilómetros para contemplarem os gansos, as gaivotas e as aves limícolas. À noite eram um refúgio ocasional da fria brisa marítima para cervejas e… atividades mais íntimas. A última grande tempestade destruíra algumas das lonas e tinha-as arrastado para as lagoas distantes. Daquela vez agradou-lhe ver que os porquinhos da Sociedade Real para a Proteção de Aves tinham construído a sua casa com madeira mais sólida.

Voltando a sair, a rapariga estudou o céu. Uma das coisas que adorava naquele sítio era o facto de ali, no extremo de East Anglia, na costa mais oriental do Reino Unido, a praia se virar teimosamente para oeste. Abria-se ao Wash, uma baía com a forma de uma dentada retangular na costa entre Norfolk e Lincolnshire, onde um aglomerado de rios desaguava no Mar do Norte. Não havia nascer do sol rosado ali. Em vez disso, o Sol tinha-se erguido acima das lagoas atrás de si. À frente, nuvens pairavam baixas e pesadas, mas a luz diluída conferia-lhes um brilho dourado-pálido que era refletido pelo lodo e dificultava perceber onde a terra acabava e o ar começava.

A pouca distância das lagoas, um pouco mais além na costa à sua esquerda, ficava o extremo pantanoso de Sandringham. Normalmente, a Rainha estaria lá naquele momento, com o Natal tão próximo, mas a rapariga ainda não tinha ouvido falar da sua chegada, o que era estranho. A Rainha, como o nascer do sol e as marés, era habitualmente uma forma fiável de se perceber a passagem do tempo.

Olhou para cima, onde um bando alongado de gansos-de-pés-rosados voava numa formação em flecha, regressando a casa depois de sobrevoarem o mar. Mais alto ainda, e mais perto, um tartaranhão-azulado descrevia círculos no ar. A praia de Snettisham possuía uma brutalidade e uma melancolia. O caminho de cimento sob os seus pés e os esqueletos das estruturas de madeira que se erguiam do lodo além dos seixos eram relíquias da guerra do seu bisavô. A extração de seixos para pistas de aterragem de bases aéreas tinha ajudado a criar as lagoas, onde gansos, patos e aves limícolas se aglomeravam presentemente aos milhares, enchendo o ar com os seus chamamentos e grasnados. O seu pai dissera que as gaivotas tinham abandonado a terra décadas antes, após o constante treino de bombardeamento de artilharia para o mar. O seu regresso foi um triunfo da Natureza. E Deus sabia que a Natureza precisava dos seus pequenos triunfos. Enfrentava tantas adversidades.

A maioria das aves propriamente ditas não eram visíveis, mas tinham-se mantido ocupadas. A extensa planície de lodo em diante tinha sido o cenário de um massacre real, esburacada por milhares incontáveis de pegadas de todos os tamanhos, onde patos-de olho-dourado e narcejas tinham pousado depois do recuo da maré, para se banquetearem com as criaturas que viviam na areia.

De repente, uma bola de pelo preta e branca captou a atenção da rapariga, enquanto corria da direita para a esquerda sobre o lodo. Reconheceu-a: um cruzamento de collie-cocker de uma ninhada do ano anterior na aldeia, que pertencia a alguém que não considerava um amigo. Sem qualquer sinal do seu dono, o cachorro acelerou para a estrutura de madeira, atraído por alguma coisa que flutuava na água marinha cor de céu que cercava o poste apodrecido mais próximo.

A tempestade tinha coberto a praia com detritos de todos os tipos, naturais e fabricados pelo homem. Peixes mortos misturavam-se com garrafas de plástico e com emaranhados densos e garridos de redes de pesca desfiadas. Pensou em alforrecas. Também davam à costa ali. O estúpido cachorro facilmente podia tentar comer uma e ser picado e envenenado enquanto o fazia.

— Ei! — gritou. O cachorro ignorou-a. — Vem cá!

Começou a correr. Mexendo os braços para acompanhar o movimento, apressou-se sobre o tapete mal semeado de líquenes e funcho-do-mar que descia até aos seixos. Entrou também no lodo e a água subterrânea enchia cada pegada deixada pelas suas Doc Martens na areia.

— Para com isso, seu idiota!

O cachorro alvoroçava-se com uma forma ensopada e indefinida. Virou-se para olhar para ela enquanto lhe segurava a coleira. Puxou-o para trás.

É Desta Que Leio Isto: Ela tinha o dever de deslumbrar. Em maio, Filipa Martins traz-nos a biografia de Natália Correia

Filipa Martins junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 25 de maio, pelas 21h.

O livro escolhido para leitura é "O Dever de Deslumbrar. Biografia de Natália Correia", que chegou às livrarias a 16 de março, dia em que se cumpriram 30 anos sobre a morte da poetisa.

Esta obra mostra Natália Correia como símbolo das inquietações do século XX português e uma mulher "precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada".

Finalista dos Prémios Sophia, da Academia Portuguesa de Cinema, Filipa Martins dedicou-se – nos últimos seis anos – a estudar a vida e a obra de Natália Correia, tendo sido coautora de um documentário e coargumentista de uma série de televisão sobre esta escritora açoriana.

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O objeto flutuante era um saco de plástico, um velho saco de supermercado, esticado e rasgado, com as asas torcidas em nós e com dois tentáculos pálidos a atravessarem-no. Pegou num pau que flutuava por perto e usou a ponta para o afastar do alcance do cachorro antes de espreitar nervosamente o interior. Não era uma alforreca, não. Era outra criatura marinha qualquer, pálida e inchada, enrolada em algas. Quis levar o saco de volta com ela para mais tarde o deitar no lixo, mas, enquanto caminhava de volta à praia, com o cachorro a forçar a coleira a seus pés, o conteúdo do saco deslizou por um rasgão e caiu na areia húmida e escura.

A princípio, a rapariga supôs que seria uma estrela-do-mar mutante e de cor pálida, mas, quando a examinou com mais atenção e afastou as algas com o pau, percebeu que era algo diferente. Maravilhou-se por um momento com a aparência quase humana, com aqueles tentáculos semelhantes a dedos na extremidade. A seguir viu um vislumbre de ouro. De alguma forma, um dos tentáculos tinha ficado preso em alguma coisa de metal, redonda e brilhante. Viu mais de perto e contou os «tentáculos» anafados e cerosos: um, dois, três, quatro, cinco. O brilho dourado vinha de um anel no dedo mínimo. Os «tentáculos» tinham unhas humanas a descamar.

Largou o saco rasgado e o seu grito pareceu querer encher o céu.

Capítulo 1

A Rainha sentia-se absolutamente horrível de corpo e alma. Olhou para as costas que se afastavam de Sir Simon Holcroft com uma mistura de arrependimento e fúria desesperada. A seguir, tirou um lenço novo da bolsa aberta ao lado da sua secretária para limpar o nariz que pingava.

O doutor mostra-se intransigente… Uma viagem de comboio está fora de questão… O duque não devia viajar…

Se a sua dor de cabeça não lhe provocasse palpitações tão intensas, teria encontrado as palavras certas para convencer o seu secretário particular do simples facto de sempre se viajar até Sandringham de comboio. A viagem de Londres até King’s Kynn estava na agenda há meses. O diretor da estação e a sua equipa esperá-la-iam em quatro horas e meia e teriam polido cada superfície de latão, varrido cada centímetro quadrado da plataforma e, sem dúvida, teriam limpado a seco as suas fardas para se apresentarem no seu melhor. Não se desperdiçariam todos os planos porque se fungava. Se não houvesse ossos partidos, se nenhum parente próximo tivesse morrido recentemente, seguia-se em frente.

Mas a sua dor de cabeça tinha provocado palpitações. O seu pequeno discurso havia sido interrompido por tosse severa. Filipe não tinha estado presente para a apoiar porque estava enfiado na cama, tal como durante todo o dia anterior. Sem dúvida, teria apanhado o maldito bicho de um dos bisnetos na festa antes do Natal que tinham dado no Palácio de Buckingham para a família alargada. Chamava-lhes «pequenas placas de Petri». A culpa não era deles, claro, mas apanhavam inevitavelmente tudo o que passava pelo infantário e pela primária e transmitiam-no como armas biológicas de bochechas gordas. Qual das jovens famílias devia culpar? Todas tinham parecido perfeitamente saudáveis durante a festa.

Levantou o auscultador do telefone colocado sobre a sua secretária e pediu ao telefonista que a colocasse em contacto com o duque.

Estava acordado, mas atordoado.

— O que foi? Fala, mulher! Pareces estar no fundo de um lago.

— Eu disse… — fez uma pausa para assoar o nariz — … que o Simon diz que devemos ir para Sandringham de avião amanhã, em vez de apanharmos hoje o comboio. — Não referiu a parte em que Sir Simon sugerira que Filipe ficasse no palácio.

— No helicóptero? — bradou ele.

— Não podemos usar um 747. — Doía-lhe a cabeça e sentia-se irritadiça.

— Na Marinha estávamos proibidos… — e fungou — … de voar constipados. Muito perigoso.

— Não serás tu a pilotar.

— Se me estourarem os tímpanos, podes culpar pessoalmente o Simon. Maldito tonto. Não sabe do que fala.

A Rainha conteve-se e não recordou que Sir Simon era um antigo piloto de helicópteros da Marinha e que o médico que o aconselhara merecia total confiança. Tinha os seus motivos para recomendar uma viagem rápida pelo ar em vez de um longo trajeto de comboio. Filipe tinha noventa e cinco anos… Era difícil acreditar, mas era verdade. Não devia sair da cama com a sua febre descontrolada. Oh, que ano tinha sido aquele e que final tão adequado. Apesar da celebração encantadora do seu aniversário na primavera, ansiava por deixar 2016 para trás.

— Receio que a decisão esteja tomada. Voamos amanhã.

Fingiu não ouvir a inspiração ruidosa de Filipe antes do que seria, sem dúvida, um catálogo de queixas e pousou o auscultador. O Natal aproximava-se rapidamente e só queria abrigar-se em sossego no conforto rural familiar de Sandringham e conseguir focar se na sua papelada sem a ver a flutuar diante dos olhos.

O outono e o início do inverno tinham estado repletos de incerteza. O referendo do Brexit e as eleições nos Estados Unidos haviam revelado divisões profundas em Whitehall e Washington que exigiram mão muito firme para reparar. Durante tudo isso, a Rainha recebeu presidentes e políticos, cumprimentou embaixadores, atribuiu medalhas e foi anfitriã de eventos de beneficência, sobretudo no Palácio de Buckingham, o local que considerava ser o edifício de escritórios dourado na rotunda. Norfolk atraía-a naquele momento com os seus espaços amplos e com os pinheiros envolventes, com os seus pântanos ricos, vastos céus ingleses e aves selvagens.

Há dias que sonhava com aquilo. Sandringham era o Natal. O seu pai tinha-o passado lá e também o avô e o bisavô. Quando as crianças eram pequenas, fora mais fácil festejar em Windsor durante algum tempo, mas os seus natais de infância tinham sido passados em Norfolk.

No dia seguinte, o helicóptero levou o casal real, com cobertores sobre os joelhos e os cães a seus pés, passando por Cambridge, pelas magnificentes torres medievais da Catedral de Ely, o «navio dos sapais», e seguindo em frente para nordeste, em direção a King’s Lynn. Em breve, os sapais foram substituídos por terreno agrícola com áreas de pinhal, por pastagens e cabanas de sílex. Em baixo, por breves instantes, viram a mansão rosada em estilo Regency de Abbottswood, onde a surpreendeu ver uma manada de veados a deambular lentamente pelo relvado. Seguiram-se os campos de espinheiros imaculados e os bosques espaçados da herdade de Muncaster, cujas fronteiras tocavam as das propriedades reais e, por fim, os campos, diques e aldeias da própria herdade de Sandringham. Enquanto o helicóptero descrevia uma curva, a Rainha captou um vislumbre de mar no Wash distante e, um minuto depois, a mansão de Sandringham surgiu além dos cumes de pinheiros, com os seus jardins formais e informais, os lagos, e os relvados sufi cientemente amplos para permitirem a aterragem.

A casa, construída para Eduardo VII quando era príncipe de Gales, era a fantasia de tijolos vermelhos e com torreões de um arquiteto vitoriano, que quisera aproximar-se do conceito de uma casa setecentista, e os grandes entusiastas da arquitetura costumavam ficar horrorizados com ela. A Rainha, como o seu pai antes dela, apreciava enormemente as suas saliências e nichos idiossincráticos. Filipe, que possuía opiniões firmes acerca de arquitetura, outrora propusera sem sucesso a sua demolição. Porém, o que realmente importava eram os oito mil hectares de pântano, sapal, floresta, terra arável e pomares que formavam a propriedade circundante. A Rainha sentia-se à vontade no campo e, ali, ela e Filipe podiam ser agricultores com discrição. Não do tipo que reparavam vedações sob chuva inclemente e que se ocupavam das ovelhas de madrugada, claro, mas juntos cuidavam da propriedade e adoravam fazê-lo porque era uma pequena parte do planeta que lhes pertencia. Ali, no Norte de Norfolk, podiam participar ativamente num esforço para tentar tornar o mundo um sítio melhor: para a vida selvagem, para os compradores das suas colheitas, para as pessoas que trabalhavam na terra, para o futuro. Era um legado discreto… um legado de que não podiam falar em público (a experiência de Carlos nesse sentido ilustrava porquê)… mas era um legado que muito prezavam.

Livro: "Uma Morte Muito Real"

Autor: S. J. Bennett

Editora: Saída de Emergência | Chá das Cinco

Data de Lançamento: 4 de maio

Preço: € 17,70

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No seu gabinete na extremidade «profissional» da casa, Rozie Oshodi ergueu os olhos do ecrã do seu portátil no momento certo para ver o helicóptero sobrevoar a linha de arvoredo antes de iniciar a descida. Como secretária particular adjunta da Rainha, Rozie tinha chegado de comboio no início daquela manhã. Por enquanto, os salões oficiais com o seu mobiliário eduardiano funcional (e, por acréscimo, a casa inteira e, de certa forma, o país) eram o seu domínio. De acordo com a mãe de Rozie, pelo menos, era assim. Sir Simon, que geria o Gabinete Particular com os dotes combinados do almirante e do embaixador que poderia ter sido, tinha ido às Terras Altas para a primeira parte da quadra. Ele e a sua mulher Sarah tinham sido autorizados a usar a cabana em Balmoral, durante a pausa de Natal, como reconhecimento pelo seu trabalho impecável durante o outono e, como resultado, durante as duas semanas anteriores, a autoridade tinha pertencido a Rozie. «Tudo depende de ti», tinha dito a sua mãe. «Sem pressão. Mas pensa que és como o primeiro Th omas Cromwell negro. És o braço direito. Os olhos e os ouvidos. Não dês cabo disto.» Nunca tinha visto a sua mãe como grande admiradora da história Tudor. Hilary Mantel tinha uma adversária à altura.

Tão perto do Natal, Rozie não esperou ter muito para fazer. Sem mosteiros para dissolver ou casamentos reais para gerir, a principal tarefa do Gabinete Particular era estabelecer uma linha de contacto com o Governo, gerir as comunicações e organizar a agenda pública da Rainha. Mas Whitehall e Downing Street tinham encerrado objetivamente para as férias. Os média fixavam-se em histórias da quadra. O evento público seguinte da Rainha aconteceria dali a três semanas e seria apenas um chá na aldeia. Thomas Cromwell teria achado tudo aquilo muito banal. Rozie ocupara-se sobretudo com a leitura dos e-mails que, por algum motivo, nunca tinham integrado a lista «urgente» na sua caixa de correio. Porém, uma hora antes, recebera um novo e-mail. Talvez aquelas férias não fossem tão sossegadas como tinha antecipado, afinal.

Alinhados diante da entrada, a Sra. Maddox, a imaculada governanta, e a sua equipa esperavam para receber o casal real no seu regresso. Naquele dia, o interior cheirava deliciosamente ao fumo da lareira que crepitava no salão atrás deles, onde a família se reuniria mais tarde para bebidas e jogos. Os cães entraram alegremente, satisfeitos com o regresso, enquanto Filipe se dirigiu diretamente para a cama.

A Rainha teve energia à justa para lidar com um par de empadas de carne acabadas de fazer e com um bule de Darjeeling na sala de estar iluminada e arejada ao fundo da casa, cujas grandes janelas de sacada permitiam ver o relvado. Numa das janelas, uma árvore de Natal já tinha sido posicionada, com os ramos parcialmente decorados com enfeites vermelhos e dourados, pronta para ser completada quando o resto da família chegasse no dia seguinte. Habitualmente escolheria pessoalmente a árvore, mas neste ano não houve tempo. Era um preço baixo a pagar por uma tarde confortável dentro de casa, algo de que precisava muito.

Tinha acabado de falar com a Sra. Maddox acerca dos preparativos dos dias seguintes quando Rozie surgiu à porta da sala de estar. Enquanto a sua SPA eficiente fazia uma vénia, a Rainha reparou que, de forma bastante ominosa, segurava um portátil fechado debaixo do braço.

— Majestade, tem um momento?

— Há algum problema? — perguntou a Rainha, esperando que não houvesse.

— Não exatamente, mas há algo que deveria saber.

— Oh, Deus. — Fixaram olhares e a Rainha suspirou. — Na sala de estar pequena, creio.

Dirigiu-se à sala ao lado, cujas paredes florais e revestidas a seda sugeriam uma aparência delicada e feminina, algo que contrastava com as garridas esculturas de aves que o príncipe Filipe tinha escolhido para ali colocar: recordações de um dos seus maiores prazeres na propriedade.

Rozie fechou a porta depois de entrar. A Rainha olhou-a. Rozie, uma jovem atraente de trinta anos, media mais de um metro e oitenta com os habituais saltos altos. Com a sua idade e com um metro e cinquenta e oito que ia diminuindo, a Rainha estava habituada a olhar de baixo para cima para quase toda a gente… em sentido figurado. Não achava isso problemático, exceto quando tinha de gritar a duques e ministros altos e surdos. Felizmente, a audição da sua SPA era excelente.

— Muito bem. O que se passa? Tem a ver com o novo presidente?

— Não, minha senhora. A polícia contactou-nos. Receio que tenha ocorrido uma descoberta.

— Oh?

— Encontraram uma mão ontem de manhã no lodo da praia de Snettisham.

A Rainha fi cou sobressaltada.

— Uma mão humana?

— Sim, minha senhora. Foi trazida por uma tempestade, enrolada num saco de plástico.

— Santo Deus. Não sabem de onde veio?

— Da Ocado, minha senhora, já que pergunta. Entregam comida do Waitrose.

— Referia-me à mão.

A SPA franziu a testa.

— Ainda não. Esperam identificar a vítima em breve. Um dos dedos tinha um anel invulgar e isso poderá ajudar.

— Então era uma mão de mulher?

Rozie abanou a cabeça.

— De um homem. Era um anel de sinete.

Por fim, a Rainha percebeu a presença do portátil. Sir Simon teria vindo sem ele, mas, infelizmente… dadas as circunstâncias… não estava presente. O seu secretário particular gostava de a poupar a «pormenores desagradáveis». Mas, após noventa anos, uma abdicação, uma guerra mundial, a perda precoce do seu pai e uma ampla seleção de escândalos familiares, era mais capaz de lidar com pormenores desagradáveis do que a maioria. Rozie era mais realista. As mulheres compreendiam-se umas às outras, considerava a Rainha. Conheciam as forças e as fraquezas uns dos outros e não subestimavam as forças.

— Posso ver? — perguntou.

Rozie colocou o portátil sobre a pequena escrivaninha à frente da janela. Quando o abriu, o ecrã ligou-se e revelou quatro imagens medonhas. A Rainha pôs os óculos bifocais para as examinar melhor. Tinham sido tiradas num laboratório forense e mostravam o que era de forma inconfundível uma mão e um punho esquerdos masculinos com um padrão de pelos claros abaixo das articulações e a pele de um branco cadavérico, inchada mas maioritariamente intacta. Parecia, absolutamente, um adereço teatral grotesco ou um modelo preparado para pregar uma partida a alguém. Os seus olhos fixaram-se na última imagem, que mostrava o dedo mínimo em grande plano. Cravado na carne fantasmagórica via-se o anel de ouro que Rozie tinha referido. Era realmente invulgar: grande para o seu tipo e com uma pedra oval rubro negra gravada com um brasão.

Rozie explicou a situação.

— A mão foi encontrada por uma rapariga local, minha senhora. Tanto quanto sei, passeava o cão. Estão a trabalhar agora na identificação. Não deverá demorar mais de alguns dias, mesmo com a pausa do Natal. Pensam que poderá pertencer a um traficante de droga porque um saco com drogas deu à costa um pouco mais abaixo na praia. Há a teoria de que a vítima poderá ter sido raptada e a mão cortada como uma mensagem de algum tipo ou, possivelmente, para pedir um resgate. Foi feito com alguma violência, mas não há provas de que o dono da mão esteja realmente morto. Estão a lançar uma vasta rede. Pretendem…

— Posso poupar-lhes o trabalho — disse a Rainha enquanto erguia o olhar.

Rozie franziu a testa.

— Minha senhora?

— De lançarem uma rede alargada. Esta é a mão de Edward St. Cyr.
A Rainha fechou os olhos por um instante. Ned, pensou. Santo Deus.
Ned
.

Rozie pareceu espantada.

— Reconhece-o? A partir disto?

Em resposta, a Rainha apontou a fotografia no canto superior esquerdo.

— Vê aquele dedo médio de ponta achatada? Cortou-a enquanto fazia carpintaria quando era adolescente. Mas é um anel de sinete, claro… Heliotrópio. Facilmente reconhecível. E a gravação é de um cisne do brasão familiar.

Voltou a espreitar a última fotografia. O anel era uma coisa vistosa. Nunca lhe agradara. Todos os homens da família St. Cyr usavam um assim, mas nenhum dos outros tinha perdido a ponta do dedo médio. Ned teria uns dezasseis anos quando aconteceu. Era um rapaz tão ávido e inventivo. Tinha sido há mais de meio século.

— Suponho que não fosse um barão da droga local, minha senhora — arriscou Rozie.

— Não — concordou a Rainha, olhando-a. — Era neto de um barão verdadeiro. Não que isso signifique que não conhecesse drogas, claro. Ou que não conheça — corrigiu-se. Era perturbadora aquela ideia, como tinha
sugerido Rozie, de que pudesse não estar morto… Mas provavelmente estaria, não é? E Deus saberia em que estado estaria se continuasse vivo. — Espero que esclareçam isto em breve.

— Sem dúvida que isto irá acelerar o processo, minha senhora.

Os olhos azuis da Rainha fixaram-se nos olhos castanhos de Rozie.

— Não precisamos de dizer ao certo quem reconheceu o anel.

— Com certeza. — Após um ano ao serviço, Rozie conhecia o procedimento: de forma categórica, a Rainha não desvendava e nem sequer ajudava a desvendar crimes. Era apenas uma observadora interessada. Porém, como Rozie tinha aprendido, o seu interesse era, por vezes, mais profundo do que a maioria das pessoas sabia. — Há mais alguma coisa que possa fazer? — perguntou.

— Não por agora. — A Rainha mantinha-se firme. — Penso que será suficiente.

Por mais horríveis que as notícias fossem, refl etiu com alívio que, apesar da proximidade de Snettisham, era uma reserva natural administrada pela SRPA (1). Resumindo, não era um problema seu. E, imediatamente antes do Natal, depois de um ano maldito, não desejava que fosse.

— Com certeza, minha senhora. — Rozie fechou o portátil e deixou a Patroa para se dedicar aos afazeres do dia.

1. Royal Society for the Protection of Birds, ou Sociedade Real para a Proteção de Aves. (N. de T.)