“Saramago preparou-se muitos anos para dar o salto qualitativo que lhe permitiu escrever o ‘Levantado do Chão’, e também outro romance menos falado que é o ‘Manual de Pintura e Caligrafia’. Durante anos, pouco ou nada publicou, durante anos, era um escritor - quando o foi - muito pouco conhecido e, de repente, depois de chegar à página 20 do ‘Levantado do Chão’, volta atrás e, por uma qualquer intuição, começa a escrever como depois foi escrevendo”, conta, em entrevista à agência Lusa, o professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Carlos Reis, autor de “Diálogos com Saramago”, livro que resulta de uma longa conversa com o Nobel da Literatura, em 1997, em Lanzarote, antes de o escritor receber o prémio.
Foi nesse livro, "Levantado do Chão", e nesse momento, que Saramago terá encontrado a sua voz, frisou.
Nessa conversa “aberta e sem censuras” com Saramago, em que se falou da condição do escritor, de personagens, de estilo, Carlos Reis ficou também a compreender melhor a forma como alguém, filho de camponeses, que frequentou a escola industrial e que não passou do 5.º ano, “faz um trajeto até ser um escritor famoso”, na altura ainda sem ser Nobel.
“Como é que ele fez isto? Ele fez isto, em grande parte, por aquilo a que nós chamamos talento que é uma coisa que não sou capaz de caracterizar, mas fez de outra forma: fez com trabalho, com trabalho de escrita, com trabalho de revisão, com trabalho de revisão de linguagem e até com trabalho de diálogo entre o cronista que ele foi, e o ficcionista que também foi”, sublinha Carlos Reis, também coordenador do Congresso Internacional que arranca na segunda-feira, em Coimbra, e que assinala os 20 anos da atribuição do Nobel a Saramago.
Para o especialista, a condição de cronista de Saramago foi igualmente importante na criação do escritor, por o cronista ser aquele “que olha para o tempo que está a correr e vê nesse tempo figuras que poderiam ser personagens, descobre nesse tempo incidentes que podiam ser ações romanescas”.
Carlos Reis, que descobriu Saramago com o “Memorial do Convento”, editado em 1982, e o acompanhou desde então, sublinha que aquilo que o fascinou no escritor - tal como em muitos outros leitores - foi encontrar nos seus livros “uma linguagem diferente, muito complexa”, mas uma linguagem “de um grande narrador - de alguém que sabe contar uma história e, ao mesmo tempo, ir dialogando com o leitor”.
Se em “Levantado do Chão” já se encontrava uma atração pela História, com várias gerações de personagens convocadas para um Alentejo onde se trabalhava de sol a sol, nas obras que se seguiram, nomeadamente em “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984) e em “Memorial do Convento”, torna-se central a reescrita da História, em que se questiona uma História que se pensava “estabilizada, oficializada, acabada nos livros de história”, afirma o especialista à Lusa.
Carlos Reis nota, no entanto, que, a determinada altura, nomeadamente a partir de 1995, Saramago deixa de lado esse trabalho que o próprio escritor apelidou de “barroquismo narrativo” - com uma linguagem mais complexa e em que a componente histórica e social era mais clara - para uma narrativa “muito mais sóbria”.
Pegando como exemplo o “Ensaio sobre a Cegueira”, de 1995, o especialista refere que a personagem passa a funcionar como uma alegoria - não tem nome ou um nome banal - e os sentidos são “muitas vezes mais sentidos éticos do que sentidos históricos ou ideológicos”.
O sentido abstrato e ‘trans-histórico’ acaba por se afirmar nesses romances de Saramago, explica, considerando que isso poderá ter acontecido quer por indisponibilidade do escritor, quer pelo propósito de escrever “para um leitor universal”.
“Saramago deixa de fazer esse trabalho [de pesquisa de arquivos, livros de época e jornais] e passa a falar para um leitor universal, para um leitor que não conhece Portugal ou a sociedade portuguesa, apesar de [os livros anteriores] terem já sido traduzidos”, sublinha à Lusa.
Para Carlos Reis, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” e “Memorial do Convento” serão dois dos livros de Saramago que poderão ser mais valorizados no futuro, estando neles várias das características da obra do escritor - a reescrita da História e a narrativa complexa e elaborada, com o passado sempre a dialogar com o presente.
A estes dois, o docente junta “O Ensaio sobre a Cegueira”, um livro que pode ser lido como “um romance dos grandes traumas, das grandes desumanidades”, em que o escritor mostra que, mesmo após o Holocausto, se continua a viver rodeado “de egoísmo, crueldade e de violência sobre grupos”.
O especialista chama também a atenção, no entanto, para romances mais escondidos e perdidos de Saramago, como é o caso de “Manual de Pintura e Caligrafia” (1977), “História do Cerco de Lisboa” (1989) e “Todos os Nomes” (1997), que merecem uma redescoberta.
Questionado sobre se a obra de José Saramago irá resistir aos tempos, Carlos Reis recorda que a História está “cheia de grandes escritores, famosíssimos no seu tempo, de que hoje ninguém se lembra”, apontando como exemplos o português Pinheiro Chagas ou o primeiro Nobel da Literatura, o poeta francês Sully Prudhomme.
Vinca, no entanto, que “há no Saramago elementos muito importantes para ficarem para o futuro”, seja o questionamento e reescrita da História, as questões éticas que aborda ou a linguagem própria do escritor.
“Mas para isso é preciso que continue a ser valorizado, através da leitura e do estudo”, apontou à Lusa, considerando que o congresso que arranca na segunda-feira, e vai até quarta-feira, é também “um contributo nesse sentido”.
O congresso internacional "José Saramago: 20 anos com o Prémio Nobel" é organizado pelo Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra, com a Câmara Municipal, a Fundação José Saramago e a Porto Editora, e tem em Carlos Reis o coordenador da comissão executiva.
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