O JurisApp entrou em funcionamento no início de 2018 e foi criado pelo governo com o objetivo de evitar a contratação pública de sociedades de advogados, mas nos últimos cinco anos o Estado gastou em serviços jurídicos externos mais de 125 milhões de euros, uma média de 25 milhões de euros por ano.
A administração direta e indireta do Estado passou a estar obrigada a pedir um parecer prévio ao JurisApp antes de contratar os serviços de uma sociedade de advogados. Até final de 2022 foram submetidos ao Centro 571 pedidos e internalizados 19, o que levou o advogado José Miguel Júdice a comentar: "Um fracasso absoluto".
O SAPO24 começou por querer saber quanto dinheiro poupou o Estado em serviços jurídicos desde a criação do JurisApp. Segundo a direção do Centro de Competências, não é possível responder a esta pergunta, "já que não existe um valor médio de referência para os custos com processos de assessoria jurídica ou de patrocínio forense que possa ser usado para cálculo".
Um relatório elaborado pela OCDE a convite do governo contraria esta ideia, e diz que a comparação não só é possível como desejável, para avaliar a missão do Centro. "O JurisApp poderia considerar a adição de uma medida de resultado sobre a relação custo-efetividade geral da organização, comparando os seus custos com aqueles que seriam incorridos em caso de prestação de serviços jurídicos". E vai mais longe: "Os indicadores de resultados atualmente incluídos no quadro estratégico do JurisApp focam-se apenas em funções, o que pode dar uma visão incompleta do desempenho total da organização".
O secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, acredita que a taxa de êxito é elevada, mas admite que é possível fazer mais e melhor: "Temos vontade de fazer a reforma" e "queremos alargar os serviços a novos campos de atuação, como a arbitragem" e "alargar o perímetro de clientes".
Cabrita ficou de fora, IVAucher também
O Estado gastou nos últimos cinco anos mais de 125 milhões de euros na contratação externa de sociedades de advogados, contra 70,2 milhões de euros nos cinco anos anteriores, de acordo com números do Portal Base, que centraliza a informação sobre os contratos públicos celebrados em Portugal.
Além disso, entre o início de 2018 e o final do ano passado, o JurisApp representou uma despesa efetiva de 8,371 milhões de euros para o Estado.
Entre as competências do JurisApp está a emissão de pareceres jurídicos especializados sobre qualquer questão no âmbito da atividade do governo ou a representação em tribunal do Conselho de Ministros, do primeiro-ministro ou de qualquer membro do governo integrado na Presidência do Conselho de Ministros. Ainda assim, o JurisApp "não foi chamado a intervir no processo" que envolve o ex-ministro Eduardo Cabrita e o atropelamento mortal na A6.
Em cinco anos de atividade foram submetidos ao JurisApp 571 pedidos de contratação externa. Destes, 319 foram excluídos ou rejeitados "por falta de fundamentação e/ou requisitos ou porque eram relativos a avenças", 233 autorizados e 19 internalizados para emissão de pareceres pelo Centro.
Entre os clientes do Centro estão os ministérios da Modernização do Estado e da Administração Pública, da Cultura, das Finanças, da Saúde, das Infraestruturas e Habitação e da Coesão Territorial, a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, o Compete2020, o Centro Nacional de Cibersegurança, a Imprensa Nacional Casa da Moeda ou as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional.
A 31 de dezembro de 2022, havia 546 processos judiciais pendentes, "a aguardar julgamento e decisão": 538 em tribunais administrativos (ações de impugnação de atos administrativos), seis em tribunais cíveis ou penais (apoio ao Ministério Público e responsabilidade civil), e dois no Tribunal Constitucional (fiscalização abstrata e concreta). Estes processos dizem respeito "a todas as áreas governativas representadas judicialmente pelo Centro".
Quanto a processos de consultoria, "dos 169 entrados em 2022 contavam-se 11 pendentes a 31 de dezembro". A direção da JurisApp esclarece que "os processos de consultoria estão pendentes apenas enquanto aguardam informação solicitada às entidades que pediram aconselhamento jurídico e decorre o período conferido pelo cliente para a análise, que pode oscilar entre algumas horas ou dias, conforme sejam os prazos legais para decisão".
Pareceres por medida e sobreposição de funções?
"É prática de sucessivos governos criar leis para melhor as contornar", diz Marinho e Pinto, advogado e, como José Miguel Júdice, antigo bastonário da Ordem dos Advogados. "Ficam bem no papel e têm preâmbulos magníficos, está lá toda a doutrina e princípios jurídicos, mas a prática é diferente". Por isso, não se surpreende com estes dados.
O ex-deputado europeu lembra que a Procuradoria-Geral da República tem um Conselho Consultivo exatamente para dar pareceres sobre a legalidade dos atos do governo, pelo que não entende a duplicação de funções. "Se esse conselho não tem meios, então é preciso dar-lhos". Mas, claro, "isso não permite dar por baixo da mesa e pagar a escritórios de advogados" para se fazerem "pareceres por medida".
Marinho e Pinto já está retirado, mas diz que "o princípio da transparência, no Estado, continua a ser o princípio da obscuridade". "A PGR", resume, "deveria suprir muitas das necessidades do Estado nesta matéria" e o "Ministério Público também pode entrar em contencioso a favor do Estado", recorda.
Uma vez mais, o relatório da OCDE converge neste ponto: "Poderia ser apropriado fornecer uma lista clara de competências e diferenciação entre o JurisApp e a Procuradoria-Geral da República/Ministério Público [...] Ao contrário do MP, consagrado na Constituição Portuguesa, o JurisApp foi criado por um Decreto-Lei. Isso pode vir a levantar questões sobre a função do JurisApp no futuro, já que qualquer mudança de governo pode ter efeitos sobre este órgão".
José Miguel Júdice, por seu lado, recorda que quando foi bastonário coordenou a revisão de estatutos da Ordem dos Advogados, "que abria caminho para ser legalmente possível que o Estado tivesse advogados internos que o pudessem representar", um pouco "à semelhança do que existe em Espanha, com os Abogados del Estado [Advogados do Estado]".
O Corpo de Abogados del Estado é constituído por funcionários públicos da administração geral do Estado de Espanha, e tem como função assessorar, representar e defender juridicamente o Estado. "É este órgão que as empresas controladas pelo Estado usam para consultoria e representação, e é lá que está a elite da profissão, que tem de prestar provas públicas exigentes", explica Júdice.
Ao contrário, em Portugal a maior parte dos organismos do Estado, dos ministérios ao setor empresarial, tem gabinetes de juristas, "mas que não são advogados". "As sociedades de advogados não gostaram da minha proposta - eu próprio fazia parte de uma sociedade de advogados -, e o assunto morreu".
Para José Miguel Júdice as vantagens da solução que propunha incluíam "o aumento da densidade intelectual e científica do Estado e a diminuição de situações de conflitos de interesse". "Sou favorável à criação de um corpo técnico, sujeito à deontologia profissional dos advogados, selecionado de forma transparente".
O mapa de pessoal do JurisApp para 2022 previa 41 postos de trabalho e uma das críticas feitas ao Centro é que a contratação de juristas se limita à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Vieira de Almeida campeã dos contratos públicos
Mais de 15 milhões de euros foi quanto a Vieira de Almeida & Associados ganhou em contratos públicos nos últimos cinco anos - contra menos de 10 milhões de euros entre 2013 e 2017. E foi a esta sociedade de advogados que o gabinete do ministro das Finanças entregou os serviços de assessoria jurídica no âmbito do tão falado Programa IVAucher, por exemplo.
Só do Banco de Portugal, que nos cinco últimos anos pagou mais de 21 milhões em serviços jurídicos externos, quase sempre por ajuste direto, a Vieira de Almeida recebeu 12,6 milhões de euros.
No top das sociedades de advogados com mais contratos públicos estão ainda a Sérvulo & Associados (mais de dez milhões), a Cuatrecasas, Gonçalves Pereira & Associados (7,6 milhões), e a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados (5,3 milhões), todas com mais de um milhão por ano.
Seguem-se a PLMJ Advogados, a Brito, Alves, Salvador e Associados e a Abecasis, Moura Marques, Alves Pereira & Associados, todas com mais de meio milhão de euros por ano faturado ao Estado. A estes valores acresce ainda o IVA à taxa legal.
O parecer prévio da JurisApp não é obrigatório para todos os organismos - as exceções, aliás, são mais do que a regra: não é exigível aval "sempre que esteja em causa a administração regional, local, fundações, entidades do Ensino Superior e associações públicas, assim como a aquisição de serviços de patrocínio judiciário, Setor Empresarial do Estado ou serviços periféricos externos do Ministério dos Negócios Estrangeiros".
As dez maiores sociedade de advogados beneficiaram de contratos públicos num valor um pouco superior a 60 milhões de euros nos últimos cinco anos. Os melhores clientes foram os reguladores, com perto de 25 milhões de euros, as empresas públicas, mais de 12 milhões de euros (incluindo empresas municipais) e os municípios, com cerca de 12 milhões de euros. Mas gabinetes de ministros, secretarias-gerais e direções-gerais pagaram mais de cinco milhões de euros a escritórios de advogados neste período. À cabeça, Ambiente e Ação Climática e Finanças.
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