Embaixador e membro do governo durante cinco anos e meio, tem histórias levadas da breca. E imenso jeito para as contar, o que o faz amiúde, ora no seu mural de Facebook, ora no seu blog “Duas ou três coisas”. Estava nos Estados Unidos no 11 de Setembro e, sem saber, dormiu no mesmo hotel que os terroristas, o The Westin, em Boston. Terminou a sua carreira diplomática em Paris, cidade para onde foi pela primeira vez à boleia, desde a rotunda do Relógio, em Lisboa, tinha 18 anos, e onde assistiu à segunda volta das presidenciais ganhas por Georges Pompidou e às legislativas de 4 e 11 de Março de 1973, que marcam o início do diálogo entre socialistas, comunistas e radicais de esquerda, que acabará em 1981, com a vitória de François Mitterrand e a entrada dos comunistas no governo.

Como não podia deixar de ser, a conversa começou pelo Brexit, uma novela que há muito deixou de ser exclusivo da BBC para passar a ser transmitida nos principais canais de diversos países do mundo. May já anunciou que abandonará funções prematuramente caso os deputados britânicos aceitem o acordo de saída negociado com a União Europeia. Até agora o parlamento já disse o que pensa das propostas da primeira-ministra: “No”. Mas deixou uma alternativa: “No”. Enquanto isso, faltam menos de dois meses para as eleições europeias.

Saída à francesa, dizemos nós, mas agora só se fala na saída à inglesa…

E os franceses dizem saída à inglesa: “Filer à l’anglaise”, o que tem a sua graça… É inevitável que o Reino Unido saia da União Europeia. Não sei como, não sei quando, mas o movimento parece-me intravável. A grande questão está na forma e nos impactos, quer na vida constitucional britânica, quer na vida política e no equilíbrio interno dos seus partidos, trabalhistas e, em particular, conservadores. Acredito que o Partido Conservador não vai sair incólume desta crise.

May terá de se demitir? Estranha que ainda não tenha caído?

Já devia ter-se demitido, mas não sei se é prudente agora, numa fase em que o Reino Unido precisa sobretudo de um mínimo de equilíbrio e de estabilidade. A acontecer, as consequências podem ser ilimitadas. O Partido Conservador está dividido, não por causa da senhora May, mas sim pela incapacidade de encontrar pontos comuns. As coisas pioram por ela ser uma líder fraca, que não consegue levar à prática aquilo com que se compromete externamente. May não tem capacidade para representar o Reino Unido e a sua navegação à vista é foco de tensões entre grupos que querem coisas diferentes, ou que não querem exactamente as mesmas coisas, embora não apresentem soluções. Apesar de todos dizerem que não devia haver saída sem acordo, ninguém concorda com este acordo, mas também não diz com que acordo concordaria. Por tudo isto, penso que a mudança de líder, que ocorrerá de qualquer forma dentro de pouco tempo, também não resolve o problema.

“Apesar de todos dizerem que não devia haver saída sem acordo, ninguém diz com que acordo concordaria. A mudança de líder também não resolve o problema”

Além das questões aparentes, qual a grande questão de uma saída sem acordo para o Reino Unido?

A grande questão, e aquela que penso que está a bloquear o acordo, é o reestabelecimento potencial das fronteiras entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. Para evitar o caos, a União Europeia preparou medidas contingentes em diversas áreas, para fazer face a uma eventual saída sem acordo, que são basicamente o prolongamento técnico temporário das práticas actuais. Mas não há medida contigente para evitar o que, em tese, se deveria passar na fronteira terrestre da República da Irlanda com a Irlanda do Norte. O eventual não reestabelecimento dessas fronteiras, em caso de saída do Reino Unido da UE sem acordo, passa a configurar uma ilegalidade face às regras da União Europeia. Ora, nem a Irlanda nem o Reino Unido parecem dispostos a recriá-las. Assim, a questão só pode ser superada negociando um futuro modus operandi em matéria de livre circulação de bens e pessoas, uma vez que, neste último caso, o Reino Unido não aderiu a Schengen [livre circulação de pessoas], como acontece com a Noruega, que não é membro da UE. Mas o acordo sobre a livre circulação de bens levará anos a ser negociado. E até lá, como será? Está assim criada uma perigosa zona cinzenta. Se a União vier a pedir à Irlanda que vigie as suas fronteiras com a Irlanda do Norte (e a Irlanda do Norte é Reino Unido), vai transformá-la no parceiro em indesejável evidência no contexto das relações com o Reino Unido - e isto pode pôr em causa a paz entre as duas Irlandas. O conflito ainda está na memória colectiva e o fim das fronteiras foi uma condição essencial para a paz.

Ainda acredita na hipótese de um segundo referendo?

As possibilidades de um segundo referendo são muito limitadas e iriam provar que a vontade do país é condicionada. Por outro lado, ainda que resultasse, o país continuaria dividido, a diferença entre o ficar ou sair nunca seria grande, ou seja, o resultado teria uma legitimidade marginal. Mas existem aqui dois aspectos: a partir de agora a Escócia tem razões para retomar a questão da independência - não queria sair da União Europeia e deixou isso bem claro, com consequências graves para a unidade do Reino Unido. A segunda questão é da Europa a 27: nada garante que unidade que existia durante a negociação se mantenha e o resultado acabará por ser irrelevante se o trabalho de três anos der em nada. Aliás, esta unidade na atitude já começa a sofrer clivagens face ao pedido de May para mais tempo. 

Mas há um ponto importante nesta negociação: tudo indica que o Brexit vai ser uma tragédia, quer para o Reino Unido, quer para a União Europeia.

Resta saber como ficarão as relações bilaterais dos diversos países com o Reino Unido.

No caso de termos de renegociar um modus vivendi coloca-se a questão de saber se a Europa se mantém unida - e os sinais que existem são de que a unidade atingiu o limite. A importância de interesses no quadro de relacionamentos futuros com o Reino Unido não será a mesma, cada um tenderá a negociar em seu favor. Os tempos de lua-de-mel podem não continuar. Mas há um ponto importante nesta negociação: tudo indica que o Brexit vai ser uma tragédia, quer para o Reino Unido, quer para a União Europeia.

Está certo disso?

Os três anos que passaram desde o referendo desconstruíram aquilo que é o Brexit. Isto é, aquele que era um sentimento de perplexidade generalizado sobre o efeito de ruptura da ligação entre o Reino Unido e a União Europeia está hoje muito mais trabalhado em função da negociação, que conseguiu identificar áreas e encontrar soluções de transição. Mas, segundo os especialistas nesta matéria, particularmente na área financeira, há uma zona cinzenta que vai ser preciso testar na realidade. Dito isto, tenho a certeza de que o Brexit é mau para os dois lados, disso não tenho a mais pequena dúvida.

Qual será a tragédia para o Reino Unido?

O Reino Unido entra numa zona cinzenta no quadro mundial. Além do aspecto emocional ligado à atitude britânica, no início desta reacção o Reino Unido contou muito com a circunstância de poder ligar-se aos Estados Unidos e explorar melhor a chamada “special relationship”. Contou que os mercados internacionais olhassem para si como uma entidade que podia ter a capacidade de explorar uma espécie de isolamento virtuoso, de ser uma espécie de Singapura da Europa. A verdade é que os mercados não viram as coisas assim e, em particular, verificamos que há um conjunto grande de empresas a sair do Reino Unido e que há uma desconfiança objectiva nesse mercado. Apesar de tudo, historicamente os britânicos têm uma capacidade de regeneração apreciável e penso que vão conseguir dar alguma volta a isto. No entanto, acredito que os primeiros tempos não vão ser nada fáceis.

Apesar de tudo, historicamente os britânicos têm uma capacidade de regeneração apreciável e penso que vão conseguir dar alguma volta a isto.

E para a Europa?

Para a Europa é uma debilitação forte. Em primeiro lugar, uma debilitação psicológica: estamos habituados à construção europeia, não estamos habituados à desconstrução europeia. A Europa vai perder um membro do Conselho de Segurança, vai perder poder nuclear, vai perder o segundo contribuinte líquido, vai perder o maior exército e, digamos, um dos dois únicos com capacidade de projecção em termos de expressão de segurança e defesa, e vai, manifestamente, desequilibrar-se internamente. E digo isto numa perspectiva quase portuguesa, isto é, estamos habituados, apesar de tudo, a uma Europa equilibrada e com um certo pragmatismo britânico, e até de uma atitude de alguma relutância que, ao mesmo tempo, garantia na União Europeia uma certa atenção, por exemplo, à relação transatlântica.

A Europa vai mudar em termos geoestratégicos?

A Europa que aí vem é diferente, é uma Europa mais balanceada para leste, ou para centro-leste, é uma Europa que vai viver muito mais do dueto franco-alemão, sendo que esse dueto também não está num dos momentos mais brilhantes. Diria que para um país atlântico como Portugal é uma Europa que traz algumas interrogações. Da mesma maneira que a entrada do Reino Unido teve um grande impacto na União Europeia, a sua saída também terá. Se há coisa que aprendemos com os alargamentos, é que todos mudaram a UE - talvez os menos importantes tenham sido os de Portugal e Espanha, na altura. Mas todos acabaram por ter efeitos variados: a Áustria, a Suécia e a Finlândia na segurança e defesa, os países de leste nas tensões com a Rússia, Malta e Chipre na questão mediterrânica. O Reino Unido também tinha importância nestes equilíbrios.

Nada está decidido, mas estamos a menos de dois meses de eleições europeias.

É um tempo complexo dentro da Europa, um tempo de eleições europeias, um tempo de um novo Parlamento Europeu, de uma nova Comissão Europeia com comissários oriundos de países eurocépticos, que é um ponto as pessoas tendem a esquecer, um tempo em que aquilo que levou ou pode ter levado ao Brexit, nomeadamente em matéria de dimensões de mobilização populista, também existe noutros países europeus, embora em formatos diferentes. Estamos num tempo europeu muito problemático e cheio de interrogações.

É o princípio do fim?

Não acredito que seja o princípio do fim. É seguramente o princípio do fim da Europa que conhecemos. Acredito que o projecto europeu tem vantagens que superam em muito as suas desvantagens.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Olhando para o trajecto do Reino Unido, vemos que sempre teve um pé dentro e outro fora da União Europeia…

…Não está no euro, não está em Schengen, foi sempre uma presença relutante, de parceiro “sim, mas”. E teve sempre o cuidado de o dizer: estamos na UE, mas somos excepcionais nisto, pagamos para o orçamento, mas recebemos o reembolso, somos uma ilha, por isso ficamos fora de Schengen. A excepcionalidade passou a ser regra na vida do Reino Unido. Eu, que vivi no Reino Unido e assisti a tempos complicados, que foram os da senhora Margaret Thatcher, da negociação de Maastricht, fiquei sempre com a impressão de que os britânicos foram nisso aculturados pelos dois lados do espectro partidário. Houve sempre esta ideia de que ter vários opting-outs era uma coisa boa e, se calhar, um dia, perante uma situação de alguma tensão - migrações, sustos, medos e uma certa instabilidade - pensaram que o melhor era o opting-out final. E essa é a questão do Brexit.

Hoje sabemos que muitas pessoas votaram com base em informação errada, pouco esclarecida. Mas todo o cidadão europeu vota assim

Foram esses medos que levaram à vitória do sim, da saída?

Hoje sabemos que muitas pessoas votaram com base em informação errada, pouco esclarecida, etc. Mas, vamos lá ver, todo o cidadão europeu vota assim. O que não tem é este poder decisivo, mas vota sempre em função das informações básicas que possui. E também não acredito que a população do Reino Unido seja menos conhecedora das coisas do que o resto da Europa, pelo contrário, à partida é até mais informada. Com franqueza, respeito muito o voto de saída da União Europeia, e fiquei triste ao ver dirigentes europeus, nomeadamente da Comissão Europeia, reagirem quase insultuosamente face à decisão britânica. Se acreditamos na democracia, a decisão tem de ser respeitada.

Temos uma classe política democrata até o resultado ser o que quer?

Penso que a classe política britânica não tem vontade de ir para um segundo referendo, como disse, porque sabe que no imaginário político dos britânicos um voto é para respeitar. Dir-se-á que se fosse hoje o sentido do voto seria diferente, mas por essa ordem de ideias estaríamos sempre em votações perante qualquer decisão. Os britânicos não estão próximos daqueles países que, por exemplo, relativamente aos tratados europeus, votavam num determinado sentido e repetiam a votação para ver se o sentido mudava. Isso sim, é uma forma caricatural da democracia.

O mito de que entrando para a União Europeia os países mudam, nomeadamente em relação aos seus medos, às suas culturas de vizinhança, adaptando o seu comportamento interno a uma espécie de matriz que a União Europeia lhes dá, não é bem assim

Há pouco disse que aprendemos com os últimos alargamentos. Não deixa de ser extraordinário que, mesmo a desfazer-se, a UE continue a pensar em integrar novos países antes de acomodar os que já fazem parte da União. 

Aprendemos, sobretudo com os últimos alargamentos, que houve precipitações, nomeadamente no escrutínio dos países completarem objectivamente determinadas condições. Fizeram-se erros. Penso que os alargamentos futuros não serão de natureza voluntarista e serão muito mais avaliados. Por outro lado, no caso dos países balcânicos há grandes fragilidades. O mito de que entrando para a União Europeia os países mudam, nomeadamente em relação aos seus medos, às suas culturas de vizinhança, adaptando o seu comportamento interno a uma espécie de matriz que a União Europeia lhes dá, não é bem assim. Os países entram e, mais do que se adaptarem fortemente, levam para dentro da União as suas especificidades e esse é um factor decisivo complexo. Mas, convém dizê-lo, o Reino Unido foi sempre um país muito favorável ao alargamento da União Europeia - o que não deixa de corresponder a um sentimento que a senhora Thatcher tinha desde o princípio. Talvez para diluir a União…

Em que altura esteve no Reino Unido?

Estive em Londres entre 1990 e 1994, testemunhei a queda de Thatcher e a subida de Tony Blair à liderança trabalhista. E tive o privilégio de assistir na Câmara dos Comuns ao discurso de despedida de Margaret Thatcher, um momento que fica para a vida. Naquele instante, toda a acrimónia que existia em relação a ela, não digo que tenha desaparecido por completo, mas atenuou-se: as as despedidas tornam os adversários mais simpáticos… Lembro-me de o deputado trabalhista Dennis Skinner ter comentado provocatoriamente num aparte, a propósito de Thatcher ser contra o Banco Central Europeu, que o que ela queria mesmo era ser presidente do BCE. E ela, com uma gargalhada, respondeu-lhe: “What a good idea!”.

Em Espanha há deputados que cospem uns nos outros, em França saem em massa a meio das sessões, em Itália andam quase à pancada. Só na Alemanha é que é uma pasmaceira, parecem alimentados a Lexotan…

Os debates tinham outra qualidade, lá e cá?

Dizem que sim, mas noutros tempos também por cá havia quem se portasse menos bem. Portugal até tem das Assembleias mais bem comportadas da Europa. Em Espanha há deputados que cospem uns nos outros, em França saem em massa a meio das sessões, em Itália andam quase à pancada. Só na Alemanha é que é uma pasmaceira, parecem alimentados a Lexotan… Mas é verdade, há menos motivações nobres para entrar na política. Há a sensação de que muita gente envereda hoje pela vida política não necessariamente pelas melhores razões.

Voltando à questão inicial: a menos de dois meses das eleições não sabemos que Europa vamos ter, quantos deputados, no que estamos a votar.

Se os ingleses acabarem por não ter eleições, porque a probabilidade de irem a eleições ainda existe - ainda que isso subverta muito o próprio processo eleitoral no Reino Unido. Afinal, com que interesse é que os eleitores britânicos vão a eleições, existindo uma expectativa de saída da UE a curto ou a médio prazo? É muito esquisito e pode dar resultados estranhos - a acontecer será uma espécie de representação fantasma, transitória e meramente teórica do Reino Unido no Parlamento Europeu. É uma situação muito anómala e a principal culpa é britânica. Os 27 fizeram o seu trabalho e fizeram-no bem, o problema é do processo decisório interno do Reino Unido e da incapacidade - por fragilidade objectiva do governo e da liderança do governo - de vender o acordo negociado. O que sempre pensámos foi que o governo tinha alguma segurança de o fazer passar.

A ideia das listas transnacionais, relançada por Emmanuel Macron, é uma boa ideia?

É uma ideia antiga. Diria que a ideia está próxima do que é o espírito europeu, só que é contraditória com um certo sentimento, em particular com uma tendência mais recente de sublinhar a dimensão nacional no plano europeu. Isto é, se estivéssemos num caminho para o federalismo europeu, se estivéssemos num tempo de euro-entusiasmo, essa possibilidade faria sentido. Mas estamos exactamente num tempo contrário, de refluxo, de maior nacionalismo dentro da União Europeia. Parece-me, por isso, contraditório. Penso que o tempo federal da Europa perdeu-se.

Alguns países irão apontar para comissários nomes antieuropeístas. Passaremos a ter uma União a destruir-se a partir de dentro?

As pessoas estão muito preocupadas com o equilíbrio dentro do Parlamento Europeu, que não me parece favorável ao antieuropeísmo, mesmo somando sectores diversos - extrema-esquerdas, extremas-direitas e outros quadros democráticos mais antieuropeístas pelas sua opções -, ainda que crie um grande grupo de deputados que vai dificultar a decisão. Mas para mim a grande questão é a da Comissão Europeia. Os comissários são escolhidos em diálogo, mas não estou a ver na lista dos comissários húngaros, por exemplo, nomes profundamente pró-europeístas. Na melhor das hipóteses podemos ter um comissário húngaro neutral na questão europeia, e isso vai introduzir no colégio de comissários uma realidade completamente nova. Para um órgão que é o elemento propulsor da legislação comunitária, o guardião dos tratados, aquele que define a leitura europeia e que tem o exclusivo de fazer propostas aos ministros, é evidente que um bloqueio interno pode provocar situações muito complexas e criar uma paralisia do sistema europeu.

Tudo isto poderá contribuir para um nível de abstenção mais ou menos elevado?

Depende de país para país. Para Portugal, tendo em conta que vai haver eleições legislativas em Outubro, as eleições europeias serão a chamada primeira volta das legislativas. As questões europeias no debate que aí se está a projectar são muito escassas ou, se quiser, de politiquice: saber se o governo utilizou bem ou mal os fundos - o governo vai dizer que utilizou bem e a oposição vai dizer que utilizou mal. Trata-se de questões europeias muito nacionais. Até porque, sejamos claros, entre os cabeças de lista dos principais partidos - e aí incluiria o Aliança, tendo em conta o respeito que tenho pelas ideias de Paulo Sande - há um consenso muito alargado relativamente à questão europeia. Vamos ter as questões da política interna a dominar o debate. Se isso vai ou não mobilizar as pessoas…

Portugal não é um país naturalmente europeu. Somos um país que abraça a Europa como forma de ancorar a democracia e por causa dos fundos

Mas essa não é uma forma limitada de olhar a Europa?

Para Portugal não. Portugal não é um país naturalmente europeu. Somos um país que abraça a Europa como forma de ancorar a democracia e o desenvolvimento após 1974, e que abraça também com alguma dimensão egoísta, isto é, a dos fundos. Isto não significa que não seja um abraço sincero, porque rapidamente os portugueses se converteram àquilo que são os princípios europeus - que, aliás, não são muito diferentes dos que estão plasmados na nossa Constituição. Acredito que há um sentimento de pertença relativamente à Europa, mas não somos europeístas pela mesma razão que os franceses ou os alemães, como os estónios ou os búlgaros não são pela mesmas razões dos belgas, dos holandeses ou dos luxemburgueses.

Fale-me mais sobre a visão portuguesa da Europa…

Os portugueses sempre consideraram, em primeiro lugar, que o Parlamento Europeu era uma instituição um bocadinho retórica e pouco prática, coisa que, de certa maneira, é um erro. Depois, achamos que a nossa representação no PE, pela dimensão que temos, é uma representação pequena, com um impacto escasso naquilo que é o processo decisório. Por estes motivos nunca olhámos para as eleições europeias como factor mobilizador. E não será agora, até porque nunca houve projectos contrastantes em relação à Europa que os cidadãos portugueses fossem chamados a escolher. Criou-se uma espécie de consenso automático e implícito da questão europeia, com excepção do PC e, durante algum tempo, do CDS-PP. De resto os portugueses estão felizes, como mostra o Eurobarómetro.

Ao contrário do Reino Unido, em Portugal a questão nunca foi referendada.

Não sou a melhor pessoa para falar disso, não voto em referendos por uma questão de princípio: acho que é uma forma caricatural da democracia. Mas está na Constituição… Penso que as pessoas não sentem a questão europeia como uma questão que as mobilize, um voto para um deputado europeu não é um voto num governo, um voto que vai mudar a sua vida. É um voto numa pessoa que vai para Bruxelas para um órgão que não pode ser dissolvido durante cinco anos e cuja accountability é muito escassa. Há uma grande distância, talvez até excessiva, entre o trabalho dos deputados europeus e a vida política nacional, que faz com que as pessoas não sintam muito o que estão a fazer em nome de Portugal - o que é pena, porque há deputados que estão lá a trabalhar muito bem, embora outros não façam rigorosamente nada.

Do bluff de Nice ao caso da "dona de casa". Pequenas grandes histórias da Europa por Francisco Seixas da Costa

Foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus durante mais de cinco anos. Tem, com certeza, mil e uma histórias desse tempo. Conte-me uma.

Há muitas histórias que magnificamos a posteriori e que na altura não tiveram para nós grande importância. Ainda ao almoço lembrava as reuniões quase clandestinas que fazíamos entre os dez países mais pequenos da União contra os cinco maiores para defender o nosso interesse em manter um poder decisório importante, quer ao nível dos votos no Conselho, quer no Parlamento Europeu. E, muitas vezes com bluffs completos, conseguíamos garantir uma posição.

Qual o seu maior bluff, lembra-se?

bluff mais completo que fiz alguma vez foi num momento muito complicado da negociação [do Tratado] de Nice, em que a posição portuguesa começou a ficar muito isolada, não obstante as tentativas do primeiro-ministro, António Guterres, para garantir um número mínimo de votos e de deputados ao Parlamento Europeu. A determinada altura fui para um corredor e comecei a escrever um texto, quando passa por mim um funcionário do Conselho que me pergunta o que faço ali. “Estou a preparar-me porque no caso de Portugal ter de abandonar e interromper o Conselho temos de ter preparada uma posição”, respondi “Mas Portugal vai interromper o Conselho?”, pergunta o outro surpreso. “Não, de maneira nenhuma, não nos passa isso pela cabeça. Mas não podemos deixar de ter uma posição preparada para esse cenário, e é preciso ter isso no papel”, digo. Dez minutos depois estava criado um pé de vento e o Guterres, perplexo, chama-me à mesa do Conselho a perguntar o que se passava. “Não sei de nada, não faço a mais leve ideia”. A seguir tive de fazer uma conferência de imprensa a dizer que não tinha conhecimento do tal papel de que se falava. A verdade é que depois as coisas se compuseram, não sei se em virtude ou não do tal papel que, afinal, não existia…

Também negociou a Agenda 2000, que incluía o quadro financeiro até 2006.

Lembro-me de um encontro com os alemães em que o secretário de Estado alemão me atira discretamente um papel dobrado, do outro lado da mesa. Eu, surpreendido, abro o papel e vejo um número. Estavam do nosso lado, além de mim, Jaime Gama e António Guterres. Estávamos a discutir números globais e aquele era o valor até onde os alemães, aparentemente, estavam dispostos a ir. Mostrei o papel a António Guterres e recordo-me de lhe ter pedido para fazer uma cara feia, para não revelar qualquer contentamento. O número estava já dentro do aceitável, mas, depois, António Guterres e Jaime Gama, com mais trigo duro, mais leite de vaca e outras concessões para os Açores conseguiram uma montanha de coisas mais. Tudo somado levou a um belíssimo resultado. E eu pude comprovar isso muitos anos mais tarde, numa conversa com um antigo secretário de Estado Sueco, que me disse: “Os portugueses serviram-se duas vezes”.

Também teve de fazer alguma diplomacia quando Mário Soares chamou dona de casa a Nicole Fontaine, que acabou eleita presidente do Parlamento Europeu.

Quando Soares foi para o Parlamento Europeu como cabeça de lista do PS foi convencido por alguns colegas socialistas a candidatar-se à presidência do PE, rompendo com aquilo que na altura era uma rotação entre o PPE e o PS europeus. Isso criou uma grande tensão e, mais do que isso, a circunstância de ele ter sido derrotado nessas eleições. Nós temos interesses permanentes a defender na Europa e, naturalmente, era preciso garantir que a pessoa que foi eleita não ficasse de pé atrás com Portugal. Portanto eu fui a Estrasburgo, falei com a senhora Nicole Fontaine, a nova presidente, tentei explicar o contexto em que essa atitude tinha sido tomada, no sentido de dulcificar a posição. Convidei-a para vir a Portugal. Ficámos com um contacto excelente a partir aí. Aprendi um dia com Jaime Gama, que tem uma experiência ímpar como Ministro dos Negócios Estrangeiros, que não se faz uma política externa com base em ressentimentos.

Quem é que não faz nada?

Alguns [risos]. As estatísticas estão feitas e os relatórios publicados, basta olhar para eles.

Por que motivo considera um referendo uma forma caricatural da democracia?

É uma perspectiva minha há muitos anos. Penso que são formas simplificadas de auscultação da opinião pública: normalmente as pessoas têm uma leitura muito reduzida do que são as opções e são por vezes motivadas a votar mais em função de quem os propõe do das ideias que estão a jogo. Há uma ideologização muito forte no referendo. Sou um grande crente na democracia representativa e escolho deputados com um programa de um partido e esse partido, representado na Assembleia da República, define as leis por mim. E sinto-me bem representado. Para contrabalançar, há um outro referendo de cinco em cinco anos, que é a eleição do presidente da República.

Admito que sou elitista na formulação da vontade democrática. Continuo a pensar que há pessoas que são tendencialmente mais qualificadas do que cidadão normal para tratar de determinados assuntos, o resto são simplificações, fake news, mitos

As pessoas estão mais esclarecidas numa eleição do que num referendo? Os riscos não são iguais? E não poderão sentir-se mais representadas num referendo do que na Assembleia da República?

Os referendos são sempre uma coisa muito emocional. Mas admito que sou elitista na formulação da vontade democrática. Continuo a pensar que há pessoas que são tendencialmente mais qualificadas do que cidadão normal para tratar de determinados assuntos, o resto são simplificações, fake news, mitos. Devo dizer-lhe que estava no governo quando foi o referendo sobre o aborto e fui de carro levar a minha mulher até ao local de voto, fiquei no carro à espera, e até era tendencialmente favorável. Na Suíça, por exemplo, é diferente, porque existe uma cultura de apropriação e aprofundamento. Cá era capaz de aceitar o referendo a um nível mais local, sobre assuntos que afectam a vida de uma comunidade, como rotundas e cortes de estradas e coisas assim.

Na última entrevista que lhe fiz, António Costa tinha acabado de ser eleito. Estava céptico quanto ao novo governo. Como o vê hoje?

Passados estes anos, e para simplificar as coisas, reconheço que António Costa tinha razão e eu não. Pensei que a meio do processo houvesse uma ruptura e que o governo não se mantivesse, porque o grande factor que levou à constituição da geringonça foi o medo do regresso da direita. Esse foi o cimento. Com a passagem do tempo, o esgotamento daquilo que foram as concessões feitas pelo partido socialista…

O Partido Socialista teve de fazer grandes concessões? Quais?

Teve de fazer algumas, em matéria de questões salariais, por exemplo, pequenas cedências que estão, aliás, nos acordos que foram sendo assinados. A certa altura pensei que para o Partido Comunista e para o Bloco de Esquerda pudesse não valer a pena continuar e forçassem eleições. Mas só se forçam eleições ou se rompe um acordo ou se deixa cair o partido que se apoia no parlamento na perspectiva de a alternativa ser favorável. E quer o PC quer o Bloco perceberam ao longo destes tempos, mesmo nos tempos de maior crise, nomeadamente com a questão dos incêndios ou a questão de Tancos, que, apesar de tudo, ganhavam mais em manter o apoio ao Partido Socialista.

Porquê?

Porque, em particular à luz daquilo que é a perspectiva dos seus apoiantes, embora o PS não correspondesse àquilo que eles pensavam exactamente, no fundo era-lhes confortável face a certo tipo de políticas. Era melhor isso do que ter um partido hostil ou do que, de repente, numa reviravolta eleitoral recolocar no poder um ou dois partidos que pudessem reproduzir o que tinha sido o tempo da troika, altamente traumático para o PC e para o Bloco. Não apenas pelo que lá se passou, mas pela circunstância de o PC e o Bloco terem estado ao lado da direita a votar a queda do governo Sócrates, em 2011. Isso foi uma opção arriscada e muitos militantes desses partidos - não quero falar em nome deles, posso estar enganado - terão olhado essa opção como uma escolha discutível, tendo em atenção o que aconteceu depois. Tudo isto levou à constituição da geringonça e, mais do que isso, à sua sobrevivência até agora.

Um parêntesis: na sua opinião o governo Sócrates podia/devia ter continuado?

Podia ter tido a oportunidade de esgotar mais um capítulo. Não sabemos se o pacote que estava a ser negociado ia resultar - é possível e provável que fosse mais um de um sequência - mas não lhe foi dada essa hipótese. Admito, no entanto, que o governo estava esgotado.

Voltando ao governo de António Costa…

A geringonça sobreviveu bastante melhor do que eu esperava e António Costa conseguiu fazer uma coisa que eu acreditava ser uma quadratura do círculo impossível que era uma firewall, uma divisão objectiva entre o cumprimento das obrigações europeias em matéria macroeconómica, por um lado, e um conjunto de políticas que apontavam no sentido daquilo que eram os interesses dos seus parceiros, por outro. É evidente que tudo isto também tem a ver com a conjuntura, as coisas correram bem na Europa, o Banco Central Europeu manteve as políticas de estímulo, Portugal teve oportunidade de, lentamente, ir recuperando posições, nomeadamente em matéria dos mercados. Isso teve efeitos práticos na renovação sucessiva dos empréstimos, com baixa tendencial da taxa de juro média. Em particular correu mal aos arautos do diabo do que aí vinha e que, afinal, não veio.

É preciso dizer que somos um país muito frágil, como andamos numa espécie de navegação à vista, por vezes as coisas correm muito bem, por vezes correm muito mal, e vive-se de estados de alma

Se lhe contassem que noutro país tinha existido a questão dos incêndios, de Tancos, das greves… Que leitura faria desse governo?

Tem razão, não acreditava. Mas também não acreditava se me dissessem que tinham um presidente da República como Marcelo. E é por isso que acho que, apesar de tudo, se tivéssemos um presidente que pudesse agravar esse conjunto de factores a situação seria, provavelmente, diferente. A circunstância de termos num órgão essencial e com grande legitimidade democrática um presidente que teve um comportamento desdramatizante, não obstante a seriedade dos avisos que deu, contribuiu muito para a situação em que nos encontramos. Além de que temos isso, mas também temos o Portugal feliz, o Portugal que ganhou o Euro 2016, o Portugal que ganhou a Eurovisão 2017. Tudo somado, houve um momento em que parecia que íamos numa onda de grandes feitos. É preciso dizer que somos um país muito frágil, como andamos numa espécie de navegação à vista, por vezes as coisas correm muito bem, por vezes correm muito mal, e vive-se de estados de alma.

Se todos estes acontecimentos se tivessem passado no tempo de Cavaco Silva teria sido diferente?

Com Cavaco este governo já não existia, não teria resistido à pulsão dos incêndios. Por outro lado, as consequências no plano militar, no caso de Tancos, teriam sido diferentes. Marcelo Rebelo de Sousa tem um estilo de apaziguamento. Tem uma intervenção muito diferente dos seus antecessores e uma magistratura de influência muito eficaz, sem nenhuma dificuldade de transportar para a política toda a sua popularidade. E António Costa acomoda-se. Mas Marcelo também é um presidente condicionador neste diálogo e neste estabelecimento de consensos.

Nas últimas presidenciais não sabia em quem ia votar.

Sim, não votei em Marcelo Rebelo de Sousa. Provavelmente votarei nele nas próximas eleições - acredito que se recandidatará e, se tudo correr normalmente, terá o meu voto. Mas não voto em Marcelo porque ele ganha, quando votei noutro candidato em 2016 tinha quase a certeza de que iria perder, como aconteceu. Votarei em Marcelo porque é nele que acho que devo votar.

Em quem votou em 2016?

Em Sampaio da Nóvoa.

Marcelo é melhor para o PS e para António Costa?

É uma vantagem para os dois.

Há pouco falou em accountability. Marcelo, como Costa, têm dito que é preciso investigar, doa a quem doer. Mas depois não há uma responsabilização.

Bem, para isso é que existem as comissões de inquérito parlamentares, para isso é que existe o Ministério Público. Do que nos podemos queixar não é tanto do apuramento de responsabilidades, mas da rapidez do apuramento de responsabilidades. Não caiu a ministra da Administração Interna depois dos fogos? Não caiu o ministro da Defesa depois de Tantos? Confesso que tenho uma imensa perplexidade com o que se passa com o caso de Tancos, porque não me parece que tenha uma complexidade tal que justifique que passado este tempo as coisas ainda não estejam resolvidas. Por outro lado, parece-me altamente perigoso, do ponto de vista democrático, esta ideia da Assembleia da República da acareação de generais nas comissões de inquérito. Isto é algo que, a ir avante, configura uma falta de sentido de Estado muito grande.

Porquê?

Configura uma falta de respeito muito grande pela instituição militar.

E o que aconteceu dentro da instituição militar?

Há meios e mecanismos para fazer as coisas sem criar o constrangimento a que uma acareação pode levar. Uma acareação é um elemento que traz sistematicamente a fragilização de uma das partes e as coisas devem ser feitas no plano judicial e no plano político, mas sem irmos a pontos que fragilizem a autoridade militar. Estamos a brincar com coisas muito sérias.

O que pode acontecer?

Não acontece nada em particular, até porque em Portugal nunca acontece nada. Mas pode acontecer a fragilização da própria instituição militar junto da opinião pública, que pode julgar a instituição militar culpada, em particular pelo facto de internamente não ter sabido tirar consequências rápidas. Mas entretanto já mudou muita gente. Não acho positivo algo que possa enfraquecer a imagem dos militares perante a sociedade civil.

Não tenho um significado negativo para o adjectivo hábil. Acho que a habilidade faz parte das qualidades das pessoas, e António Costa foi muito hábil

Se tivesse de resumir este mandato de António Costa, como o faria?

Não tenho um significado negativo para o adjectivo hábil. Acho que a habilidade faz parte das qualidades das pessoas, e António Costa foi muito hábil. É uma pessoa com grande experiência política e com uma credibilidade muito forte junto dos seus parceiros, em particular junto do Partido Comunista. Nunca foi comunista, o que facilita muito o diálogo. E o Partido Comunista sabe que os compromissos de António Costa são para levar a sério e António Costa sabe que os compromissos do PC são para levar a sério. Digo isto e estou a excluir o Bloco do raciocínio. Penso que António Costa soube encontrar ao longo deste tempo o registo certo.

O Bloco é um partido menos maduro do que o Partido Comunista. Há ali uma tentação de governo que não se vai realizar, ponto

Porque exclui o Bloco de Esquerda do raciocínio?

Porque o Bloco é um partido menos maduro do que o Partido Comunista, tem menos história, vive num processo afirmação que lhe cria clivagens internas - que, aliás, tiveram expressão prática. Penso que há ali uma tentação de governo que não se vai realizar, ponto. É um parceiro - não quero ser desagradável - menos confiável do que o Partido Comunista. O PC é o mais antigo partido português, o segundo é o MRPP, estamos a falar de instituições. Historicamente o PC portou-se sempre de forma muito clara na sua relação com o PS: “o que eu digo é o que eu quero dizer”. Mário Soares sabia isso, Jorge Sampaio sabe isso, António Costa sabe isso. Julgo saber que quando foi das conversas para a formação da geringonça o PC chegou a dizer que dispensava um documento escrito, e creio que o sentimento do lado do PS não foi querer coisas escritas, foi mais pela homologia com os outros parceiros.

Portugal tem 23 partidos e mais esperam autorização do Tribunal Constitucional…

…Muitos desses partidos, e o MRPP é um caso, são partidos que desaparecem durante quatro anos e só surgem nas eleições, na maioria dos casos, vamos ser claros, para ganhar alguns votos na base dos quais têm depois um apoio financeiro para a sua subsistência. Acabam por ser partidos de oportunidade. Mas a manutenção desses partidos é uma curiosidade constitucional. Fiz parte de um que se auto-extinguiu, o Movimento de Esquerda Socialista, o que foi um gesto bonito, ainda por cima com um jantar - ao qual não pude vir porque estava na Noruega. Estes partidos são uma relíquia do tempo revolucionário, existem para aparecer naqueles spots televisivos dos tempos de antena e não têm grande sentido.

Os novos partidos são mais interessantes

Queria falar do “velhos” partidos, mas também dos novos.

Os novos partidos são mais interessantes. A questão está em saber, em primeiro lugar, se este modelo de representação parlamentar quase estático que existe desde o 25 de Abril se vai manter e, em particular, se os novos partidos têm real consistência e traduzem algo novo em relação à vida política portuguesa. Esse é um teste que estas eleições vão fazer, porque estes novos partidos são todos à direita, não há nenhum à esquerda, o que também traduz uma crise na representação política da direita e, em particular, a luta fraternal entre a ala social democrata e a ala mais liberal do PSD. Por outro lado, a espaços surge quem tente explorar as inseguranças, os medos, tentações de natureza populista, além das caricaturas daqueles grupos que estão ilegalizados.

Por exemplo?

O debate sobre armas de caça promovido pelo CDS-PP é uma forma, diria quase irónica, de trazer algo que está no imaginário da direita caçadora para o debate politico. Será que ter ou não armas de caça é um problema que existe na sociedade portuguesa? Há alguma ameaça aos caçadores que obrigue a um plano a que leve um partido a meter-se por aí? Isto traduz uma tentaçãozinha de, através da caça, e porque também lá está a palavra arma, levar um partido que no espectro político está mais à direita a tratar desse tipo de questões.

É assim tão tortuoso, acha?

Ai, acho. Só pode ser por via tortuosa, porque por via desportiva não é seguramente, uma vez que essa não é uma questão [risos].

Costa ganha ou não as próximas legislativas?

Ganha, ganha. Não me parece haver condições para uma maioria absoluta, é esse o meu feeling.

É praticamente inevitável que haja uma geringonça dois. Não haverá uma coligação, pessoas do Bloco ou do PC no governo PS

Haverá uma reedição da geringonça?

É praticamente inevitável que haja uma geringonça dois. Não haverá uma coligação, pessoas do Bloco ou do PC no governo PS, mas terá de existir uma qualquer forma que permita ao Partido Socialista governar em troca dos apoios que recebe. Vai ser preciso uma grande imaginação para encontrar um conjunto operativo de medidas nesse novo protocolo, uma vez que têm de ser importantes para os parceiros e inócuas para não ter efeitos graves nos compromissos europeus.

Imagino que no Brasil muita gente que votava Lula foi capaz de votar Bolsonaro. Pessoas que vivem em condições de insegurança votam em quem lhes oferecer segurança

Continuamos a falar em esquerda e direita, apesar de todas as mudanças. Infantilizou-se o debate político em torno “das cores”?

É um bocadinho caricatura, porque há factores novos que baralham a questão. Sempre fui grande fã da esquerda e da direita e da manutenção das águas separadas, mas o populismo veio introduzir uma nova nota. É uma asneira falar-se em populismo como conceptualização única, porque há populismo à esquerda e à direita. É por isso que um cidadão francês que vive num bairro social estigmatizado na periferia de Paris tanto pode votar no partido comunista como em Marine le Pen. Hoje há questões que não são de esquerda nem de direita, são de natureza transversal. Imagino que no Brasil muita gente que votava Lula foi capaz de votar Bolsonaro. Pessoas que vivem em condições de insegurança votam em quem lhes oferecer segurança. Por isso precisamos de maior sofisticação na mensagem política e na abordagem política. Mas continuo a achar que as categorias fazem sentido nas grandes questões. Curiosamente, já não fazem tanto sentido ao nível das grandes divisões internacionais

Foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus durante mais de cinco anos. Tem, com certeza, mil e uma histórias desse tempo. Conte-me uma.

Há muitas histórias que magnificamos a posteriori e que na altura não tiveram para nós grande importância. Ainda ao almoço lembrava as reuniões quase clandestinas que fazíamos entre os dez países mais pequenos da União contra os cinco maiores para defender o nosso interesse em manter um poder decisório importante, quer ao nível dos votos no Conselho, quer no Parlamento Europeu. E, muitas vezes com bluffs completos, conseguíamos garantir uma posição.

Qual o seu maior bluff, lembra-se?

O bluff mais completo que fiz alguma vez foi num momento muito complicado da negociação [do Tratado] de Nice, em que a posição portuguesa começou a ficar muito isolada, não obstante as tentativas do primeiro-ministro, António Guterres, para garantir um número mínimo de votos e de deputados ao Parlamento Europeu. A determinada altura fui para um corredor e comecei a escrever um texto, quando passa por mim um funcionário do Conselho que me pergunta o que faço ali. “Estou a preparar-me porque no caso de Portugal ter de abandonar e interromper o Conselho temos de ter preparada uma posição”, respondi “Mas Portugal vai interromper o Conselho?”, pergunta o outro surpreso. “Não, de maneira nenhuma, não nos passa isso pela cabeça. Mas não podemos deixar de ter uma posição preparada para esse cenário, e é preciso ter isso no papel”, digo. Dez minutos depois estava criado um pé de vento e o Guterres, perplexo, chama-me à mesa do Conselho a perguntar o que se passava. “Não sei de nada, não faço a mais leve ideia”. A seguir tive de fazer uma conferência de imprensa a dizer que não tinha conhecimento do tal papel de que se falava. A verdade é que depois as coisas se compuseram, não sei se em virtude ou não do tal papel que, afinal, não existia…

Também negociou a Agenda 2000, que incluía o quadro financeiro até 2006.

Lembro-me de um encontro com os alemães em que o secretário de Estado alemão me atira discretamente um papel dobrado, do outro lado da mesa. Eu, surpreendido, abro o papel e vejo um número. Estavam do nosso lado, além de mim, Jaime Gama e António Guterres. Estávamos a discutir números globais e aquele era o valor até onde os alemães, aparentemente, estavam dispostos a ir. Mostrei o papel a António Guterres e recordo-me de lhe ter pedido para fazer uma cara feia, para não revelar qualquer contentamento. O número estava dentro do aceitável, mas, depois, António Guterres e Jaime Gama, com mais trigo duro, mais leite de vaca e outras concessões para os Açores conseguiram uma montanha de coisas mais. Tudo somado levou a um belíssimo resultado. E eu pude comprovar isso muitos anos mais tarde, numa conversa com um antigo secretário de Estado Sueco, que me disse: “Os portugueses serviram-se duas vezes”.

Também teve de fazer alguma diplomacia quando Mário Soares chamou dona de casa a Nicole Fontaine, que acabou eleita presidente do Parlamento Europeu.

Quando Soares foi para o Parlamento Europeu como cabeça de lista do PS foi convencido por alguns colegas socialistas a candidatar-se à presidência do PE, rompendo com aquilo que na altura era uma rotação entre o PPE e o PS europeus. Isso criou uma grande tensão e, mais do que isso, a circunstância de ele ter sido derrotado nessas eleições. Nós temos interesses permanentes a defender na Europa e, naturalmente, era preciso garantir que a pessoa que foi eleita não ficasse de pé atrás com Portugal. Portanto eu fui a Estrasburgo, falei com a senhora Nicole Fontaine, a nova presidente, tentei explicar o contexto em que essa atitude tinha sido tomada, no sentido de dulcificar a posição. Convidei-a para vir a Portugal. Ficámos com um contacto excelente a partir aí. Aprendi um dia com Jaime Gama, que tem uma experiência ímpar como Ministro dos Negócios Estrangeiros, que não se faz uma política externa com base em ressentimentos.

Sei que um dos países onde gostou mais de trabalhar foi no Brasil. Como olha para o Brasil de Bolsonaro?

Hoje há um problema grave de ingovernabilidade no Brasil. Bolsonaro ganhou as eleições ao propõe um Brasil mais seguro e menos corrupto, mas não tem uma máquina política forte a apoiá-lo. A vitória de Bolsonaro foi concomitante com o enfraquecimento do PMDB, actual MDB (Movimento Democrático Brasileiro), um partido fundamental no esqueleto institucional brasileiro em democracia. Esta debilidade eleitoral do PMDB/MDB veio alterar o padrão de negociação de apoios ao governo dentro do parlamento. Acresce que a equipa Bolsonaro esta a gerir as coisas com imensa falta de habilidade, está a ter grandes dificuldades em aprovar medidas legislativas, que têm de passar por um Congresso que não controla: reforma da previdência, medidas de natureza judicial e de segurança, etc. Porque Bolsonaro optou por não contar com os partidos para a formação do governo, como era tradicional (cada governo brasileiro tinha, quase sempre, mais de dez partidos representados), há hoje uma quase revolta no Congresso, mesmo dentro do seu próprio partido, o novo PSL. Isto estende-se também à distribuição de outros lugares no Estado e empresas publicas, onde os militares hoje predominam. Bolsonaro decidiu fazer um governo desprezando os partidos e privilegiando as correntes de interesses: evangélicos, ruralistas, defensores da ordem e da militarização, etc. Ora, isto não está a funcionar. Mesmo uma “estrela” política como é o ministro da Fazenda, um liberal, começa a confrontar-se com o proteccionismo tradicional de muitos meios empresariais que tinham apostado em Bolsonaro. Os próximos meses vão ser um teste à capacidade do presidente de conseguir aprovar legislação para dar corpo ao seu programa. Há, além disso, uma oura coisa lamentável: Bolsonaro e a sua equipa mostraram uma impreparação muito grande e começa a ser notório, pelas piores razões, o destaque que é dado aos filhos do presidente nas decisões políticas, numa lógica muito pouco democrática.

Até parece que está a falar de outro governo, aqui bem mais perto, agora que fala na família.

Não acho agradável o que por cá se passa, mas é quase inevitável. Cada vez mais a política partidária é um mundo mais circunscrito a pequenos círculos, os deputados e governantes vivem ao lado uns dos outros, os políticos convivem nos mesmos grupos, é gente que frequenta os mesmos lugares. Mas não é um cenário ideal, concordo.


Esta entrevista integra o Especial Europa 2019 do SAPO24, porque nunca a compreensão da identidade europeia foi tão importante na história do projeto europeu.