“A escolha de economista e antigo professor de Finanças Públicas para prefaciar um escritor como Aquilino Ribeiro e uma obra com a importância de Geografia Sentimental irá certamente levantar dúvidas aos espíritos mais conservadores”. Começa assim o prefácio assinado por Cavaco Silva à nova edição de “Geografia Sentimental”, livro de Aquilino Ribeiro, publicado em 1951, e também com a nota que ele próprio, prefaciador, compreende as dúvidas e delas deu conta aos editores. Mas, a intenção permaneceu e, no próximo dia 25 de maio, a nova edição é apresentada publicamente.

Aquilino Ribeiro era um filho da terra que retratou, a Beira Alta. Nasceu em 1885, no Carregal de Tabosa, concelho de Sernancelhe, e teve uma vida aventurosa, tendo estado preso antes da implantação da República, associado ao regicídio, e mais tarde, de novo preso por contestação ao Estado Novo. Casou duas vezes, teve dois filhos,. Escreveu folhetins, contos, romances e memórias. Morreu em 1963 e a censura deu instruções claras para as homenagens que lhe eram prestadas não serem notícia no jornal. Em 2007, aquando da decisão de transladação dos restos mortais para o Panteão Nacional, durante o primeiro mandato presidencial de Cavaco Silva, houve quem se indignasse e o chamasse de terrorista. A petição posta a correr intitulava-se "Terrorismo não deve ter honras de Estado" mas, mesmo entre os que a assinaram, não foram postos em causa os seus méritos literários.

Publicado originalmente em 1951, Geografia Sentimental é um retrato da Beira Alta onde Aquilino nasceu e cresceu, dos seus «lugares, seres e coisas» e revela como a natureza moldou os beirões, fazendo parte da sua identidade.

Cavaco Silva nasceu a sul, no Algarve, mas são as suas ligações a Viseu e, nas suas palavras, à terra natal de Aquilino Ribeiro, que lhe permitiram “ultrapassar a relutância inicial e aceitar”. Por causa disso releu a obra que tinha lido por obrigação escolar há várias décadas e encontrou-se no olhar de Aquilino no que respeita à geografia. “Embora sentimental, o livro não deixa de ser uma geografia e, rapidamente, me veio à memória a minha juventude de algarvio e a grande atração que sempre senti pela circunstância geográfica. Olhando ao longe, pensava que haveria mais mundo que eu sonhava descobrir”.

Mais à frente, o ex-presidente da República ensaia mesmo um título alternativo para o livro de Aquilino, a propósito daquele que é o eixo da viagem pela qual o autor nos leva. “O livro tem um fio que o conduz, do princípio ao fim: o rio Vouga. Podia mesmo chamar-se A viagem de um rio”.

A primeira parte do prefácio é dedica às suas ligações á região retratada nos vários ciclosa políticos que viveu. “Estou convencido que tenho alguma responsabilidade, em particular pela minha ação como Primeiro-Ministro, numa mudança profunda nessa geografia (...) O interior da Beira Alta de Aquilino, na primeira metade do século XX, não era radicalmente diferente daquele que vi com os meus olhos quando fiz as primeiras incursões pelo interior enquanto candidato a Primeiro-Ministro. Fui testemunha de um isolamento que ia muito além da mera questão dos acessos, testemunha de um Portugal em que as assimetrias entre o litoral e as serras do interior redundavam numa profunda e inaceitável desigualdade de oportunidades (...) Durante os dez anos em que liderei o Governo, fomos derrubando muros muito mais dolorosos do que o da simples geografia”.

Cavaco Silva continua a sua memórias num tempo futuro, quando regressou à região na condição de Presidente da República. “Nas Terras do Demo, brotou da terra uma nova energia. Os castanheiros centenários passaram a ser reflexo de uma identidade orgulhosa”.

Nas passagens que seleciona, Cavaco Silva escolhe a que remete para os excessos humanos sobre a natureza quando Aquilino alerta para “o desbarato do arvoredo devido em boa parte ao incremento que tomou a construção civil”. “Mais atual não podia ser”, concluí o prefaciador.

“Aconselho o leitor a entrar no sentimento desta Geografia tão fascinanye que o seu símbolo mágico será o senhor Ladislau Lima de Saúde, um africano de Mocajuba (lá para Angola) que caminha na neve, sem saber já de onde veio, nem saber ainda para onde vai”.

A finalizar, recorda o discurso de 9 de junho de 2015 em Lamego. “A experiência destas terras do interior é uma lição para País: temos de ultrapassar as dificuldades, de erguer a cabeça e seguir em frente”.