É médico, maçon e viveria feliz com três coisas: livros, cinema e música. Ele próprio canta - e nesta entrevista também o ouvimos cantar o fado de Coimbra -, aprendeu na faculdade, onde fez amizade com Zeca Afonso. Se não fosse Germano de Sousa, aliás, talvez a canção "Os Vampiros" nunca tivesse existido.
Dono de um dos maiores laboratórios de análises clínicas do país, foi bastonário da Ordem dos Médicos, tempo em que viu passar quatro ministros da Saúde. A lei de bases que existe não é a que defende, e acredita que o SNS precisa de várias reformas, passados quase 50 anos.
Açoriano, "fez a guerra" no Ultramar, em Angola, e chegou a ser preso pela PIDE e interrogado na António Maria Cardoso por um inspector que não esquece. Foi pelo 25 de Abril que começámos esta conversa, em que Germano de Sousa confessa ter ainda muito para fazer. Embora agora, como diz parafraseando o ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, que conheceu nas Conferências do Estoril, hoje esteja mais para cerejeiro. "Cerejeiro?!" "É, sou sempre a cereja em cima do bolo" (convidado para encerrar tudo o que é conferência).
Estamos a caminhar para o cinquentenário da Revolução. Onde estava no 25 de Abril, como perguntava Baptista-Bastos?
No 25 de Abril estava exatamente em Cascais. Soube eram cinco da manhã, telefona-me o meu querido amigo Zé Niza [compositor de "E depois do Adeus"], que já morreu, a dizer: "Eh pá, está uma revolução na rua". Vai brincar com outro, respondi, e virei-me para o outro lado a dormir. Só que pouco depois liguei-lhe: "Estás a falar a sério?"
"Só uma vez é que tive de puxar de uma pistola - andávamos armados com uma Walther -, ainda dei uns tiros"
Esteve no Ultramar?
Fiz a Guerra. Fui oficial médico no Luso, hoje Luena, onde estava o comando da zona militar leste. E havia aí um hospital de frente, uma enfermaria, o nome que se dava ao hospital militar, conexo com o hospital civil. Fui para lá com um batalhão e fui colocado no hospital. Nunca trabalhei tanto na vida, quase 24 horas por dia. Fazia de tudo; ao mesmo tempo que tinha o laboratório a meu cargo dava consultas - e havia 100 pessoas para ver por dia -, fazia transfusões, cirurgias... Havia sempre coisas para fazer. Do ponto de vista médico foi uma experiência notável, mas também muito dura. Não me arrependo, foi excecional. Do ponto de vista militar havia vários perigos. As nossas companhias estavam todas ao longo da linha de caminhos-de-ferro de Benguela, que ia desde o Catanga até Moçâmedes. E estávamos ali no meio, as companhias dispostas ao longo da linha, quase até Henrique Carvalho. E de vez em quando éramos atacados ou o comboio era atacado, coisa que não corria muito bem, fazia-me azia.
Andava armado?
Tinha uma escolta. Os médicos eram muito precisos nessa altura, tínhamos uma escolta de um soldado e um cabo ou coisa assim. Só uma vez é que tive de puxar de uma pistola - andávamos armados com uma Walther -, ainda dei uns tiros, mas, felizmente, não aconteceu nada, acho que não matei ninguém.
Em que situação, pode contar?
Íamos dentro do comboio e o comboio continua a andar. À frente do comboio iam os rebenta-cargas, umas carruagens pequenas, muito pesadas, e quem ia lá dentro ia agarrado às cadeiras por uns cintos. Quase que dava mais jeito ir no rebenta-minas, porque se punham uma mina debaixo do comboio, aquilo ia pelos ares. Cheguei a preferir ir à frente. Muitas vezes as minas não eram rebentadas pelo peso do comboio ou do rebenta-minas, eram acionadas à distância. Nunca apanhei uma mina, mas vi descarrilamentos provocados pela explosão. Fui atacado duas vezes, uma das vezes ia fazer uma autópsia juntamente com um colega meu, José Carlos Teixeira de Sousa. Na ida para lá houve um ataque a tiro ao comboio, morreram várias pessoas, angolanas locais. Nós tivemos sorte, não nos aconteceu nada. Sabe, era a zona onde a UNITA estava, e o MPLA começou a entrar por ali adentro, eram rivais...
Imagino que também tivesse de os tratar, não?
Lembro-me de uma vez ter internado um guerrilheiro do MPLA; eu estava na enfermaria, no gabinete médico, e a certa altura começo a ouvir um barulho. Fui ver e era um enfermeiro da UNITA (percebemos depois), a tentar afogar o do MPLA. Era um ambiente de guerra sui generis, porque estávamos numa terra para onde fomos de muito má vontade e demos com esta rivalidade extrema naquela zona. Quando o MPLA começou a entrar foi-se tornando cada vez pior. Era uma guerra dura. Para mim, médico, era terrível, via os meus amigos saírem de manhã para a guerra e depois tinha de lidar com eles estropiados pelas minas, sem pernas, corpos a que tinha de fazer autópsia. Foram dois anos difíceis.
Como recebeu a notícia de que teria de ir para o Ultramar, para Angola?
Repare, eu estava a todo o momento à espera. O curso de Medicina tinha sete anos, e abriu um concurso para internato geral, que na altura se chamava estágio, fui terceiro classificado. Quando vou tomar posse os tipos pedem imensa esculpa, mas a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado] proibi-os de me aceitar - eu era um perigoso político, tinha sido dirigente académico. A PIDE fazia isto continuamente, vingava-se. Eu dava-me com gente do Partido Comunista, da oposição, e sou imediatamente punido. Ainda fui para a António Maria Cardoso, onde fui interrogado por um inspetor - ainda me lembro do perfume dele, um perfume de prostituta -, o inspetor Sacchetti. Uma das coisas de que me acusava era de não ser nacionalista. E eu perguntava, "mas o que é isso de ser nacionalista? Sou patriota, mas nacionalista não sei o que é".
"Nos Açores o mar é o infinito. Dá para pensar e, ao mesmo tempo, é uma prisão"
Trataram-no mal?
Não, um interrogatório seco, mas nada de mais. Porque, estou convencido, apesar de tudo eu não era assim tão perigoso. Logo a seguir chamam-me, e já sabia qual era o meu destino. Portanto, não me deixaram acabar a especialidade, nem sequer começar. Pouco tempo depois recebi a carta para ir a Mafra, estive um ano em Tomar e a seguir fui para Angola. Eu tinha casado há pouco tempo, a minha mulher estava grávida, e resolve ir ter comigo. Eu, "não venhas, não venhas", mas sabe como são as senhoras, o mais difícil que há de convencer, de maneira que meteu-se no avião e foi ter comigo. Dava aulas no Luso, onde havia um liceu. Só que havia um problema, como estava de seis meses de gravidez ninguém a queria trazer no avião para Luanda. Conclusão, tive lá a filha e o parteiro fui eu - vinha da escola de Coimbra, era, apesar de tudo, quem tinha mais prática de partos. E hoje trabalha aqui comigo, é médica e também professora universitária.
Como os seus filhos...
Sim, são ambos médicos, quer o meu filho, quer a minha filha. Patologistas.
Como e quando é que decidiu que queria ser médico, recorda-se?
Eu era açoriano, miúdo, 17 anos. Tinha um médico na família, um homem da política e, ao mesmo tempo, diretor dos Hospitais Civis... Mas não foi por isso. Sempre quis duas coisas: ser útil aos outros e ser médico, era a profissão que queria desde miúdo. Como gostava muito de Biologia, tudo se conjugou. Depois, sabe, nos Açores, naquela altura - e ainda hoje - o mar é o infinito. Dá para pensar e, ao mesmo tempo, é uma prisão. Eu imaginava muito o que seria a minha via como médico, num sítio qualquer, dava para a gente sonhar... Tudo isso junto fez-me escolher uma profissão que, se tivesse outra vez 17 anos, voltaria a escolher.
Já alguma vez tinha saído dos Açores, até ir para a Faculdade?
Não. Acabei o 7.º ano e era a primeira vez que saía dos Açores.
Como veio para o continente?
Vim de avião, um avião militar - porque na altura o preço dos bilhetes de avião [comercial] eram caríssimos, e eu tinha esta facilidade. De maneira que vim num avião militar para Lisboa.
E quando chegou a Lisboa, como lhe pareceu a cidade?
Fiquei admirado. Imagine o que é sair da pacatez a que estava habituado em Angra do Heroísmo - os meus pais estavam na Terceira, eu estava na Terceira - e dar com esta cidade. Que também era provinciana, mas a mim, miúdo, que não fazia ideia do mundo, deixou-me muito admirado. Estive em Lisboa dois ou três dias e fui para Coimbra, onde todos os açorianos nessa altura iam estudar. Achei Coimbra notável. Era um campus universitário. Fui diretamente para a minha república, a Real República Corsários das Ilhas, só de açorianos e que tinha um continental adotado.
Quem era o continental?
O corsário adotado era o Carlos Candal [fundador do PS]. Quando foi eleito presidente da Associação Académica de Coimbra oferecemos-lhe uma caixa de charutos, e foi a partir daí que passou a andar sempre de charuto na boca, nunca mais largou. Ficou com o apodo de "caga-fogo" [ri].
Estava a contar as suas primeiras impressões à chegada a Coimbra...
A minha entrada em Coimbra é muito engraçada. Era uma cidade fria, um frio a que eu não estava habituado - fazia frio que até chateava. Saí da estação, aquela estação que fica no centro de Coimbra, peguei na minha malita e meti-me num táxi. Sentia-me infeliz, é aquela coisa, e o motorista vira-se para mim e pergunta: "Para onde vai o xôtor?" Sôtor é coisa que ainda não sou, digo eu. "Aqui em Coimbra tudo o que é universitário é doutor", responde ele. E lá fui para a república. Imagine o que é estar sozinho e chegar a uma casa onde temos amigos do liceu, gente das nossas ilhas; nessa altura, mais do que hoje, constituíamos uma comunidade à parte, digamos assim. Senti-me bem, e a partir daí integrei-me naquela vida académica de então. Depois, caí em plena crise académica, que começou nos anos 60, sou dirigente do Conselho de Repúblicas, meto-me na segunda crise - porque há uma crise de que se fala pouco, a de 64/65. Já não estou na crise de 68/69 porque, entretanto, tinham-me mandado fazer turismo para Angola.
Em Coimbra teve tempo para tudo, o curso de Medicina, a política e ainda gravou dois discos, não foi?
Gravei. Os açorianos - estávamos sós, queríamos lembrar as nossas terras - tinham um grupo de cantares típicos, que transformámos um pouco em toada coimbrã. E ainda gravei dois discos. Éramos quatro, cantei duas ou três músicas, o Duarte Brás cantou mais uma ou duas, o Antero Dias, outro amigo, cantou também. Recentemente gravei outro disco, mas esse aí já sou eu.
Recentemente quando?
Há uns quatro ou cinco anos.
Pode cantar alguma coisa para nós ouvirmos?
Se quiser ouve-me no Spotify, agora.
Não é a mesma coisa, gostava mais ao vivo.
Vou dar-lhe um exemplo [agarra no telemóvel e faz uma busca no Spotify]. Foram tempos muito interessantes. Depois comecei a cantar fado de Coimbra. Quer dizer, a gente andava por ali, fazia umas serenatas às miúdas, ganhava uns trocos - em especial quando fazíamos festas, para ver se arranjávamos dinheiro para uns bolos, lá íamos fazer uma serenata [ri]. Havia sempre uns tipos que estavam amorosos, não sabiam desenrascar-se e lá vinham pedir: "Tu fazes uma serenata à minha miúda, eu estou lá contigo...".
Isso pagava-se?
Oh! [ri]
Coimbra tinha mais encanto...
Tinha, tinha. Foi uma geração muito engraçada. Este ainda é uma cópia do que foi gravado nessa altura, quando eu era muito jovem [põe a tocar "Cantar da Meia-Noite" e canta por cima da gravação]: "O Cantar da meia noite/ O cantar da meia-noite/ Cantado por quem o sente/Cantado por quem o sente/ Acorda quem está dormindo/ Acorda quem está dormindo/ Alegra quem está doente/ Alegra quem está doente". Que giro... Isto é açoriano típico.
E este disco que gravou agora, foi por algum motivo especial?
Foi porque o Durval Moreirinhas, que já morreu, melhor viola de Coimbra, meu amigo de sempre, e foi quem me ensinou a cantar à Coimbra, desafiou-me para fazer um disco. [Põe a tocar "Menina Breve": "Menina breve/ Cheiro a jasmim/ Volta que não volta no recreio/ Menina breve/ Cheiro a jasmim/ Volta de novo ao recreio/ Dá-me tua maçã já mordida/ Toma do meu pão partido ao meio"...] Tão bonito, isto, não é? Depois resolvi cantar coisas dos amigos, sei lá [procura mais músicas].
"O Zeca [Afonso] ouvia-nos e aprendeu connosco a cantar estas coisas, por isso é que canta a "Lira" ou "Os Bravos" [...]. E fizemos amizade"
Como se chama o disco?
O disco chama-se "Memórias de um Tempo". Por exemplo, esta [põe a tocar "Canção Tão Simples"] foi o Manel [Manuel Alegre], que é muito meu amigo, que escreveu [ouve-se: "Quem poderá domar os cavalos do vento/ Quem poderá domar este tropel/ Do pensamento à flor da pele"]. Só que já não tenho a voz que tinha com 19 anos...
Também conheceu Zeca Afonso, que cantava convosco. Quer contar a história?
A minha república tinha um velho repúblico - velho, entre aspas, nessa altura era mais velho do que o Zeca, que também era mais velho do que eu -, o Victor Lobão. Que era muito amigo do Zeca. Quando o Zeca vem de Moçambique (com a segunda mulher, com quem sempre viveu), quer acabar a licenciatura em Historico-Filosóficas, como se chamava na altura, e vem para a minha república para estudar com o Lobãozinho, o Victor Lobão, que também se tinha afastado do curso, já ia para aí em dez anos. Eu era um caloirito, um miúdo secundarista, já não sei bem, e conheci muito bem o Zeca assim. O Zeca ouvia-nos e aprendeu connosco a cantar estas coisas, por isso é que canta a "Lira" [canta: "Morte que mataste Lira/ Mata-me a mim que sou teu] ou "Os Bravos" e outras. São coisas que aprendeu connosco. Aliás, ele reconhece isso num livro que fez sobre os poemas das suas canções. E fizemos amizade, naturalmente. Às vezes fazíamos coisas malucas, como é evidente.
Que tipo de coisas?
Ele estava a viver com a Zélia num quarto. Uma vez vem ter connosco: "Temos de ir. Preciso de um açucareiro, vamos roubar um açucareiro". E lá fomos todos à Baixa, ao "Nicola". O Zeca entra de capa e batina, nós também, e quando passa por uma mesa com um açucareiro passa a capa por cima e pega no açucareiro. Começámos todas a sair calma e tranquilamente porta fora. Mas atrás do Zeca vem o dono: "Ó sôtor, deixe-me aqui o açucareiro, não me leve o açucareiro". "Açucareiro?! Que açucareiro?", pergunta ele. Só depois percebeu que tinha pegado mal no açucareiro e que foi deixando um rasto de açúcar atrás de si [ri]. Coisas de rapazes daquela altura. Mas claro, conheci-o bem e vi-o cantar tantas vezes.
Nunca gravaram, mas cantaram juntos.
Há uma história comigo com muita piada. Eram umas onze da manhã, eu tinha andado na farra na noite anterior e naquele dia não fui à faculdade, coisa que não era costume, entre o Zeca pelo meu quarto adentro, vinha com a Zélia, e sacode-me: "Tu sabes música?" Música não sei. "E não tens um gravador?" Se tivesse um gravador, já estava no prego para copos... "Não sei o que hei-de fazer à vida, tenho aqui uma música na cabeça, mas se não a conseguir gravar vou perdê-la". Tenho uma viola, disse-lhe eu. Tu dizes-me as notas, eu ponho na viola, vou-te dizendo o bordão e a escala e tu vais anotando num papel. E assim foi. E ele começa: "Tan-tam tan-tam, ta-ra-ra-ri". Depois, pegou no papel e foi a correr ao Rui Pato, o seu guitarrista, e o Rui, claro, musicou aquilo, para ele foi fácil. E foi assim nasceu "Os Vampiros" ["Eles Comem Tudo"].
Falou nos Açores e no mar. Sentia-se muito a insularidade, como era?
Para nós a vida era isso. Nasci em São Miguel, que nem ilha tinha em frente, tinha uma ilha nas costas, Santa Maria. Sentíamo-nos ilhéus, profundamente ilhéus. Isso hoje mudou um pouco pela facilidade de transporte, mas, apesar de tudo, continuam a ser ilhéus. As histórias são sempre muito engraçadas... Como esta, contada pelo meu amigo Onésimo Teotónio Almeida: Dois são-jorgenses estão a olhar para o mar e um diz para o outro: "Eh pá, o que eu queria era ir por esse mar abaixo, ir, ir, ir..." E o outro pergunta: "E depois, o que é que fazias?" "Oh pá, voltava para cima, voltava, voltava, voltava" [ri].
É engraçado, oiço-o falar e quase não lhe noto sotaque.
Explico-lhe porquê [começa a falar com sotaque carregado]: Sou micaelense, onde nasci, uma vila do nordeste, e depois fui para a Terceira, comecei a falar à moda da Terceira [imita]. Da Terceira vou para Coimbra, onde acabo por ir fazer teatro no CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra]. E aí tinha de falar a norma de Coimbra, porque não caía muito bem o açoriano. Como tinha bom ouvido, ficou. Mas ainda se nota uma ou outra inflexão - mais terceirense do que micaelense. Não faço de propósito.
Disse que quando foi para Angola ia começar uma especialidade. Qual?
Ia começar a fazer Psiquiatria. Tive prática com o professor Nunes Vicente, um excelente mestre, mas tinha acabado o curso há pouco tempo, não me deixaram entrar no hospital e, dois ou três meses depois, vou para Angola.
Teria sido um bom psiquiatra?
Não sei. Sabe que eu gosto da especialidade que escolhi, que tem possibilidades fantásticas do ponto de vista científico, é o presente e é futuro. O futuro começa sempre antes.
"Todos os dias 22 mil pessoas do SNS fazem colheitas de sangue nos laboratórios do país"
A pandemia deu um grande impulso a esta área das análises clínicas, da investigação. Como foi todo esse processo?
De um momento para o outro apercebemo-nos de que aquilo que havia lá no fim do mundo, na China, podia cá chegar. Esperámos que a Direção-Geral de Saúde desse as suas instruções porque, como é evidente, não íamos ultrapassar as diretivas da DGS, mas mal a DGS começou a dizer que tínhamos e ter testes, fazer testes PCR - porque Portugal não tinha nada, o Instituto Ricardo Jorge fazia 30 ou 40 testes por dia, não estava preparado, como é natural - resolvi pôr mãos à obra. Na altura até fui vilmente acusado de ganância, quando tive de adquirir plataformas que ainda hoje estão aqui e que eram caríssimas, para cima de 150 mil euros. Não havia reagentes, os que existiam custavam 90 euros só para fazer a análise, tivemos de comprar sondas de DNA marcadas para reconhecer o RNA viral, vinham da Coreia do Sul, máscaras, abrir postos para servir as pessoas, contratar pessoal... Enfim... Depois, a pouco e pouco, os preços foram baixando, o Estado fez uma convenção connosco - aliás, somos desde sempre convencionados com o Estado, para todas as análises. Tenho impressão que sem isso nem era possível ao Estado dar as análises que dá hoje.
Não teria estrutura? Quantas análises são pedidas por dia só através do SNS?
Todos os dias 22 mil pessoas do SNS fazem colheitas de sangue nos laboratórios do país. E fui eu mais quatro colegas que delineámos a convenção com o Estado, assinámo-la em 1979 ou 1980. Lembro-me de que em 1977/78 tive a oportunidade de discutir o assunto com o Dr. Arnaut, que teve a excelente ideia do Serviço Nacional de Saúde. E recordo-me de lhe perguntar como pensava pôr essa ideia em prática, porque não havia estruturas. "O que acha que se deve fazer?", perguntou-me. A minha sugestão foi que se fizesse convenções em todas as especialidades médicas com os laboratórios médicos e clínicas privados que quisessem aderir, por um preço socialmente justo. E fez-se essa convenção através da Ordem dos Médicos, para que as pessoas tivessem acesso a cuidados de saúde, de diagnóstico e não só, que de outro modo não poderiam ter. Foi isso que permitiu que o SNS fosse uma realidade.
"No país todo o meu grupo tem mais de 1400 pessoas, entre full-time e part-time"
Qual a fatia de negócio que chega do público e que vem do privado?
Considero puramente privado a pessoa que chega aqui e me paga. E isso, hoje em dia, é residual. Nós, privados, trabalhamos praticamente só com os preços tabelados. O grosso é SNS, ADSE, SAMS. Há os hospitais privados, também, que por sua vez também são convencionados com o Estado.
O Estado paga bem?
A convenção é mal paga. Ainda por cima levámos uma pancada muito grande com o Dr. Paulo Macedo, que baixou ainda mais os preços. Nos laboratórios conseguiu aguentar quem já tinha alguma dimensão, o que levou a que nos fossemos concentrando. Foi o que eu fiz, concentrei em Lisboa e no Porto dois grandes laboratórios, que me permitem automatizar, fazer tudo de forma mais económica, de outro modo não seria possível estarmos abertos. Só os seguros é que pagam um pouco melhor.
Quantas pessoas trabalham hoje no grupo Germano de Sousa?
No país todo o meu grupo tem mais de 1400 pessoas, entre full-time e part-time.
Isso já é uma grande empresa...
Um grande grupo de prestação de serviços de análises clínicas, da genética e genómica laboratorial. Especializei o meu laboratório no estudo do genoma dos tumores oncológicos, quer nas biópsias, quer, depois, na chamada biopsia líquida, que verifica se há ou não DNA a circular pelo tumor. Muito poucos fazem isto, fui pioneiro. Somos um laboratório de diagnóstico, mas temos ajudado a salvar muitas vidas. Com estas análises sabemos se um indivíduo é ou não resistente a determinado tratamento oncológico, por exemplo, ou qual a predisposição genética.
As pessoas têm uma tentação grande para querer saber essas coisas, mesmo sem estarem doentes? Somos um povo hipocondríaco, como o nosso presidente da República?
Têm, mas tenho o cuidado de só receber as pessoas depois de elas terem sido vistas por um médico geneticista que trabalha aqui, para evitar os tais hipocondríacos. Ainda há dias recebi um colega com quase 70 anos que vinha saber se tem risco genético. Ora, faça-me um favor... A idade é uma coisa levada da breca. Apesar de tudo, em termos físicos, não me sinto nada, nada em baixo. Os anos vão pesando, mas, felizmente, sempre me deram menos idade. Marcelo Rebelo de Sousa também já foi mais hipocondríaco - todos temos um pouco de hipocondria. Foi meu vizinho e querido amigo logo a seguir ao 25 de Abril, no começo de 1975. Eu fui viver para uma casa em Cascais e Marcelo veio viver para outra, paredes-meias. Vinte anos a conversar todos os dias, ficávamos a conversar até às duas da manhã. Era muito engraçado, porque lembrava-se de qualquer coisa e, se fosse preciso, às cinco da manhã ligava-me.
Hoje, muito por causa da guerra, fala-se em armas químicas ou biológicas, duas coisas diferentes. Como olha para esta realidade?
Estamos num equilíbrio às vezes instável. Mas, apesar de tudo, Putin, louco ou não, tem a noção de até onde pode ir. Porque tem medo do ocidente e o ocidente tem medo de Putin. De maneira que me dá a ideia de que nunca irão ultrapassar determinadas linhas vermelhas. Evidentemente que o podem fazer, mas sabem que haverá retaliação. Espero que nunca cheguemos à guerra nuclear. Mas esta contenção pelo medo evitará o pior. Infelizmente, quando se começa com uma guerra química, depois guerra biológica, a escalada torna-se fácil. Mas acredito que essa linha vermelha irá impedir que se recorra a meios proibidos pela Convenção de Genebra, que é o caso da guerra química.
Ainda me lembro dos ataques com gás sarin e com antraz...
Sim, sim, lembro-me muito bem do antraz. Era bastonário da Ordem dos Médicos e recebi uma carta cheia de pó que diziam que era antraz. Não era, era outro pó qualquer. Mas mandei analisar tudo.
Porquê a carta?
Porque na altura havia uma guerra entre a Ordem dos Médicos e os alternativos, dei um parecer contra as medicinas alternativas, que não eram medicinas, não eram nada, não eram ciência sequer. E recebi ameaças de morte, deram um tiro numa janela de minha casa, foi lá a Polícia Judiciária, e enviaram-me esse "antraz", que, felizmente, não era antraz - porque não é fácil arranjar-se, como é evidente. Inclusive, houve uma prisão dentro da Ordem (e uns tipos que deixaram umas rezas na parede, coisas malucas).
Hoje acontecem outros ataques, como o ciberataque de que os Laboratórios Germano de Sousa foram alvo em fevereiro. Como e porque aconteceu, já sabe?
Não tenho a mínima informação do porquê de isso ter acontecido. Foi um ataque na sequência de outros a diversas instituições, da Vodafone à Impresa. Teoricamente pediam um resgate, que nunca demos, mas nem sequer abrimos o link que dava acesso a isso. A Polícia Judiciária, como lhe compete, está a tratar disso desde o início, a Comissão Nacional de Cibersegurança também está a investigar e a CNPD também. Até agora não há novidades.
Regressando ao tema das chamadas medicinas alternativas, hoje estão a ganhar espaço. Continua a ser contra? Porquê?
Nunca percebi como deram estatuto legal às medicinas alternativas, acho que foi um erro. Fiz aprovar pelo primeiro-ministro António Guterres e pela ministra da Saúde, Maria de Belém, a Lei do Ato Médico, que depois foi vetada - veto de bolso - pelo presidente da República Jorge Sampaio. A lei dizia o que podia ser considerado ato médico e, de certo modo, impedia curandeirismos. Nunca entendi a posição dele, mas depois vim a perceber que era influenciada pelos seus consultores, que não queriam dar força aos médicos, qualquer coisa assim.
Engraçado, porque o pai de Jorge Sampaio era médico. Como o irmão.
Pois, mas foi assim. Nessa altura deu-se um grande debate e mais tarde os meus colegas bastonários continuaram a recusar a medicina alternativa. A medicina alternativa não tem nada de científico. Tenho um artigo escrito sobre acupuntura, por exemplo, em que fiz uma revisão de toda a literatura sobre o assunto, e em lado nenhum ela ultrapassa o efeito placebo - apenas um aponta para um resultado melhor num joelho, mas é único. A homeopatia não existe, é uma invenção (em especial quando vieram com a história da memória da água, que pôs físicos e químicos a rirem-se). A medicina chinesa poderá ter resultados nuns ou noutros casos, porque é à base de ervas, que podem atuar. Já não falo na osteopatia, porque essa sempre é manejo, massagens, músculos, algum impacto terá. De resto, a naturopatia também usa ervas e outros vegetais, alguns atuam. Mas a maior parte não tem qualquer base científica. Qualquer prática médica, mesmo que seja empírica, mesmo que mal conhecida, desde que resulte, a primeira coisa que a medicina clássica faz é adaptá-la e verificar a sua eficácia. Trá-la para si em casos muito concretos, faz estudos e verifica que isto faz bem àquilo.
"Neste momento o setor social e o setor privado são essenciais para resolver os problemas de saúde deste país"
Quem foi para si o melhor ministro da Saúde que já tivemos?
Tive quatro ministros da Saúde [enquanto bastonário]; gostei muito da Dra. Maria de Belém [PS], uma grande senhora, e hoje sou muito amigo dela, da professora Manuela Arcanjo [PS], uma mulher inteligente e correta, do Dr. Luís Filipe Pereira [PSD], uma pessoa com quem se podia falar e conversar, embora às vezes não concordasse minimamente com ele. O professor Correia de Campos [PS], de quem sou amigo desde os 18 anos, foi, talvez, aquele com quem mais dificilmente me dei enquanto bastonário.
E porquê?
Porque tinha as suas ideias próprias sobre a saúde, bastante diferentes daquelas que a Ordem dos Médicos defendia. A nossa visão a dada altura muda bastante, e podemos eleger o ministro com quem os médicos tiveram mais questões, o que não quer dizer que fosse um mau ministro. Não é justo eleger o pior. Vou dar-lhe um exemplo: tivemos as nossas guerras com a ministra Leonor Beleza [PSD], o que não quer dizer que ela seja uma má ministra da Saúde. Posso dizer apenas que concordei mais com uns e menos com outros.
"A gente mais velha que ainda está no SNS está a deixar o público para ir para a privado. E são os mais hábeis, os melhor preparados, os que têm uma experiência enorme e sentem que o ordenado que recebem no SNS não compensa o trabalho que sabem fazer e que fazem"
Quais são, na sua opinião, os principais problemas ou desafios que o setor da Saúde enfrenta?
A Lei de Bases da Saúde proposta pelo professor Adalberto Fernandes, que tinha sido redigida por uma comissão dirigida pela Dra. Maria de Belém, e de que eu, à frente de um grupo de 44 personalidades da política portuguesa, em especial ligadas à saúde, fui porta-voz, era a que devia substituir a que existe, foi isso que defendemos até ao fim na Assembleia da República. Politicamente resolveram impor-nos a lei atual, que não tem grande capacidade para tornar o Serviço Nacional de Saúde em algo de bom. O SNS, que infelizmente está cada vez mais insustentável, cada vez mais subfinanciado - por muito que se lhe ponha as necessidades vão sendo cada vez maiores - e desconhece o setor social e o setor privado. E, neste momento, o setor social e o setor privado são essenciais, como foram durante a pandemia, para resolver os problemas de saúde deste país. Dou um exemplo: em 2018 - depois veio a pandemia, os números falham - gastaram-se 17.300 milhões de euros na saúde deste país. No total. O orçamento do SNS era de 9.700 milhões de euros. Esta décalage é paga sabe por quem? Por si, por mim, por toda a gente. Alguma coisa se passa que não está bem. Temos qualquer coisa como cerca de 40% da população que não está coberta. Por esse facto somos um dos países mais iníquos da OCDE, o quarto ou quinto mais desigual. Esta e a realidade do nosso SNS.
O que torna tão difícil reformar o SNS?
Desde 1975 nunca mais ninguém se preocupou em olhar para o SNS como devia ser. Depois, durante a geringonça, havia os donos do Serviço Nacional de Saúde, que não deixavam que se mexesse em nada. A gente mais velha que ainda está no SNS está a deixar o público para ir para a privado. E são os mais hábeis, os melhor preparados, os que têm uma experiência enorme e sentem que o ordenado que recebem no SNS não compensa o trabalho que sabem fazer e que fazem. É por isso que o SNS tem falta de médicos, não é por não haver médicos em Portugal. Temos bons médicos e temos médicos que não estão para se chatear, digamos assim, e são esses que ficam no SNS. Porque nunca se soube criar um estímulo para que quem é melhor fique, o que faz e o que não faz é pago da mesma maneira. É preciso pensar de uma maneira completamente diferente.
O PS esteve mais tempo no poder. Isso dá aos seus ministros uma responsabilidade maior na situação em que, no caso, se encontra o setor da Saúde?
É evidente que se o Serviço Nacional da Saúde não funcionar ou não estiver a funcionar como nós todos queremos, naturalmente que os governantes do PS são, de certo modo, responsáveis. Mas não sei se é falta de visão, é falta de dinheiro. E também, como é claro, a necessidade de fazer reformas, porque em todos estes anos devia-se ter alterado muitas, muitas coisas, como já referi.
Quem poderia ser um bom ministro da Saúde?
Há uma pessoa, quanto a mim, o Dr. Fernando Araújo, que mostrou a sua competência no Hospital de São João.
Hoje já sabemos que Marta Temido se manterá como ministra da Saúde.
Naturalmente é preciso que a senhora ministra faça estas reformas.
Manter Marta Temido foi uma boa decisão de António Costa?
Quem sou eu para duvidar das decisões do senhor primeiro-ministro. Se a escolheu é porque, fundamentalmente, quis continuidade. Acho que a senhora ministra da Saúde está há este tempo todo no governo e sabe exatamente o que quer e para onde quer ir e terá as suas ideias.
E o lugar para onde a ministra quer ir e para onde Germano de Sousa quer ir é o mesmo?
Errr... Não sei. Não sei.
"Há muitas ideias erradas sobre a maçonaria, completamente erradas. Uns querem que seja um bando de malfeitores, outros querem que seja uma sociedade secreta"
O que é que o levou a aproximar-se do Partido Socialista?
Razões históricas. Antes do 25 de Abril participei da oposição, fui representante do Conselho de Repúblicas quando foi a crise académica de 65 e fui sempre um homem de oposição ao governo de Salazar. Depois, quando vem o 25 de Abril, eu, que acima de tudo fui sempre um amante da liberdade, fui para um partido que era social-democrata no seu íntimo, mas chamado Partido Socialista, e que me dava a garantia de velhos amigos de muito lado também se terem lá inscrito. Era ali o meu lugar natural. E participei aí durante os anos difíceis, durante o PREC [Processo Revolucionário em Curso], em que o PS e o Dr. Mário Soares defenderam o povo português de uma nova ditadura.
Sei que pertence à maçonaria. O que é ser maçon?
Ser maçon é ser um homem que pensa livremente. Ser um homem que respeita os princípios da fraternidade, da igualdade e da liberdade, acima de tudo. Há muitas ideias erradas sobre a maçonaria, completamente erradas. Uns querem que seja um bando de malfeitores, outros querem que seja uma sociedade secreta. A única coisa que se exige aos membros da maçonaria é que guardem discrição em relação aos outros, eu não tenho o direito de dizer que outro é maçon, ele é que tem liberdade para o fazer. Agora, a maçonaria organiza-se em pequenas comunidades, a que chamamos lojas, que debatem assuntos próprios da maçonaria, modos de olhar o mundo. Por isso a maçonaria teve o seu papel, foi muito importante neste país desde D. Pedro IV, que era grão-mestre da maçonaria. O poder que tem é o poder da palavra, de homens que pensam para a frente, que querem o progresso e que abominam as ditaduras, que são contra o poder demasiado, os oligarcas, como agora se diz, e, naturalmente, influenciam a sociedade em que vivem pelo seu exemplo, pela sua palavra.
"Seria infeliz se não tivesse livros à minha volta"
Quando pensa no futuro, o que gostaria de fazer que ainda não fez?
Quero [ri] - dentro do tempo que espero ter - continuar a desenvolver áreas muito importantes do laboratório, como esta da genómica. Vou desenvolver isso muito mais, interessa-me muito. Quero acabar de escrever uns livros que tenho em mãos - já publiquei uma história da medicina durante a expansão portuguesa, pela Temas e Debates, mas espero ter tempo de acabar outros, uns têm a ver com história, outro é um romance, outro é de memórias.
Se fosse congelado e acordasse daqui a duzentos anos o que queria saber?
[Ri] Se a minha mulher e os meus filhos tinham feito o mesmo. É egoísta, mas de que é que me servia uma vida se, de repente, não tenho ninguém, não tenho referências?
Três objetos que não lhe podem faltar e porquê?
Livros - leio tudo, sou um leitor inveterado: história, romance, ensaio, política, ciência. Desde miúdo que tenho na cabeceira e na secretária os livros mais diferenciados. Seria infeliz se não tivesse livros à minha volta. Segundo, filmes. A possibilidade de, com as Netflix e HBO, ver os filmes de que gosto (tenho uma coleção de cinema que nunca mais acaba) quando quero... Sempre fui um fã de cinema, fazia parte do Cineclube de Coimbra. A terceira coisa, tão essencial como estas duas, é a música. Gosto muito, clássica ou moderna, fado de Coimbra e, acima de tudo, fado de Lisboa. Com estas três coisas eu era feliz.
Qual a grande diferença que encontra entre a sua geração e a geração dos seus filhos, o que sente que a beneficia e a penaliza?
Os meus filhos foram, felizmente, educados por mim. É gente muito respeitadora, mas vivem a sua vida. Acho que é um contínuo, não vejo que haja quebras. A geração dos meus filhos continua a acreditar nos mesmos valores, no respeito, na tolerância, na fraternidade, valores que são essenciais para que consigamos viver bem nesta sociedade. Naturalmente que olharão o mundo de uma maneira diferente da minha, há outras liberdades, eu nasci e vivi em plena ditadura. Mas o que sinto, desculpe o orgulho, é que foram bem educados e, como tal, não perderam os pontos essenciais. Porque temos de perceber o que é essencial - não é se andas de cabelo curto ou comprido, se a saia é curta ou comprida -, que é o respeito, o amor pelo outro. E eles, como são médicos, ainda por cima, têm mais ou menos os mesmos defeitos e as mesmas virtudes do que eu.
Comentários