Em cima da mesa, enquanto se vivia a expectativa que fosse servido o primeiro restaurante três estrelas em Portugal e se esperava, e pedia-se, a primeira chef a receber uma estrela Michelin, um homem foi elevado a rei e outros quatro brilharam na noite de chuva de estrelas do Guia Michelin Portugal 2024.
Na cerimónia do guia vermelho apresentada por Catarina Furtado, no Palácio de Congressos de Albufeira (NAU Salgados Palace), no Algarve, para gáudio das bocas de todo o mundo anunciou-se um novo duas estrelas, quatro novos restaurantes com uma estrela, mas ainda não foi desta que o selo do reconhecimento máximo – “cozinha única, justifica a viagem” – foi atribuído a Portugal.
Feitas as contas, um restaurante mereceu juntar-se aos sete do ano passado na galeria de duas estrelas Michelin (“cozinha excelente, vale a pena o desvio”). 31 ostentam uma estrela (“cozinha de grande nível, merece uma paragem”). Desses, quatro entraram para o lugar de três que saíram da lista. Ao todo, em Portugal, 39 restaurantes merecem o autocolante à porta.
Para além de ter ficado a estranha sensação de ter “sabido a pouco” e de faltar o magistral e aguardado número 3, ainda não foi em 2024 que uma mulher recebeu a distinção dos inspetores e respetiva estrela na jaqueta, apesar do pedido em forma de desejo do ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva, antes da entrega dos galardões.
Isto é, mantém-se a “tradição” que vem de longe, desde 1929, ano do reconhecimento das primeiras estrelas (uma) no Guia Michelin Portugal-Espanha, ao Hotel Santa Lusia (não é erro, era a grafia na altura) em Viana do Castelo (transformada em Pousadas Portugal, hoje operado pelo grupo Pestana), e do Hotel Mesquita, em Vila Nova de Famalicão. As duas estrelas só chegaram em 1936, ao Escondidinho, no Porto.
Noélia à presidência
No primeiro guia reservado exclusivamente a Portugal, cuja gastronomia ganha independência em relação ao vizinho ibérico, quatro chefs mulheres ainda cintilaram, mas seria somente uma, Rita Magro, do Blind (Porto), onde trabalha com o chef Vítor Matos (viria a ser o rei da Noite dos prémios do boneco cilíndrico e acolchoado), quem mais próximo esteve do céu. Recebeu o Prémio Jovem Chef, na estreia de atribuição de prémios especiais, três ao todo, em Portugal.
As restantes, três chefs viram os nomes inscritos na lista dos locais recomendados pelo famoso livro vermelho:Apego, de Aurora Goy (Porto), Sem, de Lara Prado e George Mcleod (Lisboa), Lamelas, de Ana Moura (Porto Covo) e Noélia - de Noélia Jerónimo (Cabanas de Tavira).
Gorada a expectativa que a estrela aterrasse bem junto ao coração da popular ex-jurada do programa MasterChef Portugal (RTP), a algarvia da Ria Formosa levou para casa, para além da recomendação do seu lugar, uma sugestão cozinhada pela cabeça de Catarina Furtado: candidatar-se à presidência da República.
Nos prémios laterais à grande cerimónia, entre os oito novos Bib Gourmand (restaurantes que têm uma boa relação qualidade-preço, até 45 euros), dois são geridos por mãos femininas.
Olaias, de Mónica Gomes (Figueira da Foz) e Pastus -, de Annakaren Fuentes (Paço de Arcos), cujo chef e marido de Annakaren Fuentes, Hugo Dias de Castro, morreu no passado mês de dezembro, aos 34 anos.
Annakaren prometeu continuar o “sonho que tínhamos” num espaço criado em 2020 “em que ele pudesse cometer de loucuras gastronómicas que só ele sabia ter”, disse, de voz embargada, em pleno palco. “Temos dois filhos, o Hugo, 9 anos e o Afonso, 7, são a minha força e são aqueles me dão ar para continuar a lutar por este sonho e me dizem, mãe: o vosso restaurante é o melhor restaurante do mundo”, exclamou.
O rei Vítor Matos
Feita a apresentação das princesas das artes culinárias cujos nomes passam a estar na passerelle gastronómica, tempo de chamar à mesa o rei da noite.
Vítor Matos vestiu duas vezes a jaqueta e esteve omnipresente num outro cerimonial.
Começou por ver um projeto seu, o Blind (Porto), a coroar Rita Matos como chef jovem. Esse mesmo espaço gastronómico integrou ainda a lista das recomendações.
Depois, levou os “beijos” da praxe da apresentadora na primeira estrela da noite, a meias com Francisco Quintas com quem divide os do 2Monkeys (Lisboa).
E por fim, é ele o dono e senhor do novo duas estrelas de Portugal, o Antiqvvm, no Porto.
Viva o Ribatejo ao lado de um não foi preciso sair da Madeira para ter uma estrela
Rodrigo Castelo, do Ó Balcão -, em Santarém, entrou também para a restrita lista de monarcas da arte de bem confecionar.
Ganhou o primeiro polígino escrito com as insígnias Michelin e viu reconhecido a preocupação pela sustentabilidade (foi um dos três galardoados com as Estrelas Verdes de Portugal).
Parco e tímido de palavra, puxou dos pulmões quando o nome foi anunciado no envelope. “Viva o Ribatejo”, exaltou de punho em riste, não perdendo a oportunidade para dar um Gripo do Ipiranga regional.
Ainda na onda do regionalismo, Octávio Freitas chef do Desarma (Funchal) aproveitou para abrir a boca e “partir” alguns pratos. “Não é preciso sair da Madeira” para maravilhar o palato, disse o segundo chefe madeirense a conquistar uma estrela (Luís Pestana colocou a Região Autónoma da Madeira no mapa com o Restaurante William), sem sair da ilha há 26 anos.
João Sá, do Sála (Lisboa), a quarta nova estrela, limitou-se a descrever o espaço em plena baixa pombalina, Rua dos Bacalhoeiros como um sítio “independente, pequenino, mas que foi ambicioso” e soprou um desejo.
Na hora da vitória não esqueceu aquela com quem uniu os trapos há 19 anos e com quem partilha a arte, embora as quatro mãos só por uma vez se tenham cruzado debaixo do mesmo teto profissional (Sheraton Porto, onde se conheceram) - Marlene Vieira (Zunzum Gastrobar na Doca do Jardim do Tabaco, Lisboa). “Para o ano és tu”, gritou ao apontar para a orgulhosa e efusiva mulher sentada no auditório.
Lisboa ocupa a maior fatia do prato num país ainda curto
Olhemos, por fim, para a distribuição regional de estrelas. As assimetrias do país estão também vincadas no Guia Michelin cujas páginas confluem para o litoral, para as duas grandes cidades portuguesas, Lisboa e Porto e para as duas mais afamadas regiões turísticas, Algarve e Madeira. O resto, parecem pequenas notas de rodapé.
No que toca aos oito pares de estrelas, as duas margens do Douro e o Grande Porto é mais barroco quando se procura comer com arte. Tem três restaurantes duplamente estrelados, um dos quais, como se escreveu, engordou ao passar de uma para duas.
A capital portuguesa coloca dois garfos no ar para chamar a atenção que quem gosta de se sentar nestas cadeiras. O mesmo sucede com a região algarvia. A Madeira, por sua vez, apresenta uma só justificação de desvio.
Na categoria abaixo, três restaurantes não renovaram o selo único. Dos que saíram do menu de uma estrela, é o sul do país que mais perde. Vistas (saiu Rui Silvestre, Sesmarias – Vila Nova Cacela, Algarve) e Eneko Lisboa (Eneko Atxa, Lisboa), restaurante encerrado no último mês de 2023. A norte, o Largo do Paço - Casa da Calçada (saiu Tiago Bonito), Amarante está fechado para remodelação, logo, poderá a voltar à lista no próximo ano.
A colheita das novas entradas ajuda, no entanto, à digestão dos regionalismos. Santarém (Ó Balcão) dá-se a provar, Lisboa apresenta duas estreias (2Monkeys e Sala) e o Funchal não Desarma nesta guerra por aparecer.
Por fim, o G Pousada (Bragança, chef Óscar Gonçalves), A Cozinha (Guimarães, chef António Loureiro), Esporão (Reguengos de Monsaraz, chef Carlos Teixeira), Mesa de Lemos (Viseu, chef Diogo Rocha) e o restaurante escalabitano são os 5% de oásis fora da rota em que Lisboa apresenta 11 restaurantes a merecer uma paragem, contra 5 da região algarvia, 4 da Invicta e duas da Pérola do Atlântico.
Lista completa do Guia Michelin em Portugal para 2024:
Duas estrelas
Antiqvvm (Porto, Vítor Matos) - NOVO
Casa de Chá da Boa Nova (Leça da Palmeira, chef Rui Paula)
The Yeatman (Vila Nova de Gaia, chef Ricardo Costa)
Alma (Lisboa, chef Henrique Sá Pessoa)
Belcanto (Lisboa, chef José Avillez)
Il Gallo d'Oro (Funchal, chef Benoît Sinthon)
Ocean (Alporchinhos, chef Hans Neuner)
Vila Joya (Albufeira, chef Dieter Koschina)
Uma estrela:
G Pousada (Bragança, chef Óscar Gonçalves)
A Cozinha (Guimarães, chef António Loureiro)
Euskalduna Studio (Porto, chef Vasco Coelho Santos)
Le Monument (Porto, chef Julien Montbabut)
Pedro Lemos (Porto, chef Pedro Lemos)
Vila Foz (Porto, chef Arnaldo Azevedo)
Mesa de Lemos (Viseu, chef Diogo Rocha)
Ó Balcão (Santarém, Rodrigo Castelo) - NOVO
LAB by Sergi Arola (Sintra, chefs Sergi Arola e Vladimir Veiga)
Midori (Sintra, chef Pedro Almeida)
Fortaleza do Guincho (Cascais, chef Gil Fernandes)
Two Monkeys (Lisboa, Vítor Matos e Francisco Quintas) - NOVO
Sála de João Sá (Lisboa, João Pedro Sá) - NOVO
100 Maneiras (Lisboa, chef Ljubomir Stanisic)
CURA (Lisboa, chef Pedro Pena Bastos)
Eleven (Lisboa, chef Joachim Koerper)
Encanto (Lisboa, chef José Avillez)
Epur (Lisboa, chef Vincent Farges)
Feitoria (Lisboa, chef André Cruz)
Fifty Seconds by Martín Berasategui (Lisboa, chef Rui Silvestre)
Kabuki Lisboa (Lisboa, chef Sebastião Coutinho)
Kanazawa (Lisboa, chef Paulo Morais)
Loco (Lisboa, chef Alexandre Silva)
Esporão (Reguengos de Monsaraz, chef Carlos Teixeira)
Al Sud (Lagos, chef Louis Anjos)
A Ver Tavira (Tavira, chef Luís Brito)
Vista (Portimão, chef João Oliveira)
Bon Bon (Carvoeiro, chef José Lopes)
Gusto by Heinz Beck (Almancil, chef Libório Buonocore)
William (Funchal, chef Luís Pestana)
Desarma (Funchal, chef Octávio Freitas) - NOVO
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