Foi com a evocação do estabelecido no primeiro ponto do artigo 65º da Constituição da República Portuguesa (habitação e urbanismo) que o arquiteto encarou o tema do momento.

“Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, diz a lei fundamental em vigor.

Segundo Nuno Sampaio, os arquitetos estão hoje, como no passado, aptos a trabalhar para ajudar a solucionar a crise de habitação que os portugueses enfrentam, desenhando espaços que contribuam para “a felicidade de quem os vive e habita”.

“Houve momentos em que os arquitetos foram chamados a intervir para resolver este problema e intervieram com muita eficácia, fazendo as nossas cidades melhores e a nossa população habitar melhor”, considerou.

Recordando a criação de habitação após o 25 de Abril de 1974 e posteriormente, já com a democracia consolidada, a construção de fogos para realojar famílias que viviam em barracas, o responsável pela Casa da Arquitetura, considerou que chegou o momento de o Estado voltar a chamar os arquitetos a intervir, “tão rápido quanto possível”.

“Se o Estado tem e os juros e os bancos estão a dificultar o acesso a esse dinheiro, o que o Estado tem de fazer é financiar diretamente, como aconteceu noutros momentos da História, quer as cooperativas, quer os outros empreendedores que querem fazer e que trabalhem em colaboração direta com os arquitetos”, propôs.

Ao olhar para o setor imobiliário, observa que a construção mais comum tem perdido terreno para um ´target´ mais elevado. “Isso surge também porque tivemos, com os vistos gold, um grande investimento, que talvez tenha salvado o setor, mas o que aconteceu é que naturalmente os colegas privados trabalham para quem os compra e não tem nada de mal isso, é a função deles. Agora, cumpre-nos a nós, enquanto sociedade e também ao Estado, fazer o que tem vindo a fazer ao longo da História, que é construir para a classe mais desfavorecida”, advogou.

“E o que acontece hoje é que a classe média está com dificuldades em aceder a habitação, porque os juros estão altíssimos e não é só no crédito à habitação, é também na dificuldade que os construtores têm, e até às vezes os municípios, de irem ao mercado e encontrarem parceiros com risco comportável para poderem produzir soluções num curto espaço de tempo”, exemplificou o arquiteto.

É nas cidades que se sentem as “maiores disparidades” na habitação, sublinhou. “Temos habitação muito boa e habitação de baixo custo e falta o intermédio”, reconheceu.

“Muitas classes profissionais, incluindo os professores, que ganham exatamente o mesmo estando a trabalhar em Vila Real, no Porto, em Lisboa ou em Évora, têm mais dificuldade em sobreviver nos grandes centros como o Porto e Lisboa, porque as rendas estão bastante mais caras, não porque não exista parque habitacional para ser renovado, existe e temos de ser claros e concordar com o Governo quando diz que é preciso resgatar um conjunto de imóveis que estão devolutos, mas também existe um património do Estado que necessita de ser transformado”, acrescentou.

O arquiteto deu o exemplo de vários quartéis militares, que não estão a ser utilizados, como espaços devolutos que podem ser transformados em habitação, com “intervenção rápida do Estado”.

“Estamos a chegar aos 50 anos da revolução dos cravos e vemos que o primeiro direito constitucional, que era o direito à habitação, continua por cumprir”, lamentou, instando a uma reflexão.

Nuno Sampaio assumiu que vê “com preocupação” os indicadores do Instituto Nacional de Estatística (INE) divulgados este mês.

De acordo com o INE, os edifícios licenciados diminuíram 10,2%, para 5.700, e os concluídos recuaram 2,1%, para 3.800, no segundo trimestre do ano, face ao mesmo período de 2022.

Numa análise mensal, o INE destacou que se verifica “uma tendência de diminuição no licenciamento de edifícios”, principalmente a partir de abril de 2021 e que tem “atingido proporções mais negativas desde novembro de 2022”.

“É uma diminuição que nos preocupa a todos, porque é um risco hoje, com taxas de juro tão altas, os investidores lançarem-se a investir para resolverem alguns problemas. As câmaras municipais bem podem lançar os concursos, se os privados tiverem receio de se lançarem num projeto no qual possam perder dinheiro! Não vão arriscar e, ao não arriscar, não há soluções à vista, não se produz nova habitação”, afirmou.

Regime de exceção para criar habitação

O diretor executivo da Casa da Arquitetura defendeu hoje um regime de exceção para resolver o problema da habitação em Portugal, mas alertou que o recurso reiterado a mecanismos de exceção significa que a regra não está bem.

“Provavelmente o que temos de fazer é um regime de exceção para resolver o problema. Isto quer dizer que temos um regime de base que tem problemas. Temos governos que têm vontade, temos engenheiros e arquitetos que querem projetar, temos empresas que querem construir, existe dinheiro. Se não conseguimos pôr uma máquina em movimento, temos de ver qual é o enquadramento em que estamos a atuar: Definitivamente, olharmos a forma de fazer, que tem de ser simplificada”, afirmou Nuno Sampaio, em entrevista à agência Lusa.

A presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Luísa Salgueiro, assumiu há 10 dias (em entrevista à Lusa), que as autarquias não têm atualmente problemas financeiros para construir habitação, mas dificuldades em executar e cumprir prazos.

Segundo a autarca, o “grande problema” reside nos prazos porque, até se chegar à fase de construção, o processo é muito moroso”.

Nuno Sampaio recordou que para reabilitar rapidamente o degradado parque escolar português foi necessário recorrer a regimes de exceção em vários domínios. “Agora temos um problema para recuperar o nosso parque habitacional e mesmo o parque não habitacional do Estado podia ser convertido em parque habitacional em que o terreno é do Estado”, advogou.

“Por exemplo, antigamente as cooperativas funcionavam muito bem para produção de habitação a baixo custo. Temos aqui no Porto exemplos lindíssimos de boa arquitetura, que construíram cidade nova (…). Hoje têm muita dificuldade em realizar, porquê? Nem tudo pode ser Estado, nem tudo pode ser promoção de alta gama. A dificuldade está em criar mecanismos de execução com o atual enquadramento legal, fazer projetos e fazer construção e, simultaneamente, dar capacidade às pessoas de acederem à compra”, sustentou o arquiteto.

De acordo com Nuno Sampaio, o modelo do crédito à habitação está “a esgotar-se”, devido às elevadas taxas de juro, enquanto no âmbito da construção, o formato jurídico atual é “bastante complexo”.

“Vivemos um momento, principalmente no período da ‘troika’ [2011-2014], e já antes da ‘troika’, em que começamos a desenvolver um processo jurídico para que o país demorasse muito a fazer. E depois, quando é necessário fazer-se, estamos todos dentro de um emaranhado legal que dificulta e atrasa muito o desenvolvimento dos processos”, observou, instando a classe política a refletir. “Temos a capacidade de fazermos mais, com menos esforço, com menos burocracia, com mais eficácia”.

Para Nuno Sampaio, é importante que todos os profissionais envolvidos neste setor consigam trabalhar em conjunto. “O que implica que Portugal desburocratize para conseguirmos rapidamente fazer face às urgências que existem, que é a falta de habitação num momento em que temos juros altíssimos que sufocam a economia para poder ir buscar dinheiro e fazer”, indicou.

“É necessário fazer algumas mudanças no Estado, porque foram muitos anos a construir-se legislação que dificulta fazer coisas em Portugal”, prosseguiu, lamentando: “No fundo, quem está a sofrer com esta crise de habitação é a população”.

O arquiteto referiu que além dos processos terem de passar por várias entidades e os concursos serem prolongados e de fácil contestação, há dificuldades na contratação dos projetistas e na adjudicação das obras, mesmo quando as entidades públicas querem executar. O tempo e a forma de atuação do Tribunal de Contas para fazer cumprir a lei, considerou, representa neste momento “uma entropia”.

“É preciso alterar isto, deixar de pensar que cada cidadão é um eventual corrupto e que cada cidadão é um eventual infrator”, declarou.

“O mercado está a mostrar que, existindo demanda para habitações de classes mais elevadas, elas realizam-se. Havendo clientes que garantam a compra de habitação mais elevada, os promotores conseguem arranjar maneira de fazer. O que não estamos a conseguir é dar à classe média uma capacidade de comprar”, resumiu Nuno Sampaio.

Exposição vai mostrar contributo da arquitetura na democratização do país

A Casa da Arquitetura está a preparar uma retrospetiva sobre o contributo da arquitetura para a democratização do país, essencialmente no acesso a habitação, que assinalará os 50 anos da revolução de 1974, avançou à agência Lusa o diretor.

“A arquitetura deu um contributo muito importante para este processo de democratização”, considerou Nuno Sampaio em entrevista à agência Lusa.

Além da habitação, os arquitetos foram chamados a construir outros equipamentos nos últimos 50 anos, realizados de diferentes formas.

“Vai notar-se perfeitamente o que é a produção da arquitetura e a qualidade com que se produziu, em diferentes formas e em diferentes momentos nestes últimos 50 anos, da entrada na União Europeia, na crise da ‘troika’” e em vários outros contextos, antecipou o responsável pela Casa da Arquitetura, localizada em Matosinhos.

“É uma visão muito importante e que vai extrair muitas ilações sobre como se produziu cidade e se construiu”, acrescentou o arquiteto.

Ao olhar para o percurso que medeia entre 25 de Abril de 1974 e 2024, Nuno Sampaio observou que também os arquitetos “aprenderam à razão da encomenda”, projetando escolas, centros de saúde, museus, habitação.

“Houve uma encomenda e uma perspetiva do Estado que permitiu que houvesse essa execução e a arquitetura portuguesa respondeu de forma muito eficiente, a ponto de ser muito reconhecida pelos prémios que recebe lá fora”, afirmou, destacando os dois Pritzker: Siza Vieira (1992) e Souto Moura (2011).

Além destes dois prémios, considerados os Nobel da arquitetura, são inúmeras as distinções e concursos que os arquitetos portugueses têm alcançado fora das fronteiras do país.

“É muito reconhecida no estrangeiro [a arquitetura nacional]. Devemos estar orgulhosos dessa produção, orgulhosos, enquanto sociedade, de um setor ter conseguido ter o ´know-how´ para conseguir produzir tanta coisa em tão curto espaço de tempo e ter um reconhecimento internacional que ombreia muito Portugal”, disse.

“Julgo que em nenhuma outra área do saber – talvez na área do desporto, do futebol propriamente dito – Portugal tenha tanto reconhecimento no estrangeiro”, estimou o arquiteto, dando conta de discursos de reitores no exterior e apreciações de críticos de arquitetura sobre o trabalho produzido e premiado num país com dez milhões de habitantes. “É absolutamente fantástico!”, exclamou.

*Por Ana Mendes Henriques da Agência Lusa