
A chamada “ordem mundial” a que nos habituamos todos desde 1945, mudou esta semana. Respire fundo e leia outra vez, para incorporar a ideia: o “estado das coisas” dos últimos oitenta anos deixou de existir esta semana. Ou seja, toda a população do mundo que há oito décadas estava viva e já pensava, considerava que o alinhamento dos países ,dos sistemas, das ideias políticas e da partição das soberanias eram dados permanentes. Podiam acontecer episódios pontuais aqui e ali; guerra no Afeganistão (2001-21), ditadura militar no Brasil (1964-1985), mudança de regime em Portugal, na Albânia (1989) e em muitos outros países, guerras civis, fome, peste e injustiça a Norte ou a Sul, mas, no essencial, a arquitectura das inimizades, amizades e hostilidades era permanente: o “Mundo Ocidental” constituído pela Europa, América, Austrália e meia dúzia de outros países, o “Mundo Oriental” formado pela Rússia, Turquia e países muçulmanos, e o “Mundo Comunista” da China, Cuba e Vietname do Norte - mais algumas migalhas indefinidas que acabavam por colar-se a estes três planetas. Nada muito longe do “1984” de Orwell.
A 12 de Outubro, um indivíduo desconhecido, Pete Hegseth, Secretário da Defesa norte-americano, e, logo a seguir, outro indivíduo uma bocadinho mais conhecido, J.D. Vance, vice-Presidente dos Estados Unidos, fizeram dois discursos, a mando do seu patrão Donald Trump em que declararam, alto e bom som, que o “Mundo Ocidental” deixava de existir como uma unidade político-ideológica e, indirectamente que passa a haver um novo quadro estratégico no Planeta.
Estou a ser dramático, ou pragmático? Decidam por vocês e pensem como serão os próximos 10, 20 anos. Em termos concretos, Hegseth afirmou que os Estados Unidos deixam de ser, a partir de agora, o “primeiro garante” da segurança europeia, ou seja, não defenderão um ataque militar à Europa e não se consideram obrigados pelo Artigo 5º da NATO a defender um membro atacado.
Horas depois, o próprio Donald Trump anunciou que vai encetar conversações com Vladimir Putin sobre a rendição da Ucrânia, sem que a própria Ucrânia ou os países europeus participem das reuniões. Aproveitou para realçar que considerava que a Ucrânia era responsável pela invasão russa e que Zelensky não passava dum ditador. E, no dia 14, na Conferência de Segurança de Munique, o vice-presidente J. D. Vance, em frente de todos os líderes europeus, declarou que o inimigo deles não era a Rússia mas sim os próprios, ao restringirem a liberdade de expressão (!) e permitirem a entrada descontrolada de imigrantes. Para deixar bem marcadas as suas opiniões, recusou-se a reunir com o chanceler alemão Olaf Scholz para se encontrar com Alice Weidel, do partido neo-nazi Afd. A conclusão é simples: a Europa só se safa da decadência dos costumes e da promiscuidade com os imigrantes se escolher os partidos de extrema-direita, os únicos que podem salvar a UE dos seus inimigos.
No dia 18, altos dignitários norte-americanos e russos encontraram-se pela primeira vez desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, há três anos. Embora o objectivo fosse o fim da guerra, não estiveram presentes nem ucranianos nem europeus. No final, o Secretário de Estado Marco Rubio concordou num estreitamente de relações diplomáticas entre os dois países, que “poderão levar a parcerias económicas potencialmente históricas”.
Disse Trump, em Washington: “Acho que tenho o poder de acabar com esta guerra. E acho que (essa possibilidade) está a correr muito bem. Hoje ouvi queixas dos europeus de que não eram convidados para as conversações. Ora, nós não fomos convidados para conversações nenhumas e a guerra já leva três anos. Os europeus deviam ter acabado com a guerra em três anos. Nem a deviam ter começado. Deviam ter feito um acordo.”
Mais tarde, numa publicação na sua plataforma Truth Social”, Trump alargou-se no tema: “Pensando no assunto, um comediante muito bem sucedido, Volodymyr Zelenskyy, convenceu os Estados Unidos a gastar 350 mil milhões de dólares para entrar numa guerra que não podia ser ganha e que nunca devia ter começado, mas uma guerra que ele, sem os E.U. e sem TRUMP, nunca conseguiria ganhar. Os Estados Unidos gastaram 200 mil milhões de dólares a mais do que a Europa, e o dinheiro europeu está garantido, enquanto os Estados Unidos não vão receber nada de volta. Porque é que o Dorminhoco Joe Biden não pediu uma compensação, sabendo que esta guerra é muito mais importante para a Europa do que para nós - temos um grande e muito bonito oceano a separar-nos. Além disso, o Zelenskyy admitiu que metado do dinheiro que lhe mandamos DESAPARECEU”.
E, se estão na dúvida, posso garantir que isto aconteceu mesmo, o presidente dos Estados Unidos da América escreveu exatamente isto (não partilho o link, porque não sou membro da rede Truth Social). Trump ainda insiste que a Ucrânia devia ir a eleições antes de fazer qualquer acordo de paz, insinuando que Zelensky tem medo de perder essa eleição. Mas há mais, e mais inacreditável: Trump acha que a Ucrânia devia ceder por tempo indeterminado 50% dos seus minerais raros, petróleo, gás e uso dos portos como pagamento do que os Estados Unidos “já gastaram". "Honestamente, a ideia de dar tanto dinheiro e não receber mais do que a satisfação de salvar o mundo livre e outra vez a Europa… Bem, temos de ficar pelo menos com alguns portos!”, escreveu Trump.
Que dizer de tudo isto? Acho que não há nenhuma dúvida quanto ao que vai acontecer à Ucrânia. Também não haveria nenhuma dúvida do que aconteceria à Europa, se Trump ficasse mais um mandato no poder. Não é constitucional, mas parece que ele não se preocupa muito com constitucionalidades…
Entretanto, dentro dos Estados Unidos, Musk não pára. Os secretários de Estado já foram todos aprovados pelo Congresso. Mas o que acontecer lá, é problema deles, que votaram em quem quiseram. O mesmo não podemos dizer nós, europeus. E nós, europeus, só vejo dizer que a situação é crítica, sim senhor, que precisamos de fazer armas e treinar soldados. Quanto a ações concretas, nada. O que agora está na linha da frente, na Europa, são eleições críticas em vários países, a começar já pela Alemanha. Lamento, mas, por este andar, a mudança civilizacional de que falei atrás parece-me inexorável. Provem-me o contrário!
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