A propósito do desaparecimento desta figura incómoda, o historiador Nuno Gonçalo Poças escreveu uma biografia, “O fenómeno Marcelino da Mata, o herói, o vilão e a História”, em que narra a vida aventurosa do militar, aproveitando para esclarecer o aspeto mais geral da nossa visão da colonização.

Numa conversa informal, tentamos esclarecer melhor as situações que a pessoa e o tema levantam. A guerra colonial é um assunto desagradável; os mais novos, que não a viveram, não querem saber de mágoas antigas; os mais velhos, que sofreram em vários graus os anos de guerra, têm opiniões radicais que nunca abandonarão. Os factos inegáveis são que foi uma situação em que ninguém nos apoiou e perdemos a guerra. Ficam as histórias pessoais, a perderem-se no tempo.

Há duas questões que o livro levanta: uma é a escolha de um lado, numa guerra, e a outra é a questão mais concreta da Guerra Colonial na Guiné. Quanto ao Marcelino, você escreve que ele é um básico...

Não digo que é um básico, digo que é primário.

Você escreve mesmo, “um básico”. Que é a mesma coisa que primário. Mas ele tem uma filosofia. Porque é que ele optou pelo lado dos portugueses?

Acho que foi por uma série de circunstâncias. Não só do Marcelino, houve outros combatentes negros que optaram por combater pela potência colonizadora. Há o Amadou Djaló, se bem me lembro, há outro que me falta o nome e que também recebeu a Torre e Espada. 

O Marcelino torna-se no caso mais interessante porque é o soldado mais condecorado da História militar portuguesa. Mas a questão é transversal a todos eles, e era o sentimento de muitos negros nas colónias: foram ensinados a ser portugueses; iam para a escola, cantavam o hino, participavam dessas celebrações.

Há um episódio muito revelador, dum sargento que afirmava, isto há uns dez anos, num programa da RTP: “Eu não tive de optar por lado nenhum; eu era português, o serviço militar era obrigatório, fui cumprir. Como estávamos em guerra, fui para a guerra”. Portanto, não era um problema que se colocasse. Seria como perguntar a um português da Trás-os-Montes porque é que tinha ido para a guerra.

A grande questão nisto é a construção da narrativa: porque é que um negro optou por combater por um Império cuja capital nem era em África. Há uma visão racial e uma visão nacional. Mas, para o bem e para o mal, o Portugal de 1974 era um Império e quem nele nascia era português – enfim, uns de primeira e outros de segunda, mas eram portugueses.

Portanto, o Marcelino não se via como um negro, via-se como um português, é isso?

Exatamente. Antes de ser negro, ele era português.

Lembro-me de que, quando andava na escola (muito depois, em Portugal), nos ensinavam que éramos todos iguais, diferentes na cor, talvez, mas igualmente portugueses.

Mas repare que havia uma situação, específica da Guiné, que foi colonizada de uma maneira diferente de Angola e Moçambique. Nestas duas, havia muitos brancos que viviam lá com a família, alguns até tinham nascido lá, e consideravam-se portugueses, sem dúvida, mas também sentiam que aquela terra era a terra deles. Agora, na Guiné – e você tem os números no livro – os brancos de Portugal eram 2.263...

Entre pouco mais de meio milhão de habitantes.

Exatamente. E não só eram poucos como também eram temporários. Você também fala nisso. Ou seja, estavam lá a fazer uma espécie de “comissão de serviço”, um frete, ou para ganhar dinheiro ou como castigo, sem a família, e à espera de voltar para a “metrópole”.

Sim, não lhes passava pela cabeça instalarem-se.

O sistema na Guiné era o colonialismo mais básico, de exploração de matérias-primas com trabalho local e com um mínimo de funcionários a garantir que tudo funcionava.

Na Guiné, quem fazia o trabalho intermédio, os capatazes, contabilistas e tal, eram os cabo-verdianos. Os brancos ficavam acima. Havia, por assim dizer, três escalões.

O Mário Beja Santos, historiador, que foi alferes miliciano na Guiné entre 1968 e 70, escreve sobre uma coisa que nós aqui na metrópole nem sabíamos que existia: o imposto de palhota. Quer dizer: os negros estavam lá nas aldeias deles há séculos, e de repente chegam uns tipos de fora que lhes cobram um imposto por morar onde sempre moraram. Isto é a colonização no seu pior.

Sim, era uma colonização específica, até porque tinha esse aspeto de ser feita através dos cabo-verdianos. O Marcelino, em muitas coisas que diz, tem sempre esse ressentimento contra os cabo-verdianos. Havia ali clivagens muito fortes entre os nativos e os cabo-verdianos, que eram mais instruídos, mais educados. Num país com 34 etnias, com problemas entre si, acabam por ser dominadas pelos cabo-verdianos, gente de fora, numa espécie de “sub-colonização”.

Esta situação fez com que muitos negros, como é o caso do Marcelino, se pusessem do lado dos brancos contra os cabo-verdianos – os “fotocópias”, como lhes chamavam.

Às vezes temos a tentação de simplificar as situações. Uma guerra entre pretos e brancos, uns a lutar pela sua terra e outros que vinham de fora. As coisas não são assim tão simples.

Nem no caso da Guiné?

O caso da Guiné ainda é mais complicado. A começar pelo contexto étnico, pelas fronteiras muito fluidas que havia entre o Senegal e a Guiné-Conacri. Para as tribos, as fronteiras traçadas pelos brancos não faziam sentido. Cada tribo tinha o seu território e era com ele que se identificava, e muitas vezes os territórios passavam essas fronteiras. Os cabo-verdianos supervisionavam aquilo tudo, num verdadeiro processo de colonização.

Através da História, a Guiné também foi colonizada por franceses e por ingleses. Quer dizer, aquela construção que nós conhecemos do Império Ultramarino, editada pelo Estado Novo, é um processo do início do século XX. Há a tentação de dizer “aquilo era nosso há 500 anos”, bem, aquilo era nosso há 500 anos, mas a estrutura que existia quando começou a guerra colonial era uma estrutura recentíssima.

Uma coisa que faz todo o sentido, mas eu nunca tinha lido nada colocado assim tão claramente, é que a oposição ao Estado Novo – a oposição republicana, democrática – não era contra as colónias.

Pelo contrário. Tinha era um projecto de colonização mais eficiente. Aliás, o Salazar era muitas vezes acusado de ter uma visão pouco africanista. O PCP foi o primeiro movimento de oposição a favor da independência das colónias, seguindo as instruções de Moscovo. No jogo da Guerra Fria, a URSS queria “libertar” os países do Terceiro Mundo do “jugo do colonialismo capitalista”. Assim aconteceu a partir do Congresso (da Internacional Comunista) de 1957.

Mas os grandes pensadores da oposição democrática, alguns até ao 25 de Abril, mantiveram a narrativa do Quinto Império.

É o caso do General Spínola, por exemplo.

O caso do Spínola, que não era uma pessoa de esquerda. Mas também foi o caso do Eduardo Lourenço...

Mas o Eduardo Lourenço mudou de opinião.

Pois mudou. Todos eles mudaram! Os casos do João Soares pai, do Cunha Leal, do Norton de Matos. Para a oposição democrática, as colónias não eram uma questão. É muito curioso.

É uma coisa de que não se fala.

Mesmo o Amílcar Cabral (dirigente e ideólogo do PAIGC, Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), quando veio para Portugal, ele e o Agostinho Neto (fundador do MPLA), vêm para estudar, e a primeira participação política deles é somente contra a ditadura. Os movimentos de oposição democrática não tinham necessariamente nada a ver com as causas independentistas.

Isso porque o conceito da independência das colónias europeias ganha corpo na Conferência de Bandungue, em 1955.

Pois, só na segunda metade da década de 1950 é que essas ideias chegam a Portugal. Mas, até ao início da guerra em Angola (1961), a preocupação inicial era derrubar a ditadura.

É curioso; se pensarmos num quadro de História alternativa, se tem vingado a visão do Spínola, que ele tentou impor no início do 25 de Abril, a ideia do Estado Federal, ou se se tivesse caminhado para ela logo no princípio dos anos 60, antes das guerras começarem, muito provavelmente tinha-se feito um processo de autonomia (das colónias) dentro dum único Estado. O grande erro do Salazar foi não ter percebido.

Será que ele não percebeu? Não era estúpido. Ele era teimoso e muito reacionário. Tinha um conceito político pré-Revolução Francesa, achava que as ideias da Idade Moderna eram más – isto dito pelo Freitas do Amaral. Como estadista, devia ter tido a perspicácia de perceber que as independências das colónias era inevitável – porque, como sabe, a História é inexorável, quando um processo começa, é imparável. 

Ele era teimoso, mas, por exemplo, durante a II Guerra Mundial, agiu de uma maneira muito inteligente para manter a neutralidade e negociar com ambos os lados. Não foi fácil. A Falange (milícia fascista espanhola) queria entrar por aqui dentro e unificar a península. Os nossos “amigos” ingleses queriam usar-nos para o que lhes convinha e enxovalhavam-nos quando lhes dava jeito. Os alemães só não nos invadiram porque havia a Espanha pelo meio, que o faria quando eles quisessem. 

Então, o Salazar talvez tenha ficado velho e perdido a perspicácia. A teimosia dele foi fatal – para o regime, para o país, e para muita gente que morreu ou perdeu tudo o que tinha.

O Amílcar Cabral fez várias tentativas diplomáticas de negociar com o Governo português e foi sempre ignorado. Nem lhe responderam.

O que acontece é que hoje ficámos com uma espécie de “direita saudosista” que acha que a descolonização em 1975 foi uma desgraça, porque aquilo ia tudo bem e as guerras estavam ganhas. E quando o Marcelino morreu voltou-se a esta conversa. Na sua morte, o Estado agiu de uma maneira que me pareceu bastante razoável, mas depois o que aconteceu no espaço público foi de uma grande insensatez.

Você escreveu que ele sempre esteve do lado errado da História. E isso é verdade, porque depois do 25 de Abril ele estava cá a salvo e acabou por ser muito maltratado...

Pior não foi, porque lá tinha sido logo assassinado.

Claro. Mas a esquerda portuguesa, o MRPP em particular, não lhe perdoou, e aproveitou a confusão para o torturar.

Foi o MRPP, mas com a complacência de uma série de gente que até tinha estado com ele na Guiné, como o Leal de Almeida, que era comandante do RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa) na altura. Na Operação Mar Verde, o Leal de Almeida foi encontrado pelo Marcelino a vomitar de medo, e depois no RALIS resolveu de certa forma vingar-se de ter sido apanhado numa situação de cobardia.

Aliás, o Marcelino não era corajoso, era temerário. Uma pessoa que não sente medo.

É também por isso que eu digo que ele era um bocadinho básico. E assim ganhou alguma admiração.

Ele descreve as sevícias por que passou aqui, no RALIS, factualmente, sem queixume e sem juízos de valor.

Isso está num livro que se chama “Os últimos guerreiros do Império”, do Rui Rodrigues. E vem no relatório das sevícias que o próprio exército fez posteriormente.

Foi uma injustiça brutal. Porque pode não se concordar com a opção dele pelos portugueses, mas isso não devia levar a que os portugueses o torturassem.

Eu não consigo aceitar, mas posso compreender que, por exemplo, os guineenses que estavam na Guiné tivessem uma grande raiva contra os africanos que combatiam contra eles. Agora, aquilo que nós fizemos foi bastante absurdo. Acabamos por seguir a narrativa do PAIGC e dizer que este africano que lutou por nós fez uma má escolha.

O facto de ele ser o militar mais condecorado também não é uma coisa inocente. Convinha às mil maravilhas ao Estado Novo, um negro que se batia, e muito bem, pelo nosso lado.

Acaba por ser injustiçado por toda a gente. O facto de ser o militar mais condecorado põe-lhe uma carga nos ombros, de caráter simbólico, que o retrata como um elemento da ditadura. E não era o caso. Ele foi um soldado, que tinha a especial característica de ser muito bom. Assim, foi usado pela ditadura e depois voltou a ser usado pelos revolucionários. Se o quisermos comparar com a História da Europa, é a Polónia.

Por acaso estava a pensar nisso a propósito do que se está a passar na Ucrânia, porque há russos que são também ucranianos e vice-versa. As fidelidades não devem ser fáceis numa situação assim. A pergunta é: o que faz um traidor? Porque também houve portugueses que desertaram e ajudaram os movimentos de guerrilha, pois consideravam o governo português ilegítimo, ou pelo menos moralmente errado.

O que é difícil, e eu acho que consigo, é olhar para trás, para todos os lados, e compreendê-los todos. Consigo compreender os portugueses brancos que foram mandados para a Guiné e combateram, os soldados negros que ficaram do nosso lado, os que lutaram contra nós, e os que fugiram, dos dois lados. Portanto não há aqui uma verdade óbvia.

O mais normal seria cumprir o serviço militar do seu país, e foi isso que a grande maioria fez. Na Guiné, até por influência do Spínola, a tropa portuguesa era muito africanizada. O Nino Vieira (militar do PAIGC) também diz isso, que a certa altura aquilo era uma luta de irmãos contra irmãos.

Talvez se dividissem conforme as tribos, não?

Acho que na época da guerra, não. Isso aconteceu depois da independência.

A propósito, achei fantástico o Marcelino falar dos militares portugueses como jovens inocentes, que tinham sido mandados para a guerra sem saber como nem porquê.

Pois, porque aquilo para ele era normal. Chegou a ir para o mato de tanga, com uma catana, e depois infiltrava-se nas populações, porque falava uma série de dialetos. Agora, os portugueses... Um rapaz saído da Guarda, no meio da mata tropical! Ele tinha essa perceção. Eu disse que ele era um básico, mas tinha uma perspetiva política, aquela ideia de fazer uma descolonização gradual e criar um espaço político que toda a gente circulasse livremente e pudesse ser candidato a posições de poder.

Isso foi impossível por causa da intransigência do Salazar.

Exatamente. A ditadura não permitiu que isso acontecesse. Quis manter um estado de coisas que já não era possível.

Hoje, as relações entre Portugal e Angola, por exemplo, são boas. Há milhares de portugueses a trabalhar lá. Podia ter havido uma continuação entre 1945 e a atualidade, sem uma guerra no meio.

Mas veja, a nova direita europeia também não é liberal, acha que certos valores tradicionais são mais importantes. Ou seja, a ditadura não permitiu uma evolução gradual, e atualmente a direita saudosista não consegue reconhecer o erro. Quanto à esquerda, considera que a descolonização foi exemplar, quando de facto foi só a descolonização possível.

Exatamente. Quando a direita critica o Mário Soares pela descolonização, o que é uma injustiça, porque não foi ele que a fez pessoalmente, há um facto de que nunca se fala: no dia 26 de Abril, as nossas tropas nas colónias recusaram-se a continuar a lutar, porque ninguém quer morrer numa guerra que acabou ontem. Portanto, nós não tínhamos capacidade negocial; o nosso governo não podia negociar com as guerrilhas porque as guerrilhas sabiam que o nosso governo não tinha fichas para pôr na mesa.

E o resto da comunidade internacional era a favor de um abandono imediato.

Conheço tipos que estavam a fazer a tropa lá e no dia seguinte o que eles queriam era vir o mais depressa possível para Lisboa. Até largaram as armas para que não houvesse uma justificação da parte dos guerrilheiros para os atacar. A descolonização foi mal feita porque já não tínhamos meios para descolonizar bem.

Obviamente deviam ter-se feito os acordos de outra maneira. Mas, feitas as contas, foi o possível. Depois há outra questão importante, que é termos abandonado os soldados africanos que tinham combatido por nós. 

A direita saudosista tem de fazer aqui alguma autocrítica, assim como a esquerda tem uma série de exames de consciência a fazer.

Não acha que, para lá de esquerda ou direita, houve um tribalismo da parte dos portugueses? Estou a pensar numa situação semelhante que foi a dos “pieds noirs” em França – os franceses que fugiram da Argélia e que foram muito maltratados pelos da metrópole, embora fossem franceses. E nós também não cuidamos dos nossos retornados. Só o termo “retornado” é pejorativo.

Não cuidámos nem os brancos nem os pretos.

Quando se está do “lado errado” da História, não há nada a fazer.

Eu até já disse isto noutra ocasião; nós estamos a dois anos dos 50 anos do 25 de Abril, e acho que era importante chegarmos ao meio século de democracia com alguns temas devidamente apaziguados. Obviamente, não vai acontecer; daqui a dois anos vamos estar pior do que agora. Devíamos todos contribuir para isso, na medida do possível. Ainda há muita gente viva, contudo são os últimos interessados em apaziguar o espírito.

É sabido que o movimento dos capitães foi um processo corporativo (não queriam que os oficiais milicianos entrassem para o quadro, com as mesmas regalias, sem terem passado pela Academia Militar), mas depois perceberam que as suas reivindicações só seriam possíveis com o fim da guerra e que o fim da guerra implicava uma mudança de regime.

O seu livro sobre aquela época é o que li até hoje mais imparcial e mais equilibrado. Consegue, de facto, apresentar os erros dos dois lados.

Isso para mim pode ser um problema, porque muita gente não vai perceber. Já recebi algumas reações, porque há quem espere um elogio ao Marcelino da Mata, e há quem gostaria que eu o crucificasse. Não fiz nem uma coisa nem outra.

Houve pessoas que me mandaram e-mails a dizer “eu não li o livro, mas acho que é uma porcaria!”. Isto porque o título diz “vilão”. Eu não respondo, mas a única resposta possível é esta: diz “vilão” no título, mas também diz “herói”.

Pois, ele foi as duas coisas. A questão é: qual é o lado “certo”? As violências que ele cometeu, e que você conta em pormenor, todos eles cometeram. Ou acha que é possível fazer guerra com boas maneiras?

Ora, aí está. O Marcelino não foi o único soldado que cometeu atrocidades na guerra colonial, tanto do lado português como do lado africano. As barbaridades que ele fez, foram como resposta às barbaridades que os outros fizeram. Estas discussões são muito interessantes para juristas e para filósofos, mas, na prática, quem lá está no mato e tem a adrenalina a correr e a vida em perigo, não tem tempo para pensar na Convenção de Berna.

Você não fez o serviço militar?

Não, eu sou do primeiro ano que foi dispensado, nem inspeção fiz.

Você não sabe a sorte que teve!

Não sei, mas imagino.

Olhe, eu fiz a recruta, fui oficial, e não me lembro de nenhum miliciano que fosse a favor da guerra. Havia uns que não diziam nada para não se entalarem, outros que eram vocalmente contra; e a maioria estava adormecida, nem queria pensar no que lhe estava a acontecer. No dia em que Salazar morreu, estava eu a fazer a recruta em Mafra, e houve quase um levantamento de rancho. Todos aos pulos, aos gritos, aos saltos, felizes, porque, psicologicamente, aquela morte significava o fim da guerra. Não imediato, percebia-se, mas era a primeira luz ao fundo do túnel.

Eu sei que há pessoas que acham que estávamos lá há 500 anos e que foram os comunistas que vieram estragar tudo – essa história. Os comunistas tomaram uma posição anti-colonial, mas porque fazia parte dos interesses de Moscovo no contexto da Guerra Fria.

Bem, concluindo, é difícil ter a imparcialidade que você mostra.

Também tenho a vantagem de ser de uma geração posterior. Consigo ver, à posteriori, que, por um lado, aquilo começou como uma questão corporativa que podia não ter levado ao 25 de Abril, mas por outro lado parece que nega completamente esse corporativismo. Houve corporativismo à partida, mas esse facto não nega a importância da Revolução. 

Dá para pensar naquilo que nós somos, no que éramos naquela altura, e na capacidade coletiva que tivemos para mudar. E ao fim de 50 anos temos uma democracia que pode ter começado por interesses corporativos, mas já se libertou dessa equação.