“Estava a fazer uma direta num sótão e, para não se ouvir o barulho na rua, liguei o rádio. Ouvi tudo e quando ouvi a Grândola vi logo que o que vinha aí não era nada de mau”, contou a procuradora jubilada durante um encontro organizado pela agência Lusa, em parceria com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, para assinalar o Dia Internacional das Mulheres com testemunhos de mulheres que lutaram pela liberdade e que continuam a intervir na defesa dos direitos humanos, 50 anos passados sobre o 25 e Abril.
Aurora Rodrigues, que já conhecera os cárceres da PIDE e a tortura, apanhou o primeiro autocarro da manhã para se juntar à população que seguia os militares no golpe que derrubou o regime.
Seguiu a multidão até ao Quartel do Carmo, palco da rendição do Governo de Marcelo Caetano, e juntou-se à festa, mas não sem antes se assustar quando viu carros a passar na rua com pessoas a gritarem o nome do general Spínola, com o qual não simpatizava ideologicamente.
“As pessoas estavam em festa e pensei: nunca mais me vão prender”, recordou. Acabou por se esquecer que tinha de ir ver um camarada que se encontrava numa casa de refúgio e que só mais tarde veio a saber que não precisava mais de se esconder.
Aurora Rodrigues estudava direito e tinha sido expulsa da faculdade. Às mulheres estava vedado o exercício da magistratura. “A explicação do regime era que as mulheres não tinham fortaleza de ânimo, mas para serem torturadas tinham, como os homens, e até com requintes, porque as mulheres têm fragilidades que os homens não têm, como a menstruação, e usavam isso para nos humilhar”, relatou.
As mulheres, prosseguiu, estavam “ao nível das crianças”, competindo-lhes “o governo da casa” sob a supervisão do marido, o designado chefe de família. “A violação de correspondência era crime, mas se fosse o marido a abrir a correspondência da mulher ou dos filhos menores já não era crime”, afirmou, defendendo que um país inteiro estava sob tortura. “As pessoas desconfiavam umas das outras. Estávamos ao lado de outra pessoa que não conhecíamos e desconfiávamos dela”.
“Há quem duvide que assim tenha sido e queira reconstruir o que já foi”, lamentou.
Ana Maria Braga da Cruz, também licenciada em direito, lembrou que as mulheres viviam “atrás do biombo”. Quando perguntou a um professor por que não podiam seguir a carreira diplomática, a resposta foi “porque as mulheres não sabem guardar segredos”.
Já depois do 25 de Abril, nas ações que desenvolveu em defesa dos direitos das mulheres viu homens a perguntarem, com espanto, “ai agora não se pode bater nas mulheres?”. Da mesma forma que a própria polícia resistia ao conceito de violência doméstica. Um agente chegou a confessar a uma mulher que se queixou do marido: “Então só vem cá por causa de o seu marido lhe bater? Olhe, eu se não bato na minha mulher todas as semanas ela não anda direita!”.
Para Ana Maria Braga da Cruz, a democracia é um processo que, em qualquer momento, pode regredir. Olhando para os três “D” do programa do Movimento das Forças Armadas (Democratizar, Descolonizar e Desenvolver), considerou que ainda há metas a cumprir e que, apesar de já não haver colónias, alguns discursos políticos contra a imigração podem prejudicar o país: “Parece que ainda temos colónias”.
No mundo laboral, entende que ainda não há uma democracia efetiva entre homens e mulheres. “As mulheres são as que ganham menos, mesmo com as mesmas credenciais do que os homens”, o que se reflete depois no valor das reformas, disse.
Regina Tavares da Silva, que acompanhou o desenrolar da revolução em Coimbra, onde se encontrava a fazer um segundo curso, sustentou que as mulheres foram “profundamente discriminadas e mal tratadas com o apoio da legislação que existia” e concordou que não há progressos irreversíveis.
A investigadora sublinhou que o isolamento imposto para travar a pandemia de covid-19 representou uma “particular dificuldade para as mulheres”.
Até a igualdade salarial regrediu, apontou, referindo dados de um barómetro internacional (Global Gender Gap Report), segundo o qual, ao ritmo atual, serão necessários 132 anos para atingir a equiparação entre homens e mulheres. As guerras, a violência contra as mulheres e a violação como arma de guerra foram igualmente apontados pela investigadora, que se dedicou à defesa dos direitos humanos das mulheres no plano internacional e gostaria de ver a dimensão de género incluída em todas as políticas.
Celeste Correia, ex-deputada à Assembleia da República pelo PS, natural de Cabo Verde, falou das dificuldades que ainda enfrenta no trabalho contra a mutilação genital feminina junto de comunidades minoritárias na sociedade portuguesa.
Ainda assim, enalteceu as conquistas alcançadas desde a primeira visita a casa dos sogros, quando se deparou com o sogro a lavar a loiça com um pano na janela para os vizinhos não verem.
Comentários