Cerca de 40 sobreviventes destes campos de extermínio concordaram em falar com a AFP por ocasião dos 80 anos da libertação de Auschwitz.
Em 15 países, de Israel à Polónia, da Rússia à Argentina, do Canadá à África do Sul, contaram suas histórias diante das câmeras, sozinhos ou acompanhados pelos filhos, netos e bisnetos - uma prova do seu triunfo sobre o mal absoluto.
Alguns contaram pela primeira vez o que viveram, outros já tinham contado os horrores que sofreram. Muitos pensam no que será lembrado sobre o que lhes aconteceu quando partirem.
"Faço parte da última geração", diz Evelyn Askolovitch, de 86 anos, que tinha apenas quatro quando foi levada da sua casa, em França, para os campos e sobreviveu a Bergen-Belsen.
"Como o mundo permitiu Auschwitz?", questiona Marta Neuwirth, de 95 anos, residente em Santiago do Chile. Tinha 15 anos quando foi enviada da Hungria para o maior e mais conhecido campo de concentração nazi, na Polónia ocupada.
Cerca de um milhão de judeus, ciganos e membros da Resistência polaca foram assassinados ali entre 1940 e a libertação pelo Exército Vermelho, a 27 de janeiro de 1945. Muitos foram mandados diretamente para as câmaras de gás assim que chegaram.
No total, seis milhões de judeus foram massacrados.
"Porquê?", pergunta Gyorgyi Nemes, de 97 anos, nascida em Budapeste e hoje residente no Canadá.
"Até hoje não entendo por que nos odeiam tanto. Porquê?", questiona a sobrevivente que sobreviveu aos campos de Ravensbruck e Flossenburg, na Alemanha, e de Mauthausen, na Áustria.
Ninguém queria ouvir
Todos tiveram que encontrar um sentido na vida após verem os seus familiares serem mandados para as câmaras de gás, os seus irmãos e irmãs morrerem de fome ou exaustão, ou descobrirem ao fim da guerra que as famílias inteiras tinham sido exterminadas.
Perto dos cem anos, Julia Wallach tem dificuldades para falar sobre o que aconteceu sem chorar. "É muito difícil falar, é duro demais", diz. Esta parisiense foi tirada no último minuto de um caminhão que a levava para a câmara de gás em Birkenau.
Mas por mais difícil que seja reviver estes horrores, ela afirma que continuará a dar seu testemunho. "Enquanto puder, vou fazê-lo". Ao seu lado, sua bisneta, Frankie, pergunta: "Eles vão acreditar em nós quando falarmos disso quando ela não estiver aqui?".
É por isso que Naftali Furst, um israelita de 92 anos sobrevivente de Auschwitz e nascido em Bratislava (capital da Eslováquia) há anos viaja para Alemanha, Áustria e República Checa para contar sua história "para que as futuras gerações nunca esqueçam o que aconteceu".
Também é por isso que Esther Senot, de 97 anos, enfrentou o inverno polaco no mês passado para voltar a Birkenau com estudantes do ensino médio franceses.
Neste caso, cumpria uma promessa feita em 1944 no leito de morte da sua irmã, Fanny, que lhe pediu, em no último suspiro, para "contar o que aconteceu conosco para que não sejamos esquecidos pela história".
"Não teremos morrido por nada", reforça Eva Shainblum, de 97 anos, em Montreal. Foi deportada para o mesmo imenso campo da morte perto de Auschwitz no que atualmente é a Roménia quando tinha 16 anos. Quase toda a sua família foi exterminada.
O que se esquece agora é que por anos ninguém queria ouvir falar da Shoah, como os israelitas chamam ao Holocausto.
Foi só a 7 de dezembro de 1970, após um notável ato de contrição do então chanceler alemão Willy Brandt, que as histórias dos sobreviventes começaram a ser ouvidas.
Ao ajoelhar-se em frente a um monumento em homenagem às vítimas do Gueto de Varsóvia a pedir perdão ao povo, ele ajudou a abrir espaço para que o seu sofrimento fosse ouvido.
"Nem um grito sequer"
O choque de sua chegada aos campos, o horror das seleções, a brutalidade da SS (a polícia nazi) e a eficiência fria do assassinato em massa ainda assombram os sobreviventes que falaram com a AFP.
Muitos já estavam traumatizados com sua jornada até os campos da morte, transportados em caminhões para gado "como animais".
"Éramos cerca de 80, mulheres, crianças e idosos com apenas um balde para as necessidades. Nada de água ou mesmo um pedaço de pão", lembra Albrecht Weinberg, de 99 anos, ainda residente da Alemanha.
"Quando chegamos (a Auschwitz), prisioneiros de uniforme com bastões gritavam, 'Fora! Fora!'. Os idosos caíam do vagão - havia uma pilha deles no chão - e os jovens passavam sobre eles".
A desumanização ainda marca o canadiano Nate Leipciger, nascido na Polónia há 96 anos. "Em questão de minutos passamos de um povo livre para prisioneiros de um campo de concentração com números nos nossos braços, sem qualquer documento de identidade", detalha.
"Eles despojaram-nos das nossas roupas, dos nossos cabelos, e de tudo o que era pessoal, de forma que nos tornamos apenas um objeto e perdemos a capacidade de agir como um ser humano", acrescenta.
Os idosos, os mais frágeis e as crianças eram enviados diretamente para a morte, enquanto os demais se tornaram trabalhadores escravizados.
"Separaram-nos, mulheres e crianças de um lado, homens de outro. Era uma longa plataforma e no final, havia uma mesa com vários soldados da SS", lembra Ted Bolgar, um cidadão canadiano centenário nascido na Hungria.
Os soldados "olhavam para nós e acenavam para a direita ou a esquerda. Não tínhamos ideia do que aquilo significava. Mas descobrimos depois".
Marta Neuwirth, que separava as roupas dos prisioneiros em Auschwitz, viu filas de mulheres nuas a chegar "dia e noite" em comboios que "vinham de toda parte".
"Eles fazian-as atirar as roupas para o chão. Elas não se preocupavam, pensavam que iriam tomar um duche. Não havia nem um grito sequer. Era calmo. Eram enviadas fortes e saudáveis diretamente para os fornos", lembra.
"Desmaiei de fome"
A irmã e a mãe de Bolgar foram mortas na câmara de gás assim que chegaram, "e incineradas à noite". Ele e o pai foram mandados para outro local juntamente com outros durante a seleção quando ele disse ser eletricista.
Aqueles que não foram mortos imediatamente tornaram-se escravos sob o jugo de membros da SS e seus subordinados. "Trabalhavam tanto, de forma tão brutal, que às vezes três pessoas morriam de exaustão num dia", conta Weinberg, que foi posto a trabalhar no enterro dos cabos debaixo de Auschwitz.
"Não sou capaz de encontrar palavras para descrever a ferocidade e a selvageria" dos 'kapos' - prisioneiros recrutados para supervisionar os demais - em Birkenau, conta a francesa Ginette Kolinka, de 99 anos. "Mexa-se ou vou dar-lhe um pontapé. Assim eram os 'kapos'".
Isto sem falar da fome. O polaco Marek Dunin-Wasowicz, de 98 anos, que foi prisioneiro no campo de Stutthof, disse que havia "semanas em que não comia nada. Desmaiei de fome".
E ainda havia as experiências médicas. O americano Sami Steigmann, nascido na Roménia, foi cobaia humana no campo de Mogilev-Podolsky, perto da fronteira com o que hoje são Ucrânia e Moldávia.
"Sinto dores constantes a cada segundo", diz o homem de 85 anos, que viveu boa parte da vida na pobreza. "Eu usava medicamentos extremamente fortes e viciantes, mas há cerca de 45 anos, decidi aprender a conviver com a dor, mas sem remédios".
"Não durmo à noite"
A dor não diminuiu para Hirsz Litmanowicz, mandado aos 11 anos juntamente com o seu irmão para Auschwitz-Birkenau. Posteriormente transferido para Sachsenhausen, na Alemanha, testaram uma vacina contra a hepatite B no seu corpo esquelético.
O irmão morreu no campo, mas Litmanowicz sobreviveu "porque fui escolhido para estas experiências, mas ele não. Não pude sequer despedir-me ou abraçá-lo", conta este cidadão peruano nascido na Polónia, tomado pela emoção.
Hoje com 93 anos, com seis netos e oito bisnetos, admite que "sente a dor pelo que suportei mais agora do que no passado. Eu não durmo à noite, tenho pesadelos".
"Eu tinha uma irmã gêmea", conta o polaco-canadiano Pinchas Gutter, de 92 anos.
Ambos foram enviados aos 11 anos de idade para o campo de Majdanek, na Polónia ocupada. Foi separado de Sabrina, a irmã, no momento em que pisaram naquele "inferno apocalíptico".
A única lembrança dela é a sua "trança loira" enquanto corria em direção à mãe. "A a trança loira magnífica", continua ele, com o olhar luminoso a disfaçar a sua imensa dor.
"Eu esqueci-me de tudo sobre ela (...) Não ter meios de me lembrar dela, de saber como se parecia, exceto aquela trança, é extremamente doloroso para mim", diz Gutter.
Em Buenos Aires, o polaco Petr Polacek, de 88 anos, que tinha apenas seis quando foi enviado para o campo de Theresienstadt, onde hoje fica a República Checa, agarra-se ao que o pai assassinado lhe "ensinou quando foram deportados: a enfrentar a vida".
No caso da israelita nascida em Praga Eva Erben, de 84 anos, foi a força heroica da mãe que a salvou. Eva também esteve em Theresienstadt antes de ser mandada para Auschwitz.
"Ela falava sobre o que faríamos quando voltássemos para casa; o que compraríamos, quais sapatos teríamos, que roupas usaríamos quando fôssemos visitar as pessoas, e como consertaríamos os nossos dentes", lembra.
A mãe morreu na neve durante a "marcha da morte" para a Alemanha e a Áustria, quando os nazis esvaziaram os campos com a aproximação do exército soviético.
O regresso do antissemitismo
Assim como muitos sobreviventes, Nate Leipciger diz que "não esperava que fosse tão importante falar sobre o Holocausto 80 anos depois, mas tornou-se por causa da terrível ascensão do antissemitismo em volta do mundo".
O antissemitismo ressurgiu particularmente após 7 de outubro de 2023, quando milicianos do movimento Hamas atacaram Israel.
Leipciger também vê outras semelhanças com os fatos ocorridos nos anos 1930, durante a ascensão dos nazis. "Ninguém nos queria nos aceitar como refugiados", lembra, embora a diferença hoje é que "nós temos Israel".
Muitos sobreviventes também se sentem amedrontados com a ascensão da extrema direita pela Europa, especialmente do partido Alternativa para a Alemanha (AfD).
"Estes são tempos sombrios", afirma Erich Richard Finsches, de 97 anos, horrorizado com a vitória histórica do Partido da Liberdade (FPOe) na sua Áustria natal. Acredita que os eleitores estão a ser enganados, como foram pelo austríaco Adolf Hitler nos anos 1930.
O medo de caírem no esquecimento atormenta muitos deles. Pinchas Gutter preocupa-se que o Holocausto "seja abafado" pelo peso da História ou pelo fluxo constante de publicações nas redes sociais, acrescenta Eva Shainblum.
"Eu preocupo-me com a nova geração porque eles não têm paciência para escutar", afirma. "Têm essa máquina ('smartphone'), na qual estão conectados dia e noite. Eu vejo isso inclusive com meus netos".
"Durante décadas, disseram que falávamos muito sobre isto... Mas quanto mais as gerações passam, menos elas parecem saber o que aconteceu", preocupa-se a húngara Judit Varga Hoffmann, de 97 anos, sobrevivente de Auschwitz.
A russa Elena Jabina, de 82 anos, que tinha apenas sete meses quando foi mandada para o campo de concentração Klooga, na Estónia, teme que após a morte dos últimos sobreviventes, "provavelmente não reste nenhuma memória disso".
"Há uma frase no Talmud (a fonte da lei e da teologia judaicas) que diz, 'Quem se esquece do seu passado está condenado a revivê-lo'", afirma Catherine Chalfine. O pai, o argelino Gabriel Benichour, sobrevivente de Auschwitz, aos 98 anos não pode mais testemunhar por si próprio.
Ver sua cultura e língua ciganas desaparecer aumenta o sofrimento da vienense Rosa Schneeberger, de 88 anos.
"Os 'Sinti' (grupo cigano) estão a desaparecer", diz a sobrevivente que foi enviada com apenas cinco anos para o campo "cigano" de Lackenbach, na Áustria.
"A maioria morreu durante a guerra" e não há sobreviventes suficientes para manter a comunidade viva, lamenta.
"Sobreviver é uma arte"
Apesar de tudo o que passaram, os sobreviventes agarram-se à esperança e a uma fé na vida que os sustentou no pior que um ser humano pode suportar.
Só é possível ouvir com receio o testemunho de Gyorgyi Nemes, que terminou a entrevista em Montreal a afirmar: "Enterrei o meu marido há dez anos, mas tenho um filho, uma nora e minha família, então eu digo, sou a pessoa mais sortuda do mundo".
Ou às palavras de Ella Blumenthal, de 103 anos, que perdeu toda a família - 23 pessoas - no Holocausto. De alguma forma sobreviveu ao gueto de Varsóvia e aos campos de Majdanek, Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen.
"Foi um milagre termos sobrevivido. Não nos mandaram para a câmara de gás e ainda estou aqui. Então, digo, sobreviver é uma arte", afirma.
"Eu sabia como e Deus me ajudou. Não fui apenas eu, mas ajudaram-me a sobreviver, a ficar de pé e dizer, 'Que mundo maravilhoso!'", continua.
É para esta necessidade absoluta de resiliência e resistência que os sobreviventes se voltam sempre que pedem paz, tolerância e o fim do ódio.
"Sempre ter esperança de sobreviver e lutar por isso", resume a argentina Raquel Lily Soriano Alhadeff, de 97 anos.
Nascida na ilha de Rhodes, na Grécia, sob domínio italiano, sobreviveu ao campo de Auschwitz-Birkenau, e fugiu de um campo satélite de Dachau pouco antes da libertação.
"Precisamos passar o bastão para os jovens", diz Marek Dunin-Wasowicz, que lutou na Resistência Polaca e sobreviveu às marchas da morte aos 15 anos para testemunhar, 75 anos depois, no julgamento do guarda da SS Bruno Dey.
Os jovens "são a única esperança", insiste.
O francês Guy Poirot, um dos sobreviventes mais jovens, concorda.
Nascido em Ravensbruck, 46 dias antes de sua libertação, deve sua própria existência a um milagre, pois os bebês nascidos nos campos eram mortos imediatamente.
"Cabe a vocês, jovens, tomarem as rédeas", afirma, "ouvir àqueles que lhes deram uma consciência".
"Trabalhem juntos, pensem juntos", incentiva. "A vida é em comunidade".
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