Pelas estradas que circundam os montes da Pampilhosa da Serra, o negro é quase omnipresente, avistando-se ainda hoje algum fumo de pequenos reacendimentos. Nas aldeias, tenta-se contabilizar os estragos e entre a população partilham-se as histórias do que viveram na noite de domingo para segunda-feira.

Há quem dê sentido à catástrofe através da crença, há quem lamente as terras que mais ano menos ano ficam sem gente, há quem procure vislumbrar um futuro e há quem lamente as casas que chamam de segunda habitação, mas que são as referências e memórias de muita gente que regressa às aldeias aos fins de semana e no verão.

No Vale Serrão, aldeia próxima das portas da vila, situada numa encosta, são 37 as casas destruídas - a localidade com mais residências afetadas no concelho, de acordo com o município.

Perto da capela da localidade, alguns habitantes vão contando o que viram e o que viveram.

A antiga emigrante Conceição aponta para a padroeira - Nossa Senhora das Preces - e afirma que foi "a força de Deus" que permitiu que "tudo o que estava vivo" tenha ficado vivo.

Apesar do rasto de destruição, a pequena aldeia, que tem umas largas dezenas de casas, mas que apenas tem nove habitantes, conseguiu garantir que as casas habitadas ficassem de pé.

Foi durante a noite de domingo que "o inferno" passou por Vale Serrão e que os nove habitantes (mais outras três pessoas que estavam na aldeia) se lançaram aos baldes e às mangueiras para molhar tudo o que podia ser molhado antes de as chamas começarem a subir a encosta.

No meio da aflição, Conceição só gritava à padroeira da aldeia, ignorando os pedidos do marido para se calar.

"A mim, diziam-me para eu me calar, mas eu gritei tanto que valeu a pena. O gato cercado safou-se, umas galinhas numa capoeira com tábuas velhas safaram-se. Tudo o que tinha vida escapou-se. Casa habitada não ardeu nenhuma e ninguém se escaldou", assegura a habitante de 66 anos, que diz que andou a gritar durante umas três ou quatro horas "Nossa Senhora das Preces salva as pessoas e as casas".

Depois de verem e ouvirem as explosões das botijas de gás e sentirem-se impotentes perante as línguas e "balões de fogo", sete foram para a casa de Conceição e outros cinco ficaram fechados numa outra residência.

"Ficámos em casa até passar aquele maior parafuso, parecia o coração de um ciclone", disse à agência Lusa Conceição, que durante anos foi emigrante em França.

Conceição estatelou-se na cama às 06:00 da manhã de segunda-feira, quando o corpo já não respondia.

"Caí na cama e fiquei o dia todo na cama. O meu corpo ficou todo partido e as minhas pernas tremiam. Não tinha força para dar um passo sequer", sublinha.

A norte do concelho, na aldeia de xisto do Fajão, também em Pampilhosa da Serra, a agência Lusa chegou quando se preparava a vala comum para 60 cabeças de gado que morreram no incêndio.

"Eram de um menino daqui. Ele só chorava. Não tem mais nadinha", conta uma outra Conceição, senhora de 57 anos e de apelido Pereira, funcionária do lar da aldeia que tem cerca de 60 habitantes.

Em Fajão, conta-se 18 casas destruídas, duas de primeira habitação.

"Uma tia minha que está no hospital ficou sem nadinha. Ardeu a casa e o dinheiro e tudo", sublinha.

Durante a noite de domingo para segunda-feira, os habitantes - a maioria mulheres que os homens tinham ido ajudar noutra localidade - tentaram travar a entrada das chamas nas casas, sem água e sem luz.

"As chamas pareciam pedras a bater nos vidros. Eu só gritava a dizer que ia morrer aqui sozinha, com a minha cozinha tapada de fumo", sublinha Conceição.

"Depois, o vento acalmou. Se o vento não acalma, não ficava uma casa em Fajão", sentencia.

Maria José Almeida, com 85 anos, andou de balde na mão em Fajão a apagar as chamas, depois de ter sido acordada às 02:00 na noite de domingo para segunda.

À volta da sua casa, quando acordou, já só havia chamas.

"O vento fazia um barulho que era tão grande que não pensou que fosse fogo. Pensava que era a trovoada que estavam a dizer que vinha, pensava que vinha aí o Ophelia [furacão que passou pelos Açores]", explica Arminda Almeida, filha de Maria José, que veio de Almada na segunda-feira, após as notícias do incêndio.

"Nós, que somos de cá, vamos continuar a vir porque as casas eram dos nossos avós e bisavós, são as nossas memórias. Mas ninguém agora vem ver o paraíso que isto era. Antes, vínhamos para nos sentirmos bem e agora é uma tristeza, uma desolação. Já não regressamos ao paraíso, mas regressamos para cuidar. Isto faz parte de nós", frisa Arminda.