Usando da palavra no congresso do Livre, onde se irá decidir se o partido retira ou não a confiança política à deputada única, Joacine Katar Moreira considerou "absolutamente inédito" um partido propor retirar a confiança política a uma deputada que está há apenas "dois meses e tal" em funções.

Na base desta proposta está, diz Joacine, um relatório que "fere a minha honra a minha dignidade, cheio de inverdades, algumas mentiras, manipulação e omissão".

Para a deputada, a ação do partido contra a sua pessoa revela que "muitos de nós não estamos preparados para os votos que os portugueses nos deram a 6 de outubro". "Isto é inadmissível", considerou, acrescentando que "vai contra a cultura do partido".

A deputada disse ainda que desde que foi eleita que sentiu que a sua liberdade estava a ser restringida pelo partido, desde logo na escolha dos membros do seu gabinete. "O facto é este: desde a minha eleição que eu venho a ser sucessivamente confrontada com a restrição da minha liberdade de escolha, o que começou imediatamente com a definição do gabinete na Assembleia da República e o facto é que isto também não é cultura do Livre, porque no Livre ninguém toma decisões por ninguém. Oficialmente, a deputada única eleita — está regulado — é que escolhe as pessoas da sua confiança pessoal".

As suas escolhas, que não foram ao encontro das do partido, foram depois colocadas em causa, revelou, desafiando os membros do partido a verificar a "excelência" do trabalho realizado desta equipa que, diz, está a ser "desvalorizado sistematicamente" e "manipulado".

"No final, as pessoas que efetivamente desejarem vão ser aqui [nuns documentos que mostrou durante a sua intervenção] todos os elementos e iniciativas realizadas em dois meses meio de Assembleia, porque entendo que haja muito ruído, muito ódio, desinformação e manipulação interna e externa", disse.

"Após olharem para isto entretanto optem em consciência", apelou. "A minha consciência está tranquilíssima", vincou. "Não houve falha nenhuma no cumprimento dos ideais e programa do partido em todas as áreas, em todas as minhas intervenções na Assembleia e isto é facilmente comprovável", defendeu.

Contrariando os argumentos defendidos pela resolução que propõe a retirada de confiança política à deputada, Joacine diz que não ignorou as indicações do Grupo de Contacto no que diz respeito à orientação do voto do Orçamento do Estado para 2020, tendo existido uma reunião na Assembleia da República com vários membros antes da votação; e falou em "inverdades", referindo-se à polémica afirmação de que foi eleita sozinha — publicada na imprensa na sequência da desavença entre deputada e partido relativamente a um voto de condenação de uma incursão israelita na palestina.

"Eu não fiz aquela afirmação, eu falei com a jornalista e disse que não fiz esta afirmação assim, depois dei outra entrevista, mas foi monumentalmente ignorada por quem assina hoje a retirada de confiança. Afinal, umas entrevistas importam muito mais do que outras?", questionou. "Ninguém é eleito sozinho, ninguém", disse, terminando desta forma a sua intervenção inicial.

"Não me peçam calma"

Os ânimos exaltaram-se porém depois da apresentação da resolução que propõe a retirada de confiança à deputada, apresentada por Patrícia Robalo.

Em resposta, de volta ao púlpito, Joacine Katar Moreira disse as acusações de que é alvo são mentira. "Isto é mentira, mentira. Tenham vergonha". "Virem para aqui dizer ao país as mentiras que acabam de referir (...). Como ousam afirmar que não ouvi as pessoas, que não fui leal ao partido, que desrespeitei o que foi decidido? Não me peçam calma, isto é uma perseguição absoluta, isto é inadmissível. Só vos digo isto: eu não fiz nada de errado", reiterou.

Tal como tinha deixado claro à sua chegada ao congresso, Joacine reiterou que não irá abdicar do mandato de deputada.

"Eu não vou renunciar para que as pessoas que votaram nestas legislativas não se sintam defraudadas. Saibam que, independente do resultado, eu vou garantir por não deixar órfãos as pessoas que confiaram em nós em outubro e nos elegeram", disse. "São vocês que vão decidir de querem silenciar as 57 mil pessoas que votaram", acrescentou, salientando as consequências que uma retirada de confiança política pode ter, por exemplo, no tempo que é dado à deputada para intervir na Assembleia.

Com os ânimos muito exaltados, a sessão acabou por ser interrompida para que se possa retomar a calma.

Já à chegada chegada ao congresso, Joacine Katar Moreira afirmou que "está completamente fora de questão" renunciar ao mandato. "Fora de questão, completamente fora de questão", disse. A parlamentar não respondeu, porém, se essa decisão se mantém mesmo que passe a ser uma deputada não inscrita.

A deputada do Livre, eleita nas últimas eleições legislativas de outubro, chegou ao local onde decorre o congresso, em Lisboa, pelas 10:20, cinco minutos depois do seu assessor, Rafael Esteves Martins.

Questionada pelos jornalistas à chegada ao congresso, Joacine Katar Moreira rejeitou ser a responsável pela situação de mal-estar vivida no partido.

Também à chegada ao congresso, o membro do Conselho de Jurisdição do Livre, Ricardo Sá Fernandes, afirmou que quer evitar o "suicídio" do partido e incentivou o consenso.

Em declarações aos jornalistas Sá Fernandes considerou que a rutura entre Joacine e Livre poderá ser o "suicídio do partido" e que está neste Congresso para evitar que tal aconteça. Sá Fernandes considera que não estão em causa "divergências de fundo", mas antes "divergências procedimentais", alertando que uma rutura "não será boa nem para o partido nem para Joacine".

Na opinião do advogado e membro do Livre, deverá ser constituída uma comissão "interinstitucional" entre órgãos que procure encontrar soluções que pretenda ultrapassar "divergências procedimentais".

Sá Fernandes não considera que existam "divergências de fundo", mas sim divergências relacionadas com o "feitio", a "cultura" e alguma "irritação" das pessoas.

"Espero que o partido tenha um sobressalto de bom senso", acrescentou, mostrando-se disponível para ser uma "ponte" entre a futura direção e a deputada eleita.

O advogado confessou que apenas esteve com Joacine Katar Moreira em dois momentos mas que, enquanto membro do Conselho de Jurisdição, a deputada se mostrou "extremamente colaborante" e que não se pode esperar que Joacine "esteja sempre a prestar esclarecimentos".

Admite que possa ter existido "falta de maturidade política", mas que tal não justifica a situação presente.

O que está em causa neste congresso?

A resolução de retirada de confiança política a Joacine Katar Moreira e a forma de organização interna do Livre deverão estar no centro do IX Congresso do partido que se realiza hoje e domingo em Lisboa.

O IX Congresso do Livre, que decorre no Centro Cívico Edmundo Pedro, será o primeiro desde a eleição da deputada única, Joacine Katar Moreira, e do clima de tensão instalado entre a estrutura partidária e a representação parlamentar.

Na passada quinta-feira, a assembleia do partido Livre, órgão máximo entre congressos, decidiu propor ao congresso a retirada de confiança política na sua deputada, justificando, numa resolução, que “não se vislumbra da parte da deputada, Joacine Katar Moreira, qualquer vontade em entender a gravidade da sua postura, nem intenção de a alterar”.

Segundo o Grupo de Contacto (GC), Joacine Katar Moreira, desrespeitou os pontos específicos da 40º resolução, na qual se apelava a um trabalho “de confiança” entre o GC e deputada, após a incidente devido à abstenção num voto sobre a Palestina proposto pelo PCP.

A deputada descurou, “reiteradamente, a comunicação e envolvimento dos órgãos do partido”, nomeadamente nas negociações com o Governo relativamente ao OE2020, recusando-se a revelar o sentido de voto do Livre até ao momento da votação, “contra o conselho do GC”, aponta a resolução.

Antes da divulgação desta resolução, foi conhecida uma moção específica intitulada de “Recuperar o Livre, resgatar a política”, que pede à sua única deputada para renunciar ao mandato e, caso tal não aconteça, que lhe seja retirada confiança política.

O Livre conseguiu eleger, pela primeira vez, uma deputada à Assembleia da República nas últimas eleições legislativas de 6 de outubro de 2019.

Joacine Katar Moreira, que faz parte do Grupo de Contacto ainda em funções, não integra a lista única de candidatos à direção do Livre nem apresentou nenhuma candidatura individual à assembleia. Rui Tavares, membro fundador do partido, apresentou uma recandidatura à Assembleia, órgão do qual faz parte.

Até à data, contactado pela Lusa, nenhum membro do gabinete parlamentar nem a deputada prestaram declarações sobre os acontecimentos recentes.

No final do mês de novembro, na sequência da abstenção de Joacine Katar Moreira num voto no parlamento sobre a Palestina, gerou-se um conflito e troca de acusações entre o Grupo de Contacto, a deputada e o seu gabinete, que chegou mesmo a obrigar a Comissão de Ética e Arbitragem a elaborar um parecer sobre esta polémica.

Na sequência desse parecer, o partido decidiu não aplicar qualquer sanção disciplinar à sua deputada única devido a esta polémica, mas lamentou as declarações públicas de Joacine Katar Moreira.

O Congresso discutirá e votará um total de 18 moções específicas, incluindo o texto intitulado "Pensar o partido" e a sua organização interna, que sugere uma avaliação das dinâmicas dos seus órgãos, incluindo a do Grupo de Contacto.

Este texto, que questiona “algum experimentalismo” do Livre, foi subscrito por Miguel Won, candidato à Assembleia.

A 18ª moção é assinada por Rui Tavares, fundador do partido, denominada de "Novo Pacto Verde: um desafio do LIVRE para Portugal, a Europa e o planeta", relembrando um dos principais pilares fundadores do partido, o "Green New Deal" (Novo Pacto Verde).