O Bloco de Esquerda conseguiu até hoje uma única câmara municipal, Salvaterra de Magos. As condições foram tão particulares que a história não voltou a repetir-se.

Deputada, candidata à câmara de Almada, Joana Mortágua afirma que o Bloco quer continuar a afirmar-se como partido "que também é um partido autárquico". E, a propósito do acordo entre o governação PS e o PSD em Almada, lembra de cor uma frase de António Costa: quem governa com a direita acaba a governar como a direita. "E isso", diz, "não temos ainda como negar". Tece críticas ao executivo de Inês de Medeiros e propõe estratégias alternativas.

A única câmara que o Bloco de Esquerda já teve foi a de Salvaterra de Magos. O que espera o Bloco de Esquerda destas autárquicas?

A câmara de Salvaterra ficou conhecida, porque foi ganha por uma pessoa com características próprias, que tinha uma importância determinada na terra, e candidatou-se pelo Bloco de Esquerda nesse contexto particular. Mas o Bloco elegeu, nas últimas eleições autárquicas, mais vereadores do que aqueles que tinha, mais deputados municipais. Em Almada, por exemplo, tivemos o melhor resultado de que tenho memória. Se não estou enganada, elegemos 15 autarcas no distrito de Setúbal. Temos vereador também na Moita e no Seixal. Penso que o Bloco é um partido que tem as suas fragilidades de implantação autárquica, não vou dizer o contrário. Também é um partido mais recente, numas eleições que são muito marcadas pela bipartidarização, sempre na escolha de quem será o próximo presidente ou a próxima presidente.

As fragilidades de que fala são exatamente a que nível?

Há questões de perceção. O Bloco, de facto, não governou muitas câmaras. Portanto, há questões de perceção em relação à capacidade executiva do Bloco, mas que acho que têm vindo a ser transpostas. Porque a capacidade propositiva do Bloco na Assembleia da República, em particular durante os anos da geringonça e das negociações com o Partido Socialista, como na Câmara de Lisboa, que são negociações minuciosas (na educação, na área dos sem-abrigo, por exemplo), também vai mudando a perceção sobre a capacidade que temos de governar um município.

O Bloco tem 20 anos, já é um partido adulto.

Tem 20 anos e adversários, partidos, que existem desde o início da democracia, que têm presidentes de câmara desde essa altura, têm esse tipo de implantação institucional, implantação, até, nas redes sociais dos concelhos. Mas a política é uma coisa muito mais aberta. Há debates que introduzimos. Por exemplo, o Bloco de Esquerda introduziu o debate da precariedade na Assembleia e nas câmaras municipais. A primeira vez que houve uma política, um programa de combate à precariedade, foi em Lisboa, por proposta do Bloco de Esquerda, quando ainda António Costa era presidente de câmara. Acho que a população reconhece que há debates que são nossos, há temas que são nossos, há propostas que têm esta marca do Bloco de Esquerda.

[O Bloco] Tem 20 anos e adversários, partidos, que existem desde o início da democracia, que têm presidentes de câmara desde essa altura, têm esse tipo de implantação institucional

O Bloco de Esquerda é mais penalizado ou mais beneficiado por estes acordos que faz com o PS, seja no governo, seja na Câmara de Lisboa?

Não creio que possamos fazer um cálculo aritmético, nem que o devamos fazer. O caso da geringonça foi uma maioria parlamentar formada para afastar a direita e um governo que estava a impor programas de austeridade draconianos, a consumir as energias internas da nossa economia, não estava propriamente a ajudar o país. Esse reconhecimento, depois, também ajudou a que houvesse uma renovação dessa maioria. Claro que as relações de força foram-se alterando. Conseguiu-se afastar esse governo de direita, tenho muito orgulho nesse processo. O processo da Câmara de Lisboa tem a ver com uma negociação concreta sobre as políticas que considerámos necessárias para a cidade de Lisboa. Não acompanhei de perto, mas acho que na altura a negociação foi acertada, negociaram-se coisas muito importantes para a cidade. Não acompanho nem fiscalizo esse acordo. Os nossos candidatos, o nosso gabinete, o nosso vereador, Manuel Grilo, fazem-no com muita competência. Eu estou focada em Almada.

Como é que o Bloco de Esquerda seleciona ou escolhe os seus candidatos?

É um processo natural. Não sei se é igual em todos os partidos, mas temos critérios democráticos muito apurados. Ou, pelo menos, gostamos de pensar que sim. Embora a democracia interna seja sempre um processo inacabado. São iniciativas das concelhias, que depois aprovam esses nomes, os principais nomes, em plenário concelhio, em voto secreto. E em relação aos quais a direção nacional tem poder de veto, por uma questão de coesão do partido, por uma questão de capacidade de direção nacional do partido. Mas o processo parte sempre das concelhias, portanto, da organização local.

Perguntas à queima-roupa a Joana Mortágua

O que fazem ou o que faziam o seu pai e a sua mãe? 

Profissionalmente? A minha mãe é assistente social e o pai é técnico de desenvolvimento rural ou, como ele gosta de dizer, contador de histórias.

Quem são os seus amigos? 

Os meus amigos são ou os meus amigos de infância ou as pessoas que se foram cruzando na minha vida política. E são muitas, e não são todas do meu partido.

Quem foi o pior primeiro-ministro de todos os tempos?

Ai, eu de todos os tempos não sei. Dos meus tempos, foi Pedro Passos Coelho.

Qual o seu maior medo? 

Voltar a viver uma ditadura. Ter que me esconder, enquanto pessoa de esquerda, enquanto defensora dos direitos dos outros.

Qual o seu maior defeito?  

Ui... Tenho alguns. Eu tenho mau feitio. Sou espontânea, mas também sou impulsiva. E, portanto, tenho algum mau feitio. Até acho que sou boa pessoa, mas tenho mau feitio.

Quem é a pessoa que mais admira? 

Diria... Isso é muito difícil, porque há pessoas que eu admiro por caraterísticas pessoais, e outras por características políticas. Mas eu admiro muito a minha avó.

Qual a sua maior qualidade? 

Sou, sou... Lá está, tem a ver com aquela história de ser espontânea... Tem o seu reverso. Sou impulsiva, espontânea, o que significa algum grau de honestidade. Algum não. Espero... Muito grau de honestidade. Não sou capaz de grandes cinismo.

Qual a maior extravagância que alguma vez fez? 

A maior extravagância que eu já fiz...? Provavelmente, estará relacionado com algum restaurante caro. Porque eu gosto muito de comer e de experimentar coisas novas, e às vezes excedo-me um pouco nesse meu gosto.

Qual a pior profissão do mundo?  

[Silêncio] Há profissões muito difíceis, mas ser mineiro deve ser... Provavelmente se pensasse mais arranjava qualquer coisa mais criativa, mas pensei, de facto, onde é que eu me sentiria muito mal, não é? Debaixo de terra, no meio do carvão.

Se fosse um animal, que animal seria?  

Um cavalo. São livres, mas andam em manada.

Quem é que não merece uma segunda oportunidade?  

Eu sei quem é que não merece uma primeira. A austeridade não merece uma segunda oportunidade.

Em que ocasiões é que mente?

As chamadas white lies, ou seja, quando uma amiga pergunta se alguma roupa lhe cai mal. Ou qualquer coisa assim. Se fez alguma coisa errada, e nós não queremos que a outra pessoa se sinta mal, então dizemos que sim. Uma amiga ou alguém. Ah, e às vezes as pessoas confundem-me com a minha irmã na rua, e é tão rápido que não vou a tempo de explicar que não sou a Mariana, porque não as quero desiludir. Portanto, não é para mentir, é porque às vezes não consigo ir a tempo de repor a verdade.

Maria das Dores Meira ou Inês de Medeiros?  

Aqui sou obrigada a dizer: Joana Mortágua.

Se fosse uma personagem de ficção, que personagem seria? 

Ai, essa é difícil. Não faço a mais pequena ideia. Não consigo mesmo responder a isso. Não tenho essa flexibilidade intelectual toda. Teria de pensar. Provavelmente, alguma dessas personagens dos novos filmes da Disney, em que as princesas são guerreiras, e as guerreiras são feministas, e por aí afora.

Que traço de perfil obrigatório tem de ter alguém para trabalhar consigo?  

Tem de ser alguém despachado. Ou seja, com capacidade de autonomia e de pensamento próprio, capacidade crítica.

Qual o seu filme de eleição?  

O meu filme de eleição...? Eu vou mudando, não tenho um filme para sempre. Eu fiquei muito impressionada com um filme brasileiro que se chama Bacurau. Porque é uma distopia sobre capitalismo levado ao extremo. Não quero parecer que estou aqui a cair num cliché, o filme é violento. É assim uma espécie de Kill Bill, é estranho e é impressionante ao mesmo tempo.

O que a faz perder a cabeça? 

O que é que me faz perder a cabeça... Hã... Eu ia dizer a injustiça, mas isso é, lá está, é muito... Que fique certo que a injustiça me faz perder a cabeça. Do ponto de vista político, faz mesmo. É uma coisa com a qual eu tenho muita dificuldade em lidar, que é a minha consciência. A minha consciência faz-me perder a cabeça. Mas, além disso, é quando eu estou... Lá está, como eu sou muito impulsiva, quando eu ligo o turbo, a lentidão das outras pessoas faz-me... Não percebo porque é que elas estão a demorar tanto tempo a fazer uma coisa que eu quero fazer muito rápido. Isso faz-me perder a cabeça.

E que a deixa feliz? 

Os meus amigos.

Um adjetivo para António Costa. 

É um resiliente.

Como é que gostaria de ser lembrada? 

Como alguém coerente.

Com quem nunca faria uma aliança? 

Com o Chega.

Descreva a última vez que se irritou 

Provavelmente, hoje ou ontem numa ação de campanha, lá está. Porque eu estaria com pressa para sair, para andar, para distribuir folhetos, para não sei quê e não sei que mais. E o pessoal, legitimamente, ainda estava a organizar-se.

Tem um comida de conforto ou de consolo? 

Tenho. Qualquer comida da minha mãe, em particular cozido à portuguesa.

A que político nunca compraria um carro em segunda mão? 

A António Costa.

Se hoje fosse congelada e acordasse daqui a 100 anos, qual a primeira coisa que ia querer saber? 

Se vivíamos numa ditadura... Se estávamos em democracia. Se podia falar ou se tinha de ter cuidado.

O que seria um bom resultado para o Bloco de Esquerda nestas autárquicas?

Queremos consolidar o nosso resultado autárquico e as nossas posições autárquicas. Queremos continuar a afirmar-nos como partido, que também é um partido autárquico, já não faz sentido fazer essa divisão. O Bloco de Esquerda tem centenas de autarcas dedicados, está preparado, está pronto para ter mais vereadores. Acho que esse é um processo de consolidação. Portanto, o que queremos é eleger mais autarcas.

A direita está em desagregação, está em processo de radicalização - aliás, em sentidos muito perigosos para a democracia

Os novos partidos não vêm dificultar ainda mais esse trabalho de consolidação do Bloco?

São umas poucas centenas de votos. A direita está em desagregação, está em processo de radicalização - aliás, em sentidos muito perigosos para a democracia. Mas, felizmente, aquilo que vemos é que, por um lado, em Almada, essa direita não tem uma expressão que faça danos. Há uma coisa interessante: as sondagens valem o que valem, mas há um dado interessante nas últimas sondagens, que é a pouquíssima expressão que os partidos de direita, sobretudo a extrema-direita, têm junto dos jovens, o que é um bom sinal. Significa que há uma geração que ganhou, consolidou o respeito pelos direitos das pessoas, o respeito pelo combate ao racismo, pelo combate à homofobia, pelo direito à diferença. Isso foram conquistas da minha geração, e é bom ver que a geração seguinte está a defendê-las. Que as dá como garantidas e que não quer abdicar delas. Com certeza que haverá recomposições à direita, isso é natural, basta olhar para aquilo que está a acontecer ao CDS e aquilo que está a acontecer com outros partidos da direita. Haverá uma reconfiguração. Mas há uma resistência também, e essa resistência é popular. Acho que estas eleições não vão confirmar os piores cenários, pelo contrário.

há uma geração que ganhou, consolidou o respeito pelos direitos das pessoas, o respeito pelo combate ao racismo, pelo combate à homofobia, pelo direito à diferença. Isso foram conquistas da minha geração, e é bom ver que a geração seguinte está a defendê-las

Há poucas mulheres à frente de câmaras municipais, mas, de repente, Almada tem três candidatas. É significativo ou não passa de uma coincidência?

É significativo pela visibilidade. Se virmos bem, do ponto de vista democrático continua a ser insuficiente. Temos nove candidatos em Almada - não me quero enganar - mas as candidaturas de mulheres como cabeças-de-lista continuam a ser uma minoria. E é assim no país todo. Almada tem essa vantagem, que é ter uma grande visibilidade. E já teve durante muitos anos uma presidente mulher [Maria Emília Sousa]. Acho que isso é importante. É importante porque a visibilidade destas candidatas, ou destas presidentes, significa um exemplo, significa uma participação das mulheres no espaço público, que é importante. Não significa necessariamente políticas de igualdade, nem políticas feministas. Mas significa uma participação e uma visibilidade que pode ser inspiradora, apesar de ser ainda muito insuficiente.

Há pouco disse que foi o Bloco de Esquerda a introduzir o debate sobre a precariedade. Mas o Bloco de Esquerda também introduziu - e este meu "mas" já diz tudo - a ideia de que só há uma maneira certa de pensar. Há o bom e o mau radicalismo, o da esquerda e o da direita?

Nós introduzimos muitos debates importantes na sociedade. Penso  que, enquanto sociedade, paramos muito pouco tempo para pensar. Como sempre nos disseram, e isso bastava-nos, dizermos que não éramos racistas ou que não somos um povo homofóbico, porque temos uma legislação disto ou daquilo. Nunca reparámos como é que, de facto, somos. Como a nossa sociedade pode ser preconceituosa. Como pode ser racista. Como pode ser homofóbica. E como é que isso está presente todos os dias nas nossas vidas, como reproduzimos esses preconceitos e essas discriminações em coisas que nem sabíamos que estavam lá. Um dos exemplos mais claros é aquele ditado popular que diz "entre marido e mulher não se mete a colher". Avançámos o suficiente em políticas de combate à violência doméstica para perceber que este ditado não está certo. Como em todas as circunstâncias, tem de haver bom senso. Mas o que estava não estava bem. A ligeireza com que se faziam comentários, piadas racistas, por exemplo, não é certo. Uma coisa é a liberdade de expressão, mas o racismo é crime. A discriminação e o ódio. 

Concorda com quem fala numa ditadura das minorias?

Concordo que não deve estar tranquilo quem tem esses preconceitos e não os combate ou não os quer combater. Em relação às ditaduras, gostaria de perguntar a alguém que sofreu preconceito a vida toda por ser gay, que não pôde expressar livremente o seu amor por alguém, que não pôde andar de mão dada na rua sem levar uma pedrada, como conheço algumas pessoas, em que ditadura é que essas pessoas viveram. Porque é melhor não tratar as coisas com ligeireza. Quando falamos em racismo, estamos a falar em séculos de escravatura. Quando falamos em homofobia, estamos a falar em pessoas que foram assassinadas, que foram agredidas. Quando falamos em machismo, estamos a falar no crime que mais mata em Portugal com morte violenta, que é a violência de género, a violência doméstica, estamos a falar em agressões sexuais, em violações. Penso que todas estas vítimas se ofenderiam um pouco quando dizem que os direitos delas são ditaduras de minorias. Os direitos delas são direitos humanos. E isso é uma coisa que é de maiorias, é de todos.

Penso que todas estas vítimas se ofenderiam um pouco quando dizem que os direitos delas são ditaduras de minorias

Vamos, então, a Almada. Quais são, para si, as principais carências do concelho, o que falha?

O povo de Almada, o município em geral, é credor de modernidade. Chegámos a um patamar de desenvolvimento do país e de capacidade económica do país - por muito que queiram dizer que estamos sempre à beira da bancarrota, uma ótima desculpa para privatizar tudo - mas chegámos a um patamar em que já não devia haver pessoas a viver em barracas, já não devia haver gente a viver sem saneamento. Em que já sabemos o suficiente sobre turismo ou desenvolvimento económico para fazer estudos de mercado e perceber que o preço das rendas está a aumentar exponencialmente mais do que os salários, que isto vai levar a uma crise de habitação, que é um problema social gravíssimo.

chegámos a um patamar de desenvolvimento do país e de capacidade económica do país - por muito que queiram dizer que estamos sempre à beira da bancarrota, uma ótima desculpa para privatizar tudo - em que já não devia haver pessoas a viver em barracas

E já temos declarações suficientes sobre alterações climáticas, para perceber que um município que depende de um transporte rodoviário chamado TST, que falha às horas ímpares e avaria às horas pares, não funciona. Porque as pessoas assim não vão largar o carro. E quem não tem carro vive um tormento para chegar ao trabalho. Já devíamos saber o suficiente para não ter 24 mil pessoas sem médico de família. Ou milhares de crianças, ou pelo menos centenas, sem vaga nas creches, no pré-escolar. Direitos humanos é isto: pensar como o poder público pode servir as populações através de serviços públicos.

um município que depende de um transporte rodoviário chamado TST, que falha às horas ímpares e avaria às horas pares, não funciona

E que soluções públicas propõe o Bloco de Esquerda?

Temos tido algumas dificuldades, por exemplo, em propor medidas de combate, de emergência social, neste momento. O caso da habitação é um caso impar, a câmara de Almada não tem resposta para as emergências habitacionais. E, quando digo emergências, estou a falar de emergências.

Não tem porquê? Porque não tem casas? 

Porque não tem casas e porque durante quatro anos também não fez nada para as conseguir. E, ao ver que não as conseguia, também não fez nada para apoiar o arrendamento. Ou para conseguir soluções temporárias. Houve uma estratégia mal desenhada de início, para um problema que era evidente. Toda a gente sabia que Almada tinha milhares de pessoas por realojar desde os anos 90. E em cima da crise cai um fenómeno de especulação imobiliária, que faz com que as famílias trabalhadoras, remediadas, a pequena classe média esteja a ser despejada das suas casas. Mas há outro tipo de medidas sociais que acho que importantes. 

em cima da crise cai um fenómeno de especulação imobiliária, que faz com que as famílias trabalhadoras, remediadas, a pequena classe média esteja a ser despejada das suas casas

Que propostas para a área da habitação?

Claro. Em primeiro lugar... Precisamos de identificar os dois problemas, não é? Há um problema de falta de habitação pública, e é preciso reabilitar aquela que existe. Porque há casas fechadas, porque não têm condições para viver lá ninguém. As casas municipais — são três mil, ou mais de três mil — estão todas em péssimo estado. Culpa, atenção, de anos de negligência da CDU. Mas que este executivo do PS não conseguiu ou não tentou combater. É preciso oferta pública. Isso é absolutamente certo. A câmara tem algumas candidaturas ao IHRU e aos fundos europeus, mas o problema é: a câmara tem de ter mais património público. Tem que construir casas, não há outra forma de resolver o problema. Não pode estar só à espera da boleia do governo. António Costa disse que em 2024 seriam erradicadas as carências de habitação. E a verdade é que, se não houvesse bazuca europeia, nem um cêntimo teria sido investido nisso. Porque o que temos neste momento são candidaturas europeias, as casa vão demorar muito tempo a aparecer. É preciso um programa de arrendamento para jovens. E nós temos programas desse tipo desenhados, como o Porta 65.

O Porta 65 não funciona, o governo já o admitiu.

O Porta 65 funcionou durante muitos anos, era um programa nacional, governamental. Era um programa financiado pelo governo. E o que fazia era: calculava a média entre o rendimento de um jovem ou de um casal (agregado jovem) e a casa que aqueles jovens pretendiam arrendar. E apoiava com uma percentagem da renda, até um teto e desde que as pessoas integrassem essa condição de recursos. É uma medida muito importante, porque se não for assim vamos despovoar os centros mais apetecíveis, as zonas reabilitadas, vamos despovoá-las de jovens. Vamos fazer aqui uma quebra geracional, que já existe no emprego, porque estes jovens já são a maioria dos desempregados, já são a maioria dos precários. E vão ser a maioria dos expulsos dos centros da cidade. Quem quer investir no mercado da habitação em Almada deve contribuir para resolver o problema da habitação em Almada.

Alguém dizia que as políticas do Bloco de Esquerda são a favor dos ricos. Porque ao defender que não se pode mexer nos terrenos agrícolas para construir, por causa das alterações climáticas, está a fazer subir o preço dos terrenos disponíveis.

Ainda há muitos terrenos urbanizáveis na Área Metropolitana de Lisboa, e sobretudo, também, há muitas casas por reabilitar. Pode haver, nessa mesma medida, um apoio à reabilitação, porque também há senhorios pobres. E nós temos de entender isto. Há grandes investidores imobiliários. O apoio à reabilitação ou a negociação de investimentos, que depois se traduzam em percentagens de casas a custos controlados, em percentagens de casas disponíveis para habitação municipal... Isso é bom em muitas dimensões. Coisa diferente acharmos que resolvemos o problema da habitação impermeabilizando todos os terrenos e não protegendo o ambiente e a biodiversidade. Porque aí estamos a condenar-nos à morte. A todos: aos ricos e aos pobres.

Não há um equilíbrio?

Veremos se o clima concorda connosco. Olhemos para a Austrália, para aquilo que aconteceu na Alemanha, aquilo que está a acontecer na Amazónia. Almada está identificada como uma das frentes de entrada de furacões na Europa e na Península Ibérica. Por razões geográficas, temos visto, e tenho assistido, a tempestades cada vez mais violentas na zona ribeirinha. Quando acontecer uma tragédia, quando numa inundação, numa tempestade, desabarem casas, quando morrerem pessoas, vamos ver se o clima concorda connosco. É preciso tomar medidas urgentes, porque já vamos tarde. A ciência tanto tem a capacidade de nos salvar de uma pandemia, como tem a capacidade de nos mostrar que as alterações climáticas serão a grande causa de novos pobres, novos refugiados, de mortos e de fome no mundo.

Almada está identificada como uma das frentes de entrada de furacões na Europa e na Península Ibérica.

Como olha para a transferência de competências do Estado central para os municípios, por exemplo, na área da saúde?

Achamos que a saúde é demasiado importante para ser deixada à capacidade financeira de cada município, e que cabe ao Estado garantir uma igualdade de acesso a cuidados de saúde, embora reconhecendo as dificuldades que esse processo tem tido e a falta de investimento que tem havido, sobretudo em zonas populacionais muito densas, como é a margem sul. Há obviamente uma parte que pertence ao Estado, e que tem a ver com o Hospital Garcia de Orta, que está subdimensionado, foi feito para uma população que já foi ultrapassada em mais de 50 mil pessoas. Até a administração do hospital diz que precisa urgentemente de um grande projeto de requalificação. Que nós apoiamos. Aquele hospital é absolutamente essencial. Obviamente, o Hospital Garcia de Orta ultrapassa a capacidade de intervenção da câmara, mas a intervenção local, a intervenção preventiva, o contributo para abrir centros de saúde, ou reabrir centros de saúde que entretanto foram fechados. Recordo-me do centro de saúde da Trafaria. Uma população que vive isolada, que não tem muito acesso a transportes públicos. O centro de saúde foi fechado na altura do governo da troika, do PSD e do CDS, e aí a câmara tem um papel de ajuda ao financiamento. Mas não teve.

O que é que é preciso para haver uma cidade de duas margens? É haver qualidade de vida igual nas duas margens.

Almada sofre de algum excesso de proximidade com Lisboa?

Não acho que haja excesso de proximidade, acho que há falta de ligação. Muita gente tem dito, muitos partidos têm apresentado o projeto da cidade das duas margens, Lisboa e Almada teriam a capacidade de se fundir como uma cidade de duas margens. Não é um projeto que nos cause rejeição. O problema é que esse projeto não se traduziu em nada. O que é que é preciso para haver uma cidade de duas margens? É haver qualidade de vida igual nas duas margens. E isso não tem havido. Ou haver ligações suficientes. Almada tem uma identidade forte. E essa identidade não corre o risco de se perder, de se diluir. Portanto não devemos ter medo de nos abrir, tanto para os concelhos ribeiros da margem sul, como para Lisboa. Então, não se entende que esteja de costas voltadas para o rio. E está. Toda a zona ribeirinha tem barreiras de acesso ao rio. Ou por destruição ou por abandono. Depois temos de fazer uma coisa que é essencial numa cidade de duas margens, que é ter uma ligação permanente. Uma cidade de duas margens não pode fechar as portas às vinte para as duas da manhã ou às duas e dez da manhã, que é a hora do último barco, conforme o horário de verão ou inverno.