A história arrasta-se desde finais de 2008, altura em que o Banco Privado Português (BPP) se viu em dificuldades para cumprir as suas obrigações e foi intervencionado pelo Banco de Portugal, que, dois anos depois, viria a liquidar a instituição.
Já este ano, o Supremo Tribunal de Justiça manteve a pena de prisão efetiva de cinco anos e oito meses aplicada a João Rendeiro, ex-presidente do BPP, pelo Tribunal da Relação. Resta o recurso que interpôs no Tribunal Constitucional e cuja decisão está por dias.
João Rendeiro está acusado dos crimes de falsidade informática e falsificação de documento, que terão sido levadas a cabo pela administração para mascarar as contas da instituição. No acórdão de 20 de janeiro lê-se que a pena é "justa, adequada e proporcional, sendo, por isso, de manter”.
Recorde-se que em primeira instância João Rendeiro - tal como Paulo Guichard, presidente executivo do banco - foi condenado ao pagamento de uma coima e a pena suspensa pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em outubro de 2018.
Inicialmente, o ex-banqueiro foi acusado de seis crimes de falsidade informática e um crime de falsificação de documento pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa (junho de 2014), um esquema para ocultar as condições de venda de produtos bancários, que terão gerado um prejuízo de 40 milhões de euros escondidos através de sociedades com sede em paraísos fiscais.
O banco de investimento criado por João Rendeiro em 1996 - e que tinha na sua estrutura acionista nomes como Francisco Pinto Balsemão, Stefano Saviotti, família Vaz Guedes (dona da Somague), família Serrenho (dona da CIN) ou FLAD, entre outros - centrava a sua atividade na gestão de fortunas. Tinha cerca de três mil clientes com um património médio de um milhão de euros.
A crise financeira global acabaria por precipitar um pedido de ajuda ao Banco de Portugal, então liderado por Vítor Constâncio, durante um governo liderado por José Sócrates e com Teixeira dos Santos como ministro das Finanças.
Agora, João Rendeiro vem contar a sua versão dos factos no livro "Em Defesa da Honra", que será lançado hoje, às 16h. Inocente ou culpado, a decisão cabe à Justiça, mas para lá deste e de outros processos ainda a correr nos tribunais há um que nunca foi julgado ou tornado público: a gestão assumida pelo Banco de Portugal e os resultados da comissão liquidatária, que terá neste momento mais de 700 milhões de euros que pertencem aos credores. Esta entrevista é também sobre essas contas.
Antes de mais, para recordar, peço-lhe um resumo da história da queda do Banco Privado Português.
Os últimos dados oficiais disponíveis do banco são de 2007. Em 31 de dezembro desse ano o banco estava numa situação excecional. Tínhamos acabado de fazer a operação da Jerónimo Martins, com umas mais-valias brutais, quer para o banco, quer para os clientes, e o banco entrou em 2008 numa situação financeira muito boa. Depois, com a crise financeira de 2008, sobretudo a partir de setembro, houve uma desvalorização brutal dos ativos e todos os bancos foram afetados. A falência do Lehman Brothers dá-se nessa altura e é então que se precipitam um conjunto de situações.
Afirma no livro "Em Defesa da Honra" que a honra é tudo o que lhe resta depois do que lhe tiraram. O que é que lhe tiraram?
Tiraram o bom nome, para começar - e isso não é pouco. Do património tiraram o que foi nos arrestos, mas isso nem é o que mais me preocupa. Essencialmente, considero que me tiraram o bom nome e a capacidade de exercício profissional, porque sou acima de tudo um homem que gosta de fazer projetos, concretizar ideias. As duas coisas estão ligadas, aliás, às vezes o bom nome recupera-se se houver capacidade de realização de projetos. Conheço muitas pessoas que tiveram dificuldades na vida, pelas mais variadas razões, mas continuaram a operar e, fruto do êxito de novas operações, retomaram a sua atividade. Se impedem o exercício da profissão, que foi o meu caso, ficamos com os pés e as mãos atados.
"A degradação da imagem feita de uma maneira tão agressiva transformou-me num ativo tóxico"
Que atividades está actualmente autorizado a exercer?
Do ponto de vista financeiro, nenhuma. Poderia fazer atividades fora do serviço financeiro, mas a verdade é que o impacto reputacional foi muito elevado e as pessoas autolimitaram-se, no sentido de eu colaborar com elas ou elas colaborarem comigo, com medo do ativo tóxico em que me tornei. A degradação da imagem feita de uma maneira tão agressiva transformou-me num ativo tóxico.
O valor do património mobiliário e imobiliário que lhe foi arrestado é superior a 20 milhões. O processo BPP tem quase 13 anos, sete em tribunais. De que tem vivido?
Tenho vivido de empréstimos, poupanças, pequenos trabalhos. Também não preciso de um montante incrivelmente alto, porque o estilo de vida que tinha antes tinha a ver com a natureza da minha função.
Há neste processo outras pessoas a quem tiraram alguma coisa, como aquelas que acreditaram em si e no BPP e investiram lá tudo ou parte do que tinham.
Fala-se muito no que as pessoas perderam, mas, na verdade, dos múltiplos veículos que o banco teve houve apenas um onde as pessoas, de facto, perderam dinheiro: a Privado Financeiras. Eu incluído, porque era um dos principais investidores.
"Perdi [Privado Financeiras] cerca de quatro milhões de euros e o veículo tinha perto de 200 milhões de euros"
Quanto perdeu nesse veículo e qual o montante total aí investido?
Perdi cerca de quatro milhões de euros e o veículo tinha perto de 200 milhões de euros.
Qual o valor máximo individual perdido nesse veículo?
Não sei dizer.
Como é que alguém recupera dessas perdas?
Repare, só um louco investe 100% do seu património num único veículo, nunca recomendámos que uma pessoa investisse 100% do seu património num único produto, isso é completamente sem sentido. Conheço praticamente todos os investidores da Privado Financeiras e não conheço ninguém que tenha ficado em dificuldades por causa desse veículo exclusivamente.
Ninguém foi ter consigo a pedir explicações ao longo deste tempo?
Não. Sempre andei sozinho na rua sem qualquer assistência e nunca tive o mínimo problema.
E nunca tentou explicar-se a algumas dessas pessoas, desses investidores?
Tentei sempre explicar-me. Não no caso da Privado Financeiras, mas no caso dos clientes de retorno absoluto. Conto no livro que fui ao Porto sozinho ter com um grupo de clientes que foi receber-me ao aeroporto: "Então está sozinho?", perguntaram. Eu praticamente não os conhecia, fui sozinho falar com eles e não houve problema absolutamente nenhum. Nunca tive nenhum problema em falar com as pessoas e, pelo contrário, sempre tentei ser parte da solução. Agora, uma coisa é certa, a administração que me seguiu e o Banco de Portugal sempre rejeitaram a minha colaboração. Se a perspetiva era de recuperar e de resolver, penso que a minha colaboração teria sido muito útil. Mas hoje percebo que nunca a quiseram porque essa não era a perspetiva.
Antes de avançar gostava de saber o que significa para si a palavra honra?
Para mim honra é um conjunto de princípios fundamentais que têm a ver com os valores essenciais que nos regem, valores esses que estão ligados, se calhar, aos Dez Mandamentos, se quiser. Para mim é isso.
É católico?
Hoje sou um mau católico, mas na minha juventude fui um bom católico, talvez. Depois, a disfunção entre a teoria e a prática na Igreja Católica levou a um certo ceticismo. Agora, reconheço nos valores católicos e nos Dez Mandamentos algo de fundamental, e considero que são valores que nos ajudam.
Reza?
Mal.
Conta que a certa altura lhe chamavam o banqueiro dos ricos, mas lembra as histórias dos meninos da Lapa, onde não se integrava. Ficou-lhe o trauma?
Acho que sim, que ficou. Penso que o superei de alguma maneira, mas durante muito tempo era um trauma, não tenho qualquer dúvida.
"Como é que eu, que era de certa maneira marginalizado pelos banqueiros - o Ricardo Salgado, o Jardim Gonçalves, etc., que me consideravam uma sardinha, eles eram os tubarões -, era de repente transformado pelo Ministério Público num tubarão"
Porquê? O que faziam os seus pais e como foi a sua infância?
Os meus pais... Eu tinha uma situação um pouco sui generis. Digamos que era o mais rico da rua, mas o mais pobre do bairro. Esta situação colocava-me pouco à vontade, quer em relação a uns, quer em relação a outros. Como sabe, as crianças e os jovens são extremamente cruéis, e eu era alvo de bullying por parte dos tais meninos da Lapa, um bullying muito claro. Esse trauma aconteceu, mas penso que foi superado. Mas achava sempre um bocado estranho, e extraordinário, como é que eu, que era por assim dizer o que estava do lado errado dos ricos, de repente passei a ser o super-representante dos ricos. Isto para mim foi sempre uma coisa um bocado estranha: como é que eu, que era de certa maneira marginalizado pelos banqueiros - o Ricardo Salgado, o Jardim Gonçalves, etc., que me consideravam uma sardinha, eles eram os tubarões -, era de repente transformado pelo Ministério Público num tubarão.
De uma maneira ou de outra foram todos apanhados na rede, não?
Foram todos apanhados na rede mais ou menos, afinal, parece que a sardinha é a única que vai levar com o peso dos tubarões. Esta situação disfuncional que acompanha a minha vida, primeiro com os chamados meninos da Lapa e mais tarde com os banqueiros, é uma situação que acho sui generis e que não deixa de ser curiosa.
Ainda não me disse o que faziam os seus pais...
A minha mãe era doméstica, embora fosse uma mulher altamente inteligente e empreendedora, o meu pai era um "zapatero", tinha uma loja de sapatos, onde consertava e fazia sapatos, em Campo de Ourique, num prédio que era do pai dele. Portanto, eram simultaneamente pequenos proprietários e trabalhadores. Eram pessoas da classe média, não sei se alta se baixa, mas tinham uma vida decente, nunca me faltou nada. Nunca me faltou nada, mas quando quis ir estudar para Inglaterra não tinha dinheiro, se não tivesse uma bolsa do British Council não teria estudado lá. Fiz a escola primária nos Salesianos, que era uma belíssima escola e eu era dos melhores alunos, mas quando passei para o liceu os meus pais não tinham dinheiro para me manter lá. Fui para a escola pública, nessa altura. Depois, aos 18 anos - casei muito cedo - e até acabar o curso de Economia, foi a minha mulher que trabalhou para financiar os meus estudos. Não me estou a queixar, mas tive uma vida de luta. E acho que só faz bem às pessoas, sem problema nenhum lhe digo.
"Pedem-me responsabilidades a mim, mas do outro lado é uma caixa negra"
Admitiu várias vezes que cometeu erros. Qual foi o seu grande erro em todo o processo do BPP?
O meu grande erro foi ter acreditado no Banco de Portugal e não ter percebido que havia, de facto, uma determinação política de Sócrates - depois percebo, não o conseguindo provar - alinhado com interesses de Ricardo Salgado, no sentido da não viabilização do banco. Se quiser, outro grande erro - não considero erro, mas pode haver quem considere - foi ter sido demasiado ambicioso no crescimento do banco, e ao ter o banco a crescer de uma maneira tão rápida, pisar os calos dos tubarões, com a sardinha a querer engordar muito rapidamente, e ter causado uma reação epidérmica dos tubarões a querer comer a sardinha. Mas aí entramos noutra dimensão de questões, na medida em que se pode ser mais ou menos ambicioso ou se num país há espaço para projetos que podem vingar.
Essa ambição era visível nas contas do banco? O Banco de Portugal nunca percebeu essa ambição?
Sim, mas o Banco de Portugal nunca colocou o mínimo de problema em relação a essas ambições.
Como era a comunicação com o Banco de Portugal ao longo dos anos, desde que o banco foi criado até ao pedido de ajuda?
A comunicação era permanente, o banco mandava todos os meses montanhas de reportings para o Banco de Portugal, havia equipas do Banco de Portugal - e da CMVM - que sempre que entendiam faziam inspeções presenciais no banco. Portanto, havia uma comunicação permanente. O Banco de Portugal conhecia o Banco Privado de olhos fechados.
"O Banco de Portugal conhecia perfeitamente a maneira como funcionávamos, e o mesmo em relação aos auditores"
O Banco de Portugal nunca colocou nada em causa, nenhuma informação?
Nunca colocou nada em causa porque o banco funcionava bem e tinha óptimas contas. O Banco de Portugal vem depois colocar em causa uma interpretação contabilista distinta sobre a valorização dos ativos dos clientes do chamado retorno absoluto e a existência ou não de provisões nas contas. Mas essa diferença era algo que era do conhecimento do Banco de Portugal, o vice-governador Pedro Duarte Neves, responsável pela supervisão - que depois também esteve na primeira fase do BES e penso que foi o autor daquela teoria extraordinária que foi o ring-fencing -, chegou a pedir-em desculpa, em 2008. O Banco de Portugal conhecia perfeitamente a maneira como funcionávamos, e o mesmo em relação aos auditores. Os auditores sabiam tudo e mais alguma coisa.
Quando percebeu que o banco estava em apuros pediu ajuda ao governo ou ao Banco de Portugal?
Ao governo nunca recorremos, só falámos com o Banco de Portugal. Até setembro de 2008 a situação não era de nenhum alarme extraordinário. Já havia preocupação, havia a deterioração financeira a nível mundial, mas do ponto de vista das nossas contas, das nossas operações, não havia um impacto ainda significativo. Mas começámos a ter, digamos, cautelas e preocupações adicionais, como é óbvio. E tivemos uma reunião no Banco de Portugal, que por sua iniciativa chamou todos os bancos, não só nós, para ter uma visão mais fina do que estava a acontecer e de como cada banco estava a reagir. E tivemos uma reunião no Banco de Portugal em que fizemos projeções da liquidez até final do ano, e nessa altura ainda não havia absolutamente nenhum sinal de alarme. O sinal de alarme começa, de facto, em novembro.
O que espoletou esse sinal de alarme?
Acontece com a mudança de rating. Salvo erro, a 11 de novembro a Moody's mudou o nosso rating, o que acelerou as preocupações sobre o banco. Olhe, perguntou-me sobre os erros que cometi, ter rating foi um erro. Eu tinha sido aconselhado a que o banco não tivesse rating - o Banco Finantia, por exemplo, não tinha, lembro-me de ter falado informalmente com António Guerreiro, que me disse que eram demasiado pequenos para isso. Porque as empresas de rating têm actuações pró-cíclicas, quando há um mal dizem que o mal é ainda pior, agravam a doença, a bola de neve cresce mais. Ter rating foi um erro bem intencionado, no sentido em que me parecia que era um sinal de transparência, feito para ter um escrutínio adequado. Dos pequenos bancos da altura, só praticamente nós tínhamos rating. O que houve na altura foi, no essencial, foi o congelamento dos mercados de repos [Repurchase Agreements ou Acordos de Recompra]. Grande parte das instituições financiava-se através da compra e venda de ativos. Com o congelamento, as financeiras deixaram de se poder financiar. Se quiséssemos, podíamos ter continuado a funcionar, mas vendendo ao desbarato ativos bons, o que significaria que os clientes nunca mais iriam recuperar o dinheiro investido. O que fizemos foi pedir ajuda do Banco de Portugal, inicialmente para nos apoiarem numa linha que tínhamos negociado com o Citibank.
Que linha?
Tínhamos negociado com o Citibank uma linha de 750 milhões de euros, só precisaríamos da garantia do Estado, à qual contra-garantiríamos os nossos ativos.
Se o Estado tivesse dado a garantia, hoje estaria tudo bem?
Hoje estaria tudo bem. Em 2012 ou 2013 não lhe poderia dizer isto com esta confiança, mas hoje, vendo que todos os clientes receberam ou vão receber os seus ativos, posso afirmar isso. Os clientes de depósito receberam os seus ativos logo em 2009 - depósitos à ordem e depósitos a prazo -, com os 450 milhões de euros de empréstimo concedido ao banco. EM 2010 constituiu-se o FEI [Fundo Especial de Investimento], com os ativos que não tínhamos vendido e que estavam lá disponíveis. O fundo teve um desenvolvimento excecional ao longo de cinco anos, o fim dos quais foi havendo distribuições. No final foi liquidado, fizeram-se as contas, e o presidente da Associação de Clientes, Dr. Jaime Antunes, disse, e é citado no livro, que mais de 90% dos clientes tinha recebido o seu património, o que significava capital e juros. Portanto, nessa altura as duas maiores tranches de clientes estão resolvidas, os depósitos e o retorno absoluto. Mas ficou por saldar uma percentagem dos maiores clientes, tipicamente os que tinham mais de 10 milhões de euros, que não receberam do FEI a totalidade do seu investimento (estimo que cerca de 10% do residual não tenha sido recebido através do FEI). Para dar um exemplo, um cliente que tenha investido 30 milhões só ainda não terá sido ressarcido em três milhões. Mas esses três milhões constam de um crédito sobre a massa insolvente.
E de quanto é nesta altura a massa insolvente?
Em janeiro, segundo a informação que me deram por portas e travessas, a massa insolvente era superior 700 milhões de euros.
Onde está esse dinheiro e quando será distribuído?
Tem de ser entregue, não pode ser roubado. A questão está em saber quando.
Há relatórios publicados com esses valores?
Não há relatórios publicados.
Desde quando?
Desde sempre, nunca foi publicado nenhum relatório, quando, segundo a lei, teriam de ser publicados trimestralmente para que os credores vão tomando conhecimento. Evidentemente que há uma comissão de credores completamente controlada pelo Banco de Portugal, mas há muitos outros credores e, além disso, há os acionistas do banco, como eu, que têm direito a saber o que se passa. Até do ponto de vista da transparência e das responsabilidades: pedem-me responsabilidades a mim, mas do outro lado é uma caixa negra. Estamos a falar de clientes com responsabilidade fiduciária do banco, patrimónios que estavam à guarda do banco e pelos quais o banco respondia. Esses patrimónios são aqueles de que temos vindo aqui a falar (depósitos e retorno absoluto) e é sobre essa pequena percentagem que a massa insolvente vai responder. Os outros patrimónios de que estamos a falar, os tais veículos de risco, como a Privado Financeiras e outros, respondiam pelo seu património em si mesmo. Os ganhos e as perdas desses veículos nada tinham a ver com o banco, eram da sua responsabilidade e não podem ir à massa insolvente. Obviamente, todos conheciam o risco.
Quantos veículos existiam?
Uns vinte, talvez. Eram muitos. Mas o que era importante nestes veículos era o contrato de gestão. Muitos destes veículos eram alavancados, tinham crédito do banco, e quando o Banco de Portugal intervém só no banco há um vínculo fundamental que se quebra: o contrato de gestão. E a garantia para o banco da honra daquele crédito era o contrato de gestão, na medida em que controlava a gestão e, simultaneamente, os ativos e passivos. Há aqui um erro crasso de intervenção do Banco de Portugal. Se me tivessem perguntado, teria dito para não o fazerem, porque existia esta ligação umbilical. Poderia sempre reclamar os seus créditos em processo cível, mas não era a mesma coisa controlar a gestão dos veículos ou ficar a nu perante essas sociedades. Depois, há um segundo erro, que tem a ver com a utilização do empréstimo dos 450 milhões de euros com garantia do Estado. O banco tinha 450 milhões de euros mais a liquidez residual que ainda lá estava, uns 500 milhões de euros. Para um banco daquela dimensão, 500 milhões de euros é muito dinheiro. A gestão do Banco de Portugal podia perfeitamente negociar com os clientes: recebam lá 10% ou 20% dos vossos patrimónios, para terem alguma liquidez imediata para necessidades urgentes, e vamos fazer uma moratória de dois ou três anos, esperar que os mercados recuperem - como vieram a recuperar - e tudo isto volta ao normal. Era uma estratégia perfeitamente razoável.
Afirmou que em 2012 ou 2013 ainda não podia afirmar com certeza que o banco tinha solução. O Banco de Portugal também não podia, no final de 2008, adivinhar o que aí vinha. Se tivesse dado a garantia, qual poderia ter sido a perda máxima para o Estado?
Repare, havia alguma segurança sobre a perda e uma noção de que a perda era limitada pela qualidade dos ativos. Como se tratava de ativos de rendimento fixo, que na maturidade valiam 100%, não era complicado. Vamos supor que estamos a quatro anos da maturidade e um ativo vale 20%, sabemos que daqui a quatro anos, a não ser que haja um default [incumprimento], esse ativo vai valer 100%. Portanto, o Estado e o Banco de Portugal não apoiaram porque a vontade política foi de não apoiar, porque do ponto de vista técnico havia a possibilidade de demonstrar que as perdas iam ser limitadas, como vieram a ser.
Ainda sobre os erros, em algum momento foi julgado por má gestão ou gestão danosa?
Não, mas perceção pública é essa. Se perguntar a uma pessoa comum se há muitos lesados no BPP, as pessoas dizem que sim, quando na verdade não há nenhum. E o que é mais espantoso é que não tenho nenhum processo de nenhum acionista.
Não há sobre si, mas há sobre as entidades pelas quais dava a cara...
Há sobre os veículos de investimento e a gestão dos veículos de investimento.
No âmbito global BPP quantos processos foram abertos?
São coisas distintas. Podemos ir lá, mas falando só no banco, não tenho um único cliente de todas estas áreas de retorno absoluto que me tenha colocado um processo. Tenho dois processos de clientes, um dos quais sobre a Privado Financeiras, onde fui absolvido duas vezes em primeira instância e que está há quatro anos no Tribunal da Relação à espera de decisão. E outro cliente colocou um processo sobre a emissão de obrigações subordinadas do banco, que emitimos em setembro de 2008. Esse processo está em julgamento, mas o cliente tem acesso à massa insolvente, pode perfeitamente ser ressarcido.
Afirma que temos uma justiça de chinelo. O que quer dizer com isso?
Temos uma justiça de chinelo porque é uma justiça populista, que reage a impulsos populistas, é feita nos jornais e transmitida para os tribunais. A não ser que pensemos que os juízes não são pessoas de carne e osso e não vivem integrados na sociedade e não respondem aos seus estímulos, mas penso que ninguém acredita nisso.
"Vejo uma justiça que é altamente influenciável pelas narrativas que vêm dos reguladores e do Ministério Público, que fazem apelo aos impulsos mais básicos da populaça e que geram sentenças do género da que eu tive"
Há sempre o juiz Ivo Rosa.
Sim, mas é uma exceção, reage a contrario, que é outra maneira de reagir a estímulos. Mas, no essencial e da minha experiência, vejo uma justiça que é altamente influenciável pelas narrativas que vêm dos reguladores e do Ministério Público, que fazem apelo aos impulsos mais básicos da populaça, chamemos-lhe assim, e que geram sentenças do género da que eu tive, em que sou condenado por ser banqueiro.
A condenação não é por ser banqueiro, é por falsidade informática e de documento.
Não, não, engana-se. A condenação em primeira instância é essa, mas na Relação já não, é por ser banqueiro. Está escrito na sentença - o que é espantoso, se estivesse subentendido era outra coisa. Diz textualmente que é preciso punir os banqueiros para dar um sinal à sociedade de que a justiça está a ser feita. Isto está escrito. Não sou jurista, mas na passagem da primeira instância para o Tribunal da Relação há uma alteração de critério e o Tribunal da Relação deixa de considerar questões de prevenção específica relacionadas com este caso, para passar a considerar questões de prevenção geral, que têm a ver com os bancos e os banqueiros. E é isso que leva a uma alteração da minha pena.
O processo dura há treze anos, sete em tribunal. É muito tempo?
É uma vida. Repare, o banco nasceu em 1996 e durou até 2008, são 13 anos. Tenho tantos anos de processo quantos anos de vida teve o banco.
Isso é só culpa da acusação ou também da defesa e das chamadas manobras dilatórias?
Coitados dos advogados. Destes 13 anos, só para o Ministério Público deduzir a acusação foram uns quatro ou cinco, está a ver o gigantismo do prazo. Depois, cada julgamento dura facilmente dois anos. Tudo isto é um funcionamento completamente injustificado. Vivi em Inglaterra e conheço bem os Estados Unidos, países onde um julgamento tem meia dúzia de sessões e ponto final, toca a andar.
Já dava tempo para ter sido preso e estar cá fora, é isso?
[Ri] Sim, sim. Se fosse para ser preso, já estava pronto para outra.
Voltando ao Banco de Portugal: em 2008 a forma de agir do supervisor era um pouco diferente, uma sugestão era uma ordem. Era assim?
Estamos a falar em especial de novembro/dezembro de 2008, uma época em todos os bancos necessitavam da ajuda do banco central, não havia nenhum que não precisasse.
Essa conclusão saiu daquela reunião para a qual o Banco de Portugal chamou os presidentes dos vários bancos?
As informações não aparecem num único ponto, numa data única. O que vemos, é que os bancos precisaram de ajuda. Os bancos sistémicos estavam todos a utilizar uma facilidade do banco central, a ELA [Emergency Liquidity Assistence]. Para utilizar essa facilidade de emergência, os bancos tinham de ter a concordância do Banco de Portugal, portanto, estavam na mão do Banco de Portugal. Se o Banco de Portugal dissesse não dou, o banco fechava. O Banco de Portugal tinha a faca e o queijo na mão, podia chegar ao pé de um banco e dizer: se não concordares com a fusão tal, acabou-se a ELA, adeusinho, até amanhã. Naquela altura os bancos estavam todos altamente vulneráveis e a necessitar do apoio do banco central, não tinham margem de negociação. Se o banco central chegasse à conclusão de que o melhor para o sistema é o senhor A e o senhor B fundirem-se ou o senhor A comprar o senhor B, isso ia acontecer. E foi o que aconteceu nos Estados Unidos, onde o senhor Paulson [secretário do Tesouro] e o senhor Geithner [presidente do Banco da Reserva Federal de NI] decidiram:o Merrill Lynch vai com este, o Goldman Sachs vai com ele, o preço é este e ponto final. Isto é normal? Não, mas a situação não era normal. Se hoje o banco central chegasse ao pé de um banco a dizer "tu vais comprar aquele", a resposta seria: "Desculpe, mas tenho outras ideias". Porquê? Porque não está numa situação de emergência e de necessidade.
Nessa situação de emergência Vítor Constâncio, então governador do Banco de Portugal, teve uma reunião consigo em que lhe disse que o BPP seria fundido com o BCP. Foi assim?
Sim, reuniu-se comigo e falámos sobre o banco, o que eu propunha, a valorização dos ativos, o valor acionista que eu propunha para a venda do banco. Ele achou um valor perfeitamente razoável e disse. "Vai haver uma fusão com o BCP".
Porquê com o BCP?
Porque era verdadeiramente o único candidato que tinha condições. O outro banco que poderia fazer uma fusão era o Banif, e até havia uma ótima relação entre mim e Horácio Roque, mas o Banif - eu ainda não sabia, mas o governador do Banco de Portugal sabia - tinha muito mais problemas do que nós. Disse [Constâncio] que tinha tido uma longa conversa com o Carlos Santos Ferreira e que nessa longa conversa tinham acordado a operação de fusão. E diz: "Então amanhã o Carlos Santos Ferreira vai reunir-se consigo para darem andamento às coisas". Fiquei convencido de que assim iria acontecer. Depois, vim a saber que nessa noite houve uma intervenção do primeiro-ministro [José Sócrates] via Armando Vara para impedir que isso se concretizasse. No dia a seguir, Carlos Santos Ferreira vem dizer-me: "Olhe, você pensava que eu vinha aqui para isto, mas não vai ser, não vai acontecer".
Explicou-lhe porquê?
Explicou. Não disse as verdadeiras razões, não podia, mas disse que a administração do banco lamentava mas não podia concordar, porque isso podia afectar o próprio rating do BCP - que também já estava nas ruas da amargura, portanto, não havia muito a piorar. Deu uma desculpa, digamos, esfarrapada, mas o resultado final foi esse.
"Constâncio, nessas circunstâncias, vergou-se à realidade. Eu chamo-lhe cobarde, mas é um cobarde que eu até compreendo"
O que o faz acreditar que quem impediu a operação foi José Sócrates?
Era o único que tinha poder contra uma decisão do governador [do Banco de Portugal]. José Sócrates mandava no BCP via Vara e via Santos Ferreira e também mandava, de certa maneira, em Constâncio. Se Constâncio fizesse o que Sócrates não queria, a sua carreira estava arrumada, e ele queria ir para o Banco Central Europeu, o que não aconteceria sem o apoio do primeiro-ministro. Constâncio, nessas circunstâncias, vergou-se à realidade. Eu chamo-lhe cobarde, mas é um cobarde que eu até compreendo.
Miguel Cadilhe também lhe chamou isso num julgamento de Jardim Gonçalves. E disse uma coisa sobre as off-shores, onde iam dar todos os problemas...
As off-shores estão completamente em desuso. A alternativa é utilizar empresas em praças financeiras de boa situação, constituir empresas no Luxemburgo, na Holanda e por aí fora. Na medida em que haja oportunidade de planeamento fiscal, os atores vão tentar utilizar essas oportunidades. É o mesmo que pôr chocolates em cima da mesa e pedir a uma criança para não lhes tocar. À quinta vez, o chocolate está a ser roubado. Aquilo que critico é que não haja uma uniformização da fiscalidade - agora há uma proposta do presidente americano para uma taxa mínima de tributação das sociedades a nível mundial, 21%, salvo erro, por forma a não haver jurisdições de baixa tributação e para as multinacionais poderem pagar os impostos localmente. Porque na medida em que as autoridades mundiais permitem a existência e paraísos fiscais, alguns dos quais no interior da União Europeia, não podem admirar-se que os atores os utilizem. Mas depois vêm os procuradores nacionais dizer que é planeamento fiscal agressivo ter uma sociedade constituída na Holanda. É uma contradição que não faz sentido.
Considera o Banco de Portugal uma entidade reguladora e de supervisão independente?
Acho que é completamente dependente do governo. Mantém uma aura de independência, ou quer mantê-la, mas é completamente dependente. Não vejo nada que o governo queira fazer que o Banco de Portugal evitasse. O que já não seria o mesmo num banco alemão ou até no Banco Central Europeu, embora neste último ano, com a pandemia, as autonomias dos bancos centrais se tenham reduzido drasticamente, todas aquelas regras de ouro do banco central sobre a emissão monetária e sobre os padrões anti-inflacionistas foram por água abaixo.
João Rendeiro, burlou?
Não, nem sou acusado disso.
Não sente que traiu a confiança dos investidores?
Não, também não.
Na sua opinião, qual foi o seu crime?
Quer dizer, os tribunais entendem que houve falsidade informática. Desses quatro crimes de falsidade informática, considero que dois são uma injustiça absoluta, nem sequer estava no país na altura, não fui contactado, soube posteriormente o que aconteceu. No entanto, sou apresentado como o autor dos factos. Em relação aos outros crimes a situação é igual, no sentido em que os factos não são feitos por mim pessoalmente, são feitos por uma equipa executiva e são feitos pelos administradores dos pelouros respetivos, onde eu não estava. Assumo a minha quota parte de responsabilidade, era presidente do conselho de administração, não executivo - portanto, em rigor, não tinha nada a ver com atos executivos (o juiz Ivo Rosa absolvia-me em dez minutos). No entanto, outros juízes dizem: o senhor é a cara do banco, ponto final - sou eu que levo a principal responsabilidade e quem tinha as responsabilidades efecivas tem penas irrisórias.
Nesta fase já de tribunais, conversou com Paulo Guichard ou com Salvador Fezas Vital, por exemplo?
Numa situação processual o que acontece é que cada um defende-se por si.
Os advogados não tentaram concertar estratégias?
Os advogados, essencialmente, defendem o seu cliente. Que essas estratégias se revelem convergentes em tribunal, isso acontece. Às vezes há situações de algumas pessoas que se colocam numa posição quase de delação premiada. A delação premiada não existe em Portugal, mas existe.
O que o leva a dizer isso, o que foi negociado?
Quando há pessoas ou entidades que nem sequer vão a julgamento ou vão a julgamento e o Ministério Público pede penas irrisórias... Ao nível de diretores, que tinham lugares chave na vida do banco e que tinham responsabilidades principais nas decisões, isso aconteceu. Um banco não tem só administrações. Às vezes até as operações são propostas pelas direções e depois os administradores validam ou não. Algumas destas operações onde se diz que houve falsidade informática foram propostas por diretores. Quando esses diretores ficam de fora, as dúvidas são muito grandes.
Mas há uma hierarquia...
Há, há uma hierarquia. Há uma responsabilidade política e uma responsabilidade moral, e eu aceito isso. Mas as responsabilidades não se ficam por aí.
Havia outra alternativa, falhando a fusão com o BCP?
Falhando a integração noutra instituição, no BCP, a alternativa era a intervenção do Banco de Portugal.
Gostava que contasse o episódio em que Francisco Pinto Balsemão está a apresentar o seu livro e são todos chamados ao Banco de Portugal...
Estávamos a apresentar o livro "Testemunho de um Banqueiro", o Francisco Balsemão era um dos oradores, estávamos na parte final das cerimónia de apresentação, e recebemos um telefonema urgente do Banco de Portugal, que queria que fossemos lá. Fui com o Paulo Guichard e com o José Miguel Júdice, que era o principal advogado do banco na altura. Fui recebido pelo Duarte Neves e pelo Silveira Godinho, que não quiseram que o Paulo Guichard e o José Miguel Júdice estivessem presentes na conversa, não quiseram testemunhas, nem sequer o meu advogado. A conversa foi uma bocado confusa, nem percebi muito bem o que queriam dizer, não quiseram ser muito claros - mas depois percebi que, sem o dizerem, me estavam a dizer que eu não iria continuar, para haver o empréstimo dos 450 milhões de euros era condição eu sair. Olhando para trás, considero extremamente curioso que na reunião estivesse o Silveira Godinho, ex-quadro do Banco Espírito Santo e grande amigo do Ricardo Salgado.
O que tinha de curioso?
A curiosidade é que ele estava ali numa situação de conflito de interesses muito grande, não entendo ainda hoje como é que uma pessoa naquela situação pode ali estar.
Júdice não achou estranho não o deixarem entrar?
Pelo menos na altura não reagiu.
Quem são os seus advogados?
Neste momento tenho duas advogadas, duas Joanas (é o nome da minha mãe, sou perseguido pelas Joanas), a Joana Almeida e a Joana Fonseca. E agora, na parte final, no recurso para o Supremo Tribunal, tive o apoio do Dr. José António Barreiros.
Não estou a querer dizer que foi um downgrade, mas o que aconteceu aos advogados dos grandes escritórios?
Foi essencialmente por razões financeiras, porque esses grandes escritórios de advogados, simultaneamente, têm grandes honorários. Como entende, durante este tempo todo não tinha dinheiro para continuar com esses advogados.
Houve um período de passagem de testemunho, digamos assim?
Não, eles não pretenderam nenhuma passagem, não me chamaram para qualquer reunião de passagem de pelouros ou de ideias ou de projetos. Chegaram lá com toda a sua sapiência montada e só fizeram asneiras.
"O presidente da Caixa foi queixar-se ao Carlos César [então presidente do Governo Regional dos Açores] e o Carlos César foi-se queixar ao Sócrates e o empréstimo [concedido pela CGD, BCP, BES, Santander Totta, BPI e Crédito Agrícola] foi montado com essa condição"
A equipa escolhida pelo Banco de Portugal assumiu a gestão do BPP. Como correram as coisas a partir daí?
A asneira começou logo na intervenção do Banco de Portugal, que entendeu que devia intervir apenas ao nível do banco e não ao nível da Privado Holding. Um erro que repetiu no BES. Depois, o que o Banco de Portugal fez, em vez de negociar, foi pagar 100% dos depósitos a credores que até eram subordinados, as caixas, de Crédito Agrícola, do Funchal, e por aí fora. O presidente da Caixa foi queixar-se ao Carlos César [então presidente do Governo Regional dos Açores] e o Carlos César foi-se queixar ao Sócrates e o empréstimo [concedido pela CGD, BCP, BES, Santander Totta, BPI e Crédito Agrícola] foi montado com essa condição.
Legalmente, quebrou-se a hierarquia de credores?
Quebraram a hierarquia de credores e pagaram a credores que eram subordinados, porque as caixas são instituições para-financeiras, por isso credores subordinados, enquanto os clientes que eram credores principais foram preteridos. Suponha - não vai acontecer - que daquele grupo de clientes que ainda não recebeu o residual do seu património, os tais 10% finais, agora não tinha dinheiro na massa insolvente... Tinha sido preteridos em relação aos credores subordinados, que receberam o seu dinheiro logo à cabeça. Foi mais uma vez uma estratégia ditada politicamente pelo interesses do governo, que queria resolver os problemas das caixas em primeiro lugar. O empréstimo foi maquilhado como sendo para viabilizar o banco, mas não foi, foi essencialmente para pagar às caixas de crédito.
"Não tenho muitas dúvidas de que a Ellipse vai integrar a coleção do Estado e vai para o Centro Cultural de Belém"
Sobre a Fundação Ellipse, de quem era o dinheiro?
O dinheiro principal era de clientes, depois havia um empréstimo do banco. Havia cerca de dez clientes do banco que tinham capital da Ellipse, seis ou dez milhões, já não me recordo, e depois havia um empréstimo do banco à Ellipse de 30 ou 40 milhões de euros, que serviu para comprar obras de arte. Depois na intervenção do Banco de Portugal, a Ellipse não tinha meios para pagar o crédito, a sociedade ficou insolvente e, neste momento, pertence à massa insolvente do banco. Aliás, é um belíssimo ativo que ainda não está realizado. Não tenho muitas dúvidas de que a Ellipse vai integrar a coleção do Estado e vai para o Centro Cultural de Belém.
Qual era o valor das obras, os 40 milhões do valor do empréstimo?
Cerca de 40 milhões, mais ou menos. Mas hoje vale muito mais. São cerca de mil obras [740, de acordo com o inventário que nos fez chergar], é considerada uma das maiores coleções de arte contemporânea a nível mundial.
Em relação aos salários dos administradores do BPP. Eram acima da média?
Quer dizer, o pacote remuneratório dos administradores foi determinado por um estudo de uma consultora especializada, a Heidrick & Struggles, do Rafael Mora e do Nuno Vasconcelos.
Também envolvidos em processos...
Mas os problemas deles derivam de outras matérias, da PT, da Ongoing, etc, não da Heidrick & Struggles. Os estudos determinaram as bandas de remuneração nos bancos maiores, nos médios e nos mais pequenos. As nossas remunerações foram fixadas a partir daí, e o que lhe posso dizer é que eram muito inferiores às dos bancos grandes e dos bancos médios também.
Qual era a sua remuneração, quanto é que ganhava?
Neste momento não lhe sei dizer.
Não sabe o valor do seu último ordenado?
Não sei dizer, com toda a sinceridade.
E da sua reforma?
A minha reforma... Olhe, perdi imenso com isso, porque a minha reforma são cerca de 3 mil euros. Aquilo que descontei, que foi uma brutalidade, salvo erro 800 mil euros, foi uma carreira contributiva relativamente breve. Tenho 69 anos, há 13 que não desconto nada. Antes disso tinha estado noutras empresas e tive muitos anos no estrangeiro, portanto...
"A minha velhice, se quiser, via-a muito mais ligada ao mundo das artes contemporâneas, à gestão de uma coleção, aos museus e feiras de arte internacionais, do que propriamente à gestão de bancos. Com toda a franqueza, já me maçavam infinitamente"
Como esperava que fosse a sua velhice?
Estava a programar a minha velhice, ou o meu futuro, muito ligado à coleção Ellipse. O meu sonho naquela altura era vender a minha posição no banco e comprar a coleção, que ficaria a gerir. Cheguei a preparar documentação com a comissão executiva no sentido de fazer isso. Mas já estávamos no ano 2008 e a crise precipitou tudo o resto. Portanto, a minha velhice, se quiser, via-a muito mais ligada ao mundo das artes contemporâneas, à gestão de uma coleção, aos museus e feiras de arte internacionais, do que propriamente à gestão de bancos. Com toda a franqueza, já me maçavam infinitamente.
Como vê o seu futuro agora?
O meu futuro depende de algumas coisas. Passa pelo facto de ser um espírito livre e um homem livre em todas a circunstâncias e pensar que o espírito nunca morre.
Quem pode e a quem compete prevenir situações como a do BPN, do BPP, BCP, Finantia, Banif, BES, Montepio? São casos diferentes, mas todos redundam em perdas para o erário público.
No caso BPP não. No caso do Banco Finantia foram inteligentes, mantiveram a situação muito discreta ou secreta. Mas em 2008, na mesma altura em que o governo recusava apoio ao BPP, o governo, através do ministro das Finanças Teixeira dos Santos instruía a Caixa Geral de Depósitos para apoiar de maneira significativa o Banco Finantia com liquidez. Houve uma situação chocante de descriminação, de dois pesos e duas medidas.
Independentemente disto, como é que a questão e resolve?
Aí entramos nas duas teorias sobre as crises bancárias. A teoria populista e da justiça do chinelo é: há aqui uns banqueiros, prendem-se esses banqueiros e acabaram-se as crises. Há outras teorias, talvez um pouco mais sólidas, em que o entendimento prevalecente é de que o capitalismo tem inerentemente uma instabilidade gerada pelos mercados financeiros. Estes riscos periódicas têm de ser contrabalançados com uma regulação forte, adequada. E foi por aí que se foi, não é à toa que depois da crise de 2008 houve uma alteração radical da regulação dos mercados financeiro e das regras de funcionamento dos bancos. Neste momento os bancos estão cheios de liquidez até ao pescoço, andam a oferecer crédito por todo o lado. E quando os bancos estão cheios de liquidez, a história demonstra que se cometem erros. E vai aparecer malparado e concessão excedente de crédito, as razões são boas, mas depois não se venham queixar.
Em anos de testes de stress os bancos estavam todos óptimos, resistiam aos impactos mais severos. Até que...
Aí entramos noutra situação, a da existência ou não de contas maquilhadas. O que aconteceu em Portugal é que as contas do BES, da CGD, etc. não representavam a situação real das contas. Fui acusado de falsidade informática, mas os outros bancos é que apareceram com buracos. Como é que os testes de stress estavam bem e depois foi necessário 12 mil milhões de euros da troika para endireitar minimamente os balanços? Os testes de stress não estavam a ser feitos com os dados corretos. É muito fácil maquilhar as contas de um banco, facílimo, basta ter uma apreciação mais ou menos rígida sobre o valor do bens que lá estão, nomeadamente o crédito. Uma coisa é valorizar um imóvel por 100, outra é valorizar por 80.
Como e quando acredita que todo este processo vai acabar?
Temos duas questões distintas. Uma é o vai acontecer do ponto de vista patrimonial. O que vai acontecer é que a massa insolvente do banco é gigante, mais de 700 milhões, é provável que atinja os 900 milhões.
"Até hoje já gastaram mais de 100 milhões de euros só em custos, penso que estão muito felizes e contentes"
Quem é o presidente da comissão liquidatária e qual o seu papel?
É Mendes Paulo, se bem me lembro. Três reformados do Banco de Portugal que estão neste momento sentados num palacete no Marquês de Pombal a ganhar mais do que o presidente da República e que gostam muito de trabalhar uma hora por dia e, se puderem, estar lá mais dez anos... Continuam na Mouzinho da Silveira, onde era a sede do banco, e têm 30 funcionários a trabalhar para eles também uma hora por dia. Até hoje já gastaram mais de 100 milhões de euros só em custos, penso que estão muito felizes e contentes. E a massa insolvente também está muito feliz e contente, porque está lá e não devia estar, já devia ter sido distribuída pelos seus donos e esta entidade já devia estar a caminho da reforma. Acho incompreensível que haja tanto dinheiro e que não seja distribuído. Penso, mas isto é uma mera hipótese, que alguma coisa tem a ver com o facto de a lista de credores ser fictícia. A lista foi formatada em 2010 e dela constam hoje entidades e pessoas que já foram pagas, não é real, tem de ser saneada.
Ainda vai sobrar dinheiro?
É possível que sobre.
"Os únicos que foram espoliados foram os acionistas. Penso que é uma conclusão, cada vez mais evidente, a que o Banco de Portugal não quer chegar"
E sobrando dinheiro...
É dos acionistas. Mas, sobrando dinheiro, chega-se à conclusão final, extremamente vergonhosa, que esta intervenção não devia ter sido feita e que os acionistas não deviam ter sido prejudicados. Os únicos que foram espoliados foram os acionistas. Penso que é uma conclusão, cada vez mais evidente, a que o Banco de Portugal não quer chegar.
E quanto à parte dos processos?
Os julgamentos terminarão muito mais cedo do que o tema patrimonial, para o tema patrimonial dê-lhe facilmente mais dez anos.
Este é o terceiro livro que escreve. Porquê?
Acho importante os acontecimentos ficarem registado. Se não contasse tudo isto, penso que a perceção que existe da intervenção do Banco de Portugal no BPP ficava enviesada.
O Banco de Portugal também devia ser responsabilizado, ou isso é transformar, metaforicamente, os polícias em ladrões?
Sim, mas estamos a falar de ações do Estado conta o Estado, e o estado protege-se. Em Portugal não funciona.
Os bens que lhe foram arrestados vão servir para quê?
Para garantir as responsabilidades jurídicas dos processo penais.
Pergunto porque num dos livros diz que deixaria a sua fortuna à sociedade. Sob que forma?
Na altura tinha isso pensado, a minha ideia era deixar a uma dessas grandes fundações que já existem. Muita gente pensa criar uma instituição própria, com o nome, eu não tinha essa ambição, preferia dar a uma já testada, que funcione bem.
Qual?
Preferia não dizer, porque é uma questão muito hipotética.
Já pensa de forma diferente?
Não mudei muito a minha visão, mas é caso para dizer que elas não matam mas moem.
"Fiquei milionário aos trinta anos"
Qual foi o melhor negócio da sua vida?
Foi a venda da Gestifundo ao Banco Totta, fiquei milionário aos trinta anos.
Como celebrou, lembra-se?
Com um jantar com outro casal amigo, num restaurante de Lisboa. Tivemos um menu um pouco mais caro, mas nada de extraordinário.
Qual a maior extravagância que já fez?
Está a pensar em dinheiro?
Não estou a pensar em nada, estou a perguntar.
Não sou uma pessoa de extravagâncias. Tenho amigos, ou que se diziam amigos, que eram capazes de pegar num avião e de ir até ao Dubai, mandar fechar uma discoteca e fazer uma festa com 30 amigos. Isso a mim nunca me ocorreria, não é uma questão de dinheiro, é de parcimónia. Dou valor ao dinheiro, até porque durante muito tempo não o tive em abundância. O dinheiro tem valor e não deve ser gasto estupidamente.
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