Sem papas na língua e sem esmorecimento, Joaquim Azevedo acaba de publicar um livro, "Modo de produção da exclusão escolar – olhar a escola a partir dos excluídos", que tem tanto de desafiante como de provocatório. Pretende mostrar, com base em dados empíricos, que, tal como está, a escola continua a excluir alunos, apesar de ter feito, nessa matéria, um percurso notável no período do pós-25 de Abril. É por vezes contundente na crítica a uma lógica de funcionamento que, para alguns alunos, não é só injusta, mas também “humilhante”. Mas faz essa análise para que, conhecendo e reconhecendo os mecanismos da exclusão, ela consiga mais facilmente dar uma resposta institucional e comunitariamente inclusiva. Fá-lo, de resto, a partir da experiência do Arco Maior, uma instituição socioeducativa por ele criada, na zona do Porto, para, precisamente, acolher os excluídos do ensino formal.
Como nasce este tema/perspetiva de abordagem?
Devo este trabalho e esta pesquisa aos alunos do Arco Maior. Começámos em 2013 a trabalhar, procurando encontrar uma resposta educativa para os miúdos que abandonavam as escolas – e eram muitos, na altura, no Porto – começámos a conceber um modelo educativo que pudesse ajudar a fazer um caminho com eles no plano educativo, procurando também reinseri-los socialmente. Desde essa altura até hoje, já trabalhámos com mais de 500 miúdos e desse contacto contínuo com os casos, as situações, os dramas, as dificuldades deles e nossas, foi surgindo a pergunta: o que é que acontece nas escolas para eles serem excluídos e chegarem ao Arco Maior tão desestruturados, não acreditando em si próprios, desconfiando de tudo e de todos? É verdade que, em geral, eles têm famílias pobres e com problemas de violência doméstica, de abandono, é verdade que também vivem em contextos de pobreza e até segregação social. Mas há também uma intervenção da escola, acerca da qual há uma grande cortina de fumo. A minha ideia foi ir atrás verificar isso, tentar perceber.
Ir atrás, como?
Pareceu-me que o caminho mais prático seria ir ver os processos individuais dos alunos – o que aconteceu desde que entraram na escola, de acordo com o que ficou registado nesses processos. Claro que, com alunos que têm problemas, conflitos, processos disciplinares, suspensões frequentes, os processos individuais são também volumosos, o que não acontece com os outros casos em que constam folhas adicionais, além das avaliações. Foram, pois, os miúdos que geraram a inquietação e a pergunta: “O que é que acontece?”.
E o que é que acontece? Que permitem ver esses processos, em termos de mecanismos de exclusão?
Vê-se uma lógica que oculta, não uma lógica que esclarece e revela, sendo que há muitas coisas que contribuem para isso. No livro, identifico 12 passos… Por um lado, há uma deteção precoce de problemas relativos a uma tensão entre os miúdos e a escola e vice-versa. Isso gera, normalmente, uma catalogação. E aí começa o problema, porque estes miúdos são imediatamente identificados como miúdos em risco, miúdos problemáticos. Essa catalogação, que parece, à partida, muito inofensiva, vem a revelar-se profundamente prejudicial, porque ela mesma, em si, é uma negação do outro. Começa logo aí o problema do afastamento, do distanciamento.
É possível concretizar mais?
O facto de haver um aluno que é “de risco” leva a acionar medidas de apoio… Depois, há muita documentação que a escola elabora para justificar os défices desses alunos e as patologias – relatórios de psicólogos, de pedopsiquiatras, que se vão somando, a cada ano. Com alunos que têm muitos défices, trimestralmente os conselhos de turma analisam e passam ao papel listas infindáveis de défices desses miúdos, a que se juntam ainda os relatórios médicos. Os défices e as patologias, juntos, são desastrosos, desse ponto de vista. Tudo isto ajuda a criar uma armadura que ainda separa e distancia mais. Depois temos as reprovações – estes alunos reprovam e são incluídos em turmas como alunos mais velhos, repetentes – repetem o ano todo, mesmo que tenham tido sucesso a algumas disciplinas, o que é absurdo… Portanto, eles começam a ficar muito desfasados dos outros, havendo repetições que podem chegar a cinco vezes no mesmo ano de escolaridade.
Parece ser mais do que desfasamento…
Isto é uma barbaridade. Falamos dos maus tratos familiares, mas, na nossa sociedade, temos de começar a falar dos maus tratos escolares, porque isto não pode acontecer. Esses miúdos ficam muito desalinhados com os outros e começam a tornar-se naquilo em que a escola acaba por os catalogar: problemáticos, inadequados, rebeldes, malcriados… isto é, eles transformam-se precisamente naquilo que sobre eles é projetado. Conseguem depois afirmar a sua identidade já não como a Ana ou o António, que lhes é negada, mas a do rebelde, o insolente que os fazem ser. Ligado a isto há muitas suspensões, há uma lógica escolar muito punitiva e pouco encorajadora, porque isso implica muita atenção, muita proximidade… Como isto não acontece, há essa punição sucessiva, muito agressiva, e o miúdo acaba por se convencer de que a escola não o quer e que ele não quer a escola nem serve para a escola. E, consequentemente, abandona.
Como compreender, então, este abandono?
Este abandono – que é o termo que é usado – coloca o ónus sobre a criança ou o adolescente, porque foi ele que abandonou a escola, quando, na realidade, ele foi excluído da escola, ainda que dentro dela. Foi excluído de um conjunto de benefícios que a escola lhe deveria proporcionar – desde logo atenção, cuidado. Portanto, dá-se uma exclusão interior. A exclusão (para o exterior) é, depois, um ato muito menos relevante.
Há experiências de resposta bem-sucedidas, isto é: que procurem remar num sentido mais centrado nas pessoas dos alunos?
Nas escolas do ensino geral, há respostas para muitos problemas destes, desde apoios pedagógicos até outro tipo de percursos alternativos… Sobretudo há professores que trabalham muito bem em termos de atenção, proximidade e respeito para com estes miúdos e que fazem um trabalho muito grande com eles, incluindo em tutorias que estão legalmente previstas. Ou seja, há muito trabalho que impede que o número [de abandonos] seja ainda maior. Aqui, nós estamos a falar dos miúdos que chegam ao Arco Maior. Há também outros cidadãos que têm percursos de vida muito próximos destes, mas que não chegam a este ponto, porque a escola é capaz de encontrar no seu seio não só professores aptos a trabalhar com eles, mas também circunstâncias e modalidades organizacionais e pedagógicas que ajudam a encontrar solução para eles. Portanto, acredito que a maior parte destas situações têm solução no interior das escolas e a preocupação pela inclusão é generalizada e genuína. A questão, por conseguinte, é que, apesar disso, há situações muito diferentes em que se gera muito este clima de tensão e de comportamento disruptivo… a escola então fracassa muito rapidamente na capacidade de responder. É claro que a taxa de abandono escolar precoce decresceu imenso, em Portugal, nas últimas décadas. Neste momento, poderá ter crescido alguma coisa com a imigração, mas temos oito por cento e tínhamos 50 por cento.
Porém, no estudo, fica a ideia de que esses números podem, ao mesmo tempo, esconder realidades diferentes…
Sim, essa é uma outra questão que eu lanço e que é importante: as escolas estão muito colonizadas por uma lógica que eu chamo de “performatividade exibicionista”, que é a lógica de trabalhar para os resultados. Há escolas que conseguem encontrar solução para um conjunto de situações e resposta para muitos destes miúdos, mas há situações em que não conseguem, vê-se que não têm soluções pedagógicas alternativas, que também não conseguem pôr de pé modelos organizacionais diferentes para resolver estas situações e, dada a situação generalizada de desgaste e desmotivação, aderem a essa lógica. Ela pode traduzir-se em pretender apresentar 98 ou 99 por cento de sucesso, não interessando o que significa essa meta, mesmo que signifique fazer transitar um aluno que chega ao 9º ano com seis níveis negativos. Nós temos estado a desenvolver, nos últimos anos, esta lógica de trabalhar para os 98 ou 99 por cento de sucesso, o que quer que isso seja. E neste caminhar, nesta lógica, acabamos por cilindrar algumas situações mais difíceis e arrasá-las, empurrando para a exclusão.
No livro "Modo de produção da exclusão escolar", agora lançado, fica evidente a reduzida investigação feita do ponto de vista dos excluídos da escola e, mais ainda, que escute a voz desses excluídos. O que é que isto requer?
Requer tempo, que é uma dimensão que a escola tem de reivindicar ao conjunto da sociedade como nunca o fez. Isso implica reivindicar um espaço próprio e uma cultura própria. E essa cultura tem de ser a da atenção ou, como propõe um autor, o “paradigma do cuidado como desafio educativo”. Temos de pôr de pé uma escola que esteja particularmente atenta e capaz de cuidar de todas as situações, não na lógica de uma “inclusão degradada”, que é a dessa tal “performatividade exibicionista”, mas na lógica da proximidade, com respeito e cuidado, que permitam criar respostas individuais ou em pequeno grupo, como se justificar, que sejam capazes de encorajar todos e não apenas responder à maioria. Isto porque os oito ou dez por cento de excluídos de hoje são muito mais excluídos do que os 50 por cento que abandonavam há 50 anos, dado que vivem uma situação de exposição à exclusão muito mais grave.
Como se poderia concretizar esse modelo de escola?
Eu costumo sintetizar isso à volta da ideia de participação. Vejamos: as crianças ou os jovens não participam da vida da escola. Não são chamados, não intervêm… e quando são chamados a intervir, isso acontece numa lógica de mera auscultação, que vem dirigida de cima para baixo e que conduz àquilo a que os adultos pretendem que se chegue. É, assim, uma auscultação muito pouco democrática. Pelo contrário, pondo-nos no lado das crianças e adolescentes que são ouvidos, ouvir com atenção, ouvir com cuidado, ouvir com tempo, ouvir sem inundar de moral o discurso e sem ter nada na manga, ouvir empenhadíssimo, ouvir a “olhar fixamente”, como propunha Simone Weil, isso permite que a realidade nos fale. Se isso acontecer, a vida destes alunos fala-nos. Isso exige estarmos disponíveis para ouvir o que eles dizem. E, a partir do que nos dizem, as crianças e adolescentes fornecem o material necessário para trabalhar com eles. São eles que têm esse material. O que nos diz a experiência do Arco Maior é que isso é viável e é possível. Torna-se possível, num ambiente diferente, de respeito e proximidade, romper a carapaça que qualquer cidadão cria quando é maltratado, fazendo com que eles, lentamente, se vão abrindo e permitam entrar num jogo que é o jogo do desejo. Trata-se de acender neles o desejo de aprender e de fazer com eles esse percurso.
Como dar corpo a esse tipo de participação?
O maior capital que as escolas têm são os alunos e esse capital é desperdiçado, caso não exista esta escuta. Se forem ouvidos nesta lógica genuína, para em conjunto construir soluções educativas, eles tornam-se preciosos e indispensáveis. Quanto a esta ideia da participação dos alunos, desde as assembleias de turma até à participação na gestão do próprio currículo e mesmo na avaliação, se é verdade que já se fez um caminho grande, também é certo que estamos ainda na infância deste processo. E isso porque os miúdos não fazem parte do processo, já que são objeto do ensino e aprendizagem, de uma “maquinaria” que está pré-estabelecida.
Perante um fenómeno que é multidimensional, não se pode deixar de considerar as políticas, a nível local, nacional e europeu. Que aspetos ter em conta, nesta dimensão?
A escola não age sozinha e a minha sugestão, enunciada na parte final do livro, passa pela construção de projetos que designo por sociocomunitários, construídos localmente e comunitariamente, envolvendo as instituições da comunidade, desde as famílias (ou, não sendo possível, quem nas políticas sociais está mais próximo das famílias). Chamo-lhes “projetos de tolerância zero” face à humilhação escolar, porque assentes na recusa de lógicas de humilhação e marginalização de crianças. Isso é viável e é possível. De resto, há escolas que têm estado envolvidas em processos desse tipo e que conseguem resultados muito interessantes. Estes projetos têm que envolver o Ministério da Educação, porque é preciso, muitas vezes, criar mecanismos específicos que exigem autorizações especiais, casuísticas. Em vez de medidas pré-formatadas e gerais, é necessário um referencial genérico e, depois, flexibilidade bastante para adaptar localmente, em cada contexto específico. Estes projetos precisam de ser muito trabalhados e negociados institucionalmente. Podem surgir e desenvolver-se no interior da escola, num quadro de autonomia pedagógica, mas precisam desse envolvimento e horizonte sociocomunitário.
No livro agora publicado, anuncia-se um segundo volume.
Sim, o próximo livro parte da experiência no Arco Maior durante estes dez anos para desenvolver uma pedagogia que vai ao encontro da possibilidade de incluir e reinserir socialmente estes adolescentes, que temos posto em prática e que tem dado bom resultado, nomeadamente quanto às dinâmicas de participação dos alunos. Esse segundo volume quer ajudar a pensar a escola e como é que ela pode ser outra, de outra maneira, no século XXI. Com as mudanças que a sociedade conhece, a escola tem mesmo de se reinventar, sob pena de se tornar uma instituição ridícula e irrelevante.
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